“Ideologia, eu quero uma pra viver.”

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É comum vermos nas redes sociais brigas entre o pessoal “de esquerda” e “de direita”. Não é a mesma coisa, mas quando leio um texto apaixonado de uma pessoa que se diz estar em um desses dois extremos, lembro-me muito das discussões no campo da religião e do ateísmo. Vejo ataques de ambos os lados, tanto nos extremos do campo religioso quanto  do político; mas neste último, algo interessante acontece. Por vezes, diante dos mesmos números, dos mesmos fatos, dos mesmos fenômenos ambos os lados conseguem justificar a escolha da posição tomada. Ou seja, ser “de esquerda” ou “de direita” consiste, sobretudo, em uma diferença entre duas percepções da realidade.

Há vários cientistas políticos, sociólogos, filósofos e historiadores que explicam essa diferença entre esquerda e direita, mas estão longe de chegar a um consenso. Há muitos que começam nos lembrando que esses termos remontam à Revolução Francesa. Lembram-se das aulas de história? Os Girondinos, à direita no plenário da Assembléia nacional, representavam os nobres e os burgueses ricos; os Jacobinos, sentados à esquerda, eram representantes da pequena burguesia e do povo. Há quem afirme que a diferença veio de muito antes. Se nem o passado nos é claro, imagine o presente. Atualmente, há até quem defenda que a diferença não existe mais.

De qualquer forma, hoje ou no pretérito conseguimos enxergar as posições de esquerda e de direita, a despeito das várias nuances em cada tempo e local no mundo. E está longe de poder ser redutível e discutível na superficialidade como é feito em postagens em redes sociais com fotos e piadas, em sua grande maioria sempre desqualificando o outro lado. “Eu corrompo, mas você corrompeu muito mais” não é o discurso que eu quero levar em consideração para essa análise, mesmo porque por esse caminho daremos não com os burros n´água, mas em um lamaçal fétido. Para expôr esse cenário, por exemplo: a direita muitas vezes se legitima em nome da experiência consolidada, da segurança e da prudência, ainda quando, na prática, vemos os conhecimentos sendo desprezados, as experiências esquecidas e as imprudências correndo a olhos vistos como os esgotos nas comunidades que colocam em risco todos que ali moram. Por outro lado, a esquerda se pauta no presente e na esperança de um belo mundo no futuro pleno de matas mais verdes, céus mais azuis e pessoas mais livres. Mas, na prática, temos posicionamentos que podemos interpretar como injustos, maldosos, e quiçá piores do que já vimos no passado. Então, de nada nos serve seguir por essa estrada porque, no plenário, onde daremos, a diferença se esvai. Ocorreu, afinal, a esperada inversão de comportamentos depois da vitória da esquerda nos últimos embates presidenciais?

Já fui ingênua e acreditei que tínhamos de um lado a falta de princípios por parte da direita e, de outro, uma tendência clara da esquerda em direção às normas éticas ou morais na forma de se conduzir em política. Reconheço que nada saiu exatamente como as minhas expectativas, e diante no novo quadro que se apresentou, perguntei-me se ainda podemos acreditar na existência de diferenças reais de comportamento, de postura prática, de atitudes mentais no grande jogo da política. Há ainda, de fato, alguma oposição fundamental, alguma separação que não seja uma bifurcação ética entre a esquerda e a direita no nosso país? É uma questão que, a meu ver, não é simples, mas que se faz urgente respondê-la, pois temos, por natureza, que agrupar forças para que lutemos por um Brasil melhor. Temos que querer, então, assim como Cazuza, uma ideologia para viver e exercer a nossa cidadania.

Também não quero cair na ladainha de ficar falando mal de brasileiro ou fazendo piada com o Brasil. Estamos vendo pelos noticiários que o problema não é só nosso. Podemos dizer que nos países ditos desenvolvidos há uma classe política “mais virtuosa” que a nossa? Claro que não. Em se tratando