Verdades e Mentiras

Diapositive23

A mulher, negra, forte, mal vestida e suja pede clemência para Juliana que insiste em não abaixar o vidro da janela. Juliana acabou de entrar em seu carro que estava estacionado na Avenida Afrânio de Melo Franco a alguns metros de onde morava. Parara ali porque, por sorte, tinha encontrado uma vaga quando voltava do trabalho e resolveu comprar pão na antiga padaria do bairro.

– Por favor, senhora, por favor! Tenha bondade nesse coração!

Juliana movimentou o vidro o suficiente para que um dedo passasse.

– Por favor, senhora, eu trabalhava de acessorista de elevador no prédio aqui perto há dez ano, mas desde que fizeram a reforma me mandaram embora e eu não consigo emprego em nenhum lugar. Tenho fome e queria um dinheirim só para comer alguma coisa. Não sou vagabunda nem filho eu tenho não senhora. Tenho dormido na rua porque não tenho mais como pagar o aluguel do barraco onde morava tenha piedade senhora.

A brecha do vidro era pequena como já registrado, mas não impediu que o bafo de cachaça da mendiga entrasse no carro perfumado de Juliana.

– A senhora está bêbada!

– Não estou não senhora, não tenho dinheiro para comer, senhora, tenha piedade. Juro que não é pra bebida não senhora.

– Em que prédio você trabalhava? De que rua? – Juliana morava no Leblon desde que nasceu e conhecia o bairro como conhecemos não a nós próprios porque isso é mentira, e muito menos a palma de nossas mãos porque isso é bobagem, mas como conhecemos, bem, como conhecemos… como bem conhecemos a nossa mesa de trabalho.

– Ali naquela rua, senhora.  –  E apontou para lá, qualquer lugar, lugar nenhum.

– Qual rua, moça? Fale o nome da rua!

– Me esqueci, senhora.

– Trabalhou há dez anos no mesmo prédio e se esqueceu do nome da rua? Ah, vá ver se estou na esquina, sua bêbada! Você mente descaradamente!

Quando foi levantar o vidro, a indigente colocou, na tentativa de impedir o gesto da madame, seus dedos no pequeno espaço aberto entre elas.

– Senhora peloamordedeos me dê qualquer coisa, tenho fome.

– Isso não justifica você mentir e abusar da boa vontade das pessoas! Poderia te processar por impostura!

Juliana havia descoberto na semana anterior a traição do namorado com uma colega da sua própria repartição. Juliana era gerente e acabou demitindo uma boa engenheira para não ter que lidar com a vergonha e as fofocas em seu trabalho. No mais, a outra aprenderia a não se meter no caminho de Juliana. Quanto a ele, o traidor, Juliana o amava e estava sofrendo, dizia, porque se tem uma coisa que eu não gosto é de mentiras! Eu não perdoo mentiras!

– Eu vou te processar! Você mentiu pra mim, sua bêbada mentirosa! Com um bafo desses e vem me dizer que não bebe! Ah vá…

– Tá bom, senhora! Eu menti! Eu menti! Mas o que a senhora faria no meu lugar? Por Deus, senhora! Como vou viver sem mentir! Se eu contar a verdade que tento procurar trabalho há vinte ano e ninguém me dá uma oportunidade sequer ninguém acredita! Só sabem me dizer que sou forte, gorda, mas ninguém emprega ninguém que não sabe ler nos dias de hoje! Querem sempre referença! Como vou arrumar referença se nunca trabalhei, senhora?

– O que fazer? Vai trabalhar ora!

– Onde,  senhora? Se a senhora me arrumar onde eu trabalho, eu vou! Onde?

– Vai lavar roupa pra fora!

– Lavo, senhora! Mas quais roupas? A senhora confiaria as suas roupas para que eu lavasse elas?

Juliana pensou. Pegou um pão e deu para a senhora. Mas antes de sair com o carro, disse-lhe que fosse no condomínio tal, na casa tal procurar por Juliana e que se ela lá chegasse, teria trabalho para fazer.

Chegando em casa, resolveu fazer uma sauna, avisou a empregada para colocar na mesa perto da piscina os pães recém-comprados com sucos e tudo o mais para compôr o lanche. Ao subir para o seu quarto, ouviu o som da campainha e logo depois a empregada veio lhe avisar que seu Jorge, o porteiro, estava diante de uma mulher negra e suja que estava procurando por ela na porta do condomínio, conforme ele foi avisado por dona Juliana que isso poderia acontecer.

– Kátia, vá buscá-la. Leve a mulher para a garagem e dê-lhe todos os tênis dos meninos para ela lavar no tanque. E quando ela terminar, me chame!

A maltrapinha acompanhou a moça de uniforme branco até a casa de dona Juliana. Da janela de seu quarto, Juliana conseguiu perceber a chegada das duas. A mulher mentirosa vinha atrás de Kátia, mas nada feliz como aqueles que arrumam uma saída na vida. Vinha porque estava com o orgulho ferido por ter sido chamada de mentirosa e queria mostrar para Juliana que o que ela havia feito tinha uma justificativa. Pois sim que tem. Pois sim!

