Hoje Nara, minha filha de 13 anos, está fazendo prova final pela primeira vez na vida. Ao contrário de seu irmão mais velho Hideo que nem diante de uma possível reprovação perde o sono, Nara entrou em pânico e mesmo tendo estudado muito mais do que manda a cartilha, se julgou incapaz de tirar a mixaria de nota necessária para ser aprovada em matemática. Eis que uma novela mexicana fez-se presente em minha casa desde ontem com minha filha atuando no papel principal. Mãe, me ajuda. Mãe, tô desesperada. Mãe, vou morrrreeeeerrr. Jesuis… Nunca lidei com isso e não tinha a menor noção do que deveria fazer para melhorar a situação.
Atéia por parte de pai, não poderia recomendar que Nara orasse. Por falta de criatividade, reconhecimento, psicologia e quem sabe por falta de Deus eu falei:
– Afe, Nara, para de drama e vai estudar!
Qual o quê…
– Mãe, eu já estudei tudo! Mãe, eu não sei nada! Mãe, vai me dar branco! Mãe, são 20 questões! Mãe, não vai dar tempo! Mãe, isso! Mãe, aquilo! – Nara falava numa tal frequência que eu cheguei a temer pelos copos de requeijão aqui em casa.
– Vai ler Crepúsculo! – Apelei.
– Mãe, não consigo ler nada! Mãe, fala alguma coisa! Mãe, me acalma! Mãe, blá blá blá… – e nesse frenesi ela teve um repente e se virou para mim e perguntou – Mãe, você ficava nervosa antes de fazer prova?
Caramba. Só de pensar em prova me dá taquicardia. Até hoje fico desesperada. Choro. Vomito. Tenho dor de barriga. Ligo para minha mãe de cinco em cinco minutos. Tenho insônia e se durmo, pesadelo. Quando acordo desejo a morte.
– E o que você faz para se acalmar?- Perguntou-me curiosa minha filha, na esperança de encontrar com as minhas sábias palavras a cura para aquela exasperação.
– Ãh? Eu? Eu ligo pra Kátia.
Kátia trabalhou como empregada doméstica na casa de mamãe e acompanhou toda a minha transformação de menina para mulher. Avisava-me quando mamãe chegava para eu sair do telefone e ir para o quarto correndo sentar-me à escrivaninha que estava cheia de livros abertos. Convencia mamãe a me deixar sair com as amigas mesmo sabendo que eu estava indo namorar escondido. Fritava um ovo e colocava no pão sempre que eu voltava da natação cheia de fome. Ouvia tudo o que eu tinha para dizer para meus namoradinhos antes de terminar o relacionamento com eles. Opinava sempre. Ensinou-me tudo o que eu sei sobre política. Fazia café fresquinho quando eu estava com dor de cabeça. Ensinou-me a não desperdiçar comida. Contava-me piadas sujas e pesadas… e mais um tantão de coisas Kátia fez por mim nessa vida, mas principalmente, em todas as provas que eu enfrentei nessa jornada, Kátia acendeu uma vela para mim e me dizia: “Fique calma, minha filha, a Kátia acendeu uma vela para você. Eu tenho certeza que vai dar tudo certo”. E nem havia mais necessidade de estudar depois disso. Era o lexotan que eu precisava e sempre foi assim.
Os anos passaram, casei-me, e Kátia veio trabalhar na minha casa. Meu marido, porém, não suportou tamanha dedicação. Kátia se metia em tudo o que devia e não devia. Mandava na gente como se fosse um chefe brabo e surtava com a minha bagunça como sei lá, meu deus, vai entender a cabeça da Kátia…ela escondia tudo quanto é papel jogado pela casa entre meus livros e dizia que era para eu me disciplinar. Proibiu-nos de ter bicho de estimação. Se Nelson me tratasse com pouco carinho, mal ele dava às costas, ela vinha me convencer de que eu conseguiria algo melhor. Kátia não tirava férias porque dizia que amava botar ordem na minha casa e na minha vida. Eu não sabia mais o que fazer com ela… Acabou que arrumamos uma outra casa para a maluca trabalhar e com uma boa desculpa e muito carinho consegui me desvencilhar desse afeto desmedido e deixá-la até financeiramente bem melhor do que quando trabalhava para mim.
A amizade, porém, continua até hoje e mesmo sem ser a minha empregada e termos perdido muito da convivência por conta disso, as velas da Kátia foram acesas, a meu pedido, em todos os concursos públicos que eu fiz e em todos os congressos e simpósios que eu já participei. E não exagero em dizer, que graças a ela eu cheguei aonde eu cheguei. Nos momentos mais tensos em que eu fui avaliada, antes de começar a falar ou a escrever, a imagem da Kátia acendendo a vela para mim, inexplicavelmente, me dava a paz necessária e que faltou para muitos dos meus concorrentes.
Nara ao ouvir toda essa história questionando se eu não havia tido sucesso porque sempre me matei de estudar e entendendo, ao longo da minha explanação, que o conhecimento é necessário mas, às vezes, não suficiente, pegou o meu celular e começou a ligar convulsivamente para Kátia. Ao perceber que do outro lado da linha o telefone tocava e ninguém atendia, Nara ficou mais nervosa. Eu, ainda desprovida de criatividade, psicologia e o diabo necessário para acalmar minha filha, mas percebendo que Nara não captou a história em sua plenitude, falei:
– Também não sei se ia adiantar no seu caso. A Kátia me ama e acho que isso é essencial para que a macumba funcione. – Abusei da sinceridade e a deixei pensando no quarto.
Hoje voltei do trabalho voando para dar tempo de levá-la para fazer a tal prova bem no meio da tarde. Ao vê-la entrar no carro em câmara lenta e com cara de paisagem sem poluição perguntei se ela estava pronta e preparada. Nara me olhou e disse seguramente que sim. Contou-me que ontem mesmo, via skype, conversou com os primos de Florianópolis um tempão sobre essa história toda e hoje de manhã, Ian, meu querido sobrinho e afilhado, ligou aqui para casa e disse que ela poderia ficar tranquila. A vela havia sido acesa. Foi o que bastou para Nara recuperar a segurança e sobriedade.
E agora, enquanto minha filha está lá, super tranquilinha e confiante fazendo uma provinha de matemática cá estou refletindo sobre o quão sem importância é essa garantia de acreditar que entendemos alguma coisa. O quanto ‘viver ultrapassa qualquer entendimento’. E que poder incrível qualquer gesto de carinho tem em aquietar a nossa demência, não?
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