Nariz de Palhaço

NARIZ_~1

– Mãe, pra que serve uma bigorna? – Perguntou Yuki, meu caçula de sete anos.

Fiquei olhando para a criança pensando no que responderia. Diriam vocês, ora, responde que a bigorna… Pois é, mas devo lhes confessar. Eu nunca vi uma bigorna sem ser nos desenhos animados. Se vi em outro lugar, não me atentei ao fato a ponto de observar e detectar o uso correto dessa budega. Mas não podia deixar meu filho sem resposta. Era uma pergunta simples e consultar o gúgol para isso era derrota.

Lembrei-me, então, dos tempos de estudante, das questões discursivas que não tinha a menor ideia da resposta justa, mas para não deixá-las em branco, usava da minha criatividade e mandava ver na redação colocando algumas palavras que me lembrava ter ouvido em sala tomando o cuidado de não despertar a ira do professor ao ler o texto que lhe oferecia. Com essa tática, acertei algumas e ganhei zero em tantas outras, ou seja, o saldo foi positivo ainda que mínimo. Lembro-me, para citar apenas um exemplo, que na prova de artes a pergunta era: quem foi Sandro Botticelli? Ora, estávamos estudando os pintores renascentistas, então, comecei falando que Sandro Botticelli foi um grande pintor renascentista. É claro que eu sabia que o professor queria como resposta que eu redigisse sobre a obra dele. E foi aí que eu aprendi que se você quiser enrolar bonito você deve citar a maior quantidade de detalhes que puder. A pessoa que vai receber a informação vai ficar intimidada e sem saber direito com quem está falando. Isso posto, Boticelli, antes de se mudar para Nápoles, mais precisamente entre 1489 e 1492, viveu o seu momento mais fértil. Após a morte de sua mãe, dona Rigoletta, em 19 de outubro de 1488, Boticelli pintava quase todo o tempo em que estava acordado. O quadro mais famoso nessa época, datado de 23 de Julho de 1490 e intitulado “Nariz de Palhaço” causou alvoroço na elite burguesa italiana e… bom, e por aí foi. Eram tantas informações precisas com nomes de ruas, de amigos, de escolas que havia inventado que já nem me lembro mais. O professor nem pensou duas vezes, deu-me o ponto pra lá de merecido. Isso mudou a minha vida. De lá para cá, desenvolvi essa arte e a uso sempre que me sinto acuada. Quando me perguntam, no meio acadêmico principalmente, se sei falar japonês, respondo com segurança que sim e começo a falar com entonação os nomes de todos os meus primos. Quem me ouve fica encantado e ganho pontos no conceito que a pessoa faz de mim. O método, como disse, é bastante seguro. Conto esse e outros sucessos para os meus filhos com muito orgulho. Nara, a minha filha do meio, esperta que só, já utilizou em diversas apresentações de trabalho que não teve tempo de preparar direito porque estava ocupada cantando ou aprendendo alguma música nova no piano.

Mas voltemos para a bigorna.

– Yuki, meu filho, a bigorna é algo que é da cor preta sempre, pesado, ou seja, não é para jogar pro alto, ela precisa ficar no chão. Onde ela pode ser usada, então? – Fingi que estava testando a sua inteligência, pois, a minha estava deixando a desejar. Não tinha ainda a menor ideia do que responder.
– Como uma mesa? – Respondeu-me rapidamente.
– Exato, meu filho! – Como não havia pensado nisso? – Precisamos da bigorna como uma mesa porque fazemos coisas nela e ela não pode sair do lugar com facilidade. Ela tem que ficar bem presa ao chão. Quero ver se você é mesmo esperto. Me dê um exemplo de algo que fazemos em cima de uma mesa e que a mesa não pode sair do lugar.
– Tudo né, mãe. Se eu tiver comendo, escrevendo, desenhando e a mesa sair do lugar…
– É. Mas pretenção. Não subestime a minha pergunta. Talvez eu tenha me expressado mal. – Pensava lentamente. – Não é só ficar presa ao chão. A bigorna é feita de um material bem denso, ela tem que ser resistente. Então, ela serve para fazermos coisas, tipo martelar em cima dela e ela não rachar ao meio. Donde se conclui que a bigorna serve para martelarmos coisas, tipo ferro, em cima dela. – Concluía enquanto falava. – Mas é claro, isso é o objetivo secundário desse objeto. Ela foi feita para acertar o coiote.
– Jamais o papa-léguas?
– Jamais! Muito bem observado, Yuki. Quando a coisa nasce com um propósito, com um destino, dificilmente conseguimos mudar a essência dessa coisa. Caso consigamos isso é feito à custa de uma consequência para quem lhe deu uma outra serventia.
– Tipo bala de revólver?
– Tipo isso. Se atingirmos uma pessoa boa com uma bala, a pessoa que atirou vai pagar caro por isso.
– Mãe, você sempre explica as coisas de uma forma que  entendo. Obrigado, mãe.

Boticelli não tem ideia de como ele decorou e coloriu a minha vida.

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