Juliana desceu sem fazer barulho. Kátia havia percebido que a mulher imunda estava cheirando vodca e fraca de tanta bebida. Ao mostrar-lhe os tênis dos meninos que eram três e jogavam futebol na lama toda semana, Kátia explicou-lhe o que teria que ser feito. Da cozinha, andando nas pontas dos pés e com os ouvidos esticados para a porta, Juliana escutou:

– Dona Lourdes, a senhora tem esses tênis para lavar. Dona Juliana gosta deles brilhando, está entendendo? Não sei onde ela está com a cabeça ao colocar a senhora aqui dentro! Até parece que uma mulher como a senhora, que não consegue nem se limpar, vai conseguir lavar esses tênis dos filho dela! Se não ficar direito, ela mandou avisar que não paga! E se eu fosse a senhora nem perdia seu tempo! Dona Juliana é chata com as coisa dela!

Juliana riu para dentro e tornou a subir para o seu quarto como se tivesse andando nas nuvens. Por pisar suave para que as duas não a ouvissem, mas também porque estava com o corpo mais leve por estar perto de comprovar que quando se quer, tem jeito sim e quem se esforça para fazer tudo certinho tem suas recompensas. Que podemos viver sem mentirmos uns para os outros. Que não precisamos arrumar justificativas por termos mentido. Não há desculpas para qualquer mentira! Que se Carlos chegasse e contasse para ela que não gostava dela e que estava interessado por outra que ela entenderia perfeitamente, quer dizer, que seria muito melhor do que ele ter mentido e tê-la obrigado a demitir uma excelente engenheira como a Tatiana.

Após uma hora mais ou menos, Kátia pediu que Juliana descesse, pois a mulher tinha terminado o serviço. E que tinha ficado bom como dona Juliana gosta.

– Muito bem, dona Lourdes. – Juliana rateou. Como sabia o nome da bêbada se jamais havia perguntado? – A senhora volte aqui na semana que vem e fará o mesmo serviço.

Deu-lhe trinta reais. Dez por cada par de tênis.

Na semana seguinte, Lourdes apareceu de novo com o mesmo bafo de cachaça e foram-lhe entregues os mesmos tênis imundos. Kátia recebeu a esmolambada com a mesma impaciência novamente ouvida pela danada da Juliana que espreitava atrás da porta da cozinha.

– De novo com essa cara imunda?!? Como dona Juliana permite que a senhora entre assim aqui? Pois bem, aqui a esponja, aqui os tênis dos menino e comece a lavar porque a senhora não pode ficar aqui muito tempo! Dona Juliana pediu para que eu não deixasse a senhora fazer hora nos serviço de lavági dos tênis!

Juliana não poderia ter ficado mais satisfeita com a sua ideia. Nem contava com essa da Kátia que estava se saindo melhor do que encomenda. Quem diz que quer, quem diz que precisa, quem diz que ama, suporta os trancos da vida e segue em frente mantendo o foco. Só os fracos, os infelizes, os que não têm mais jeito arrumam uma desculpa para a incompetência de respeitar e amar o próximo! Vamos ver se essa negra bêbada volta de novo! Vamos ver! Pois sim que volta, pois sim!

Os tênis ficaram de novo limpíssimos. Lourdes voltou durante três meses, todas as semanas. Juliana arrumou-lhe roupas e sapatos novos. Permitiu-lhe banho no banheiro dos empregados. Após esse tempo, Carlos foi perdoado e Juliana resolveu oferecer algo maior para Lourdes que já não mais cheirava a vodca, run ou cachaça. Pediu para que Kátia  ensinasse a ela como cuidar dos cachorros. Depois pediu para Kátia ensinar-lhe a passar roupas. Depois acabou indicando Lourdes para sua amiga.

Ao visitar Andréia, quem atendeu a porta foi Lourdes vestida com um uniforme alvo e cheirando a produtos de limpeza.

– Muito bem, Lourdes! – disse juliana muito feliz – Fico muito contente por você! De certa forma, me sinto como uma madrinha, sabe? Fui eu  afinal de contas que perdoei a sua mentira, se lembra? E que te ajudei a ter hoje dignidade que antes parecia que te faltava! Fico realmente muito feliz em ver você livre do vício da bebida, dona Lourdes, e perceber o quanto eu contribuí para isso.

– Muito gradecida, dona Juliana. Por suas palavra bonita e suas atitude. Por ter oferecido os tênis dos menino pra mim lavar. Muito gradecida. Mas quem me tirou do viço foi aquela alma boa da menina que trabalha com a senhora.

Juliana que bem tinha ouvido todo o tratamento dado de uma para a outra, riu-se:

– A Kátia? Alma boa? Com você? Pois sim, dona Lourdes! E eu não sei como ela te tratava? Vivia te chamando de bêbada, de suja e ofendendo a senhora!

– Ela gritava muito comigo. Principalmente no iniço. Desde o primeiro dia. Mas depois que ela me chamava de fedorenta, de bêbada e de tudo o mais e via que eu não fazia nada mesmo, acho porque não tinha as força nos braço por causa das bebida mesmo que a senhora bem sabe que eu bebia e muito, ela vinha e lavava tudim pra mim. Vou te dizer, dona Juliana, eu só fui lavar os tênis dos meninos depois de muitos dia indo na casa da senhora! Põe mês nisso! Ela todo dia brigava muito sim senhora, mas vinha depois chorando, secando o nariz com as mão e lavava tudim pra mim. Por qual motivo eu parei de beber olhando a dona Kátia fazer essas coisas comigo, eu não sei. Mas foi por causa dos xingamento dela e por causa que depois ela vinha fazer os serviço que era pra mim fazer e eu não ia fazer mesmo porque não queria saber de lavar tênis dozoto, alguma coisa aconteceu dendimim. Ela me acorrigiu e nunca mais eu quis beber. Alguma coisa, aquilo significou pra mim. A senhora aceita um cafezim?

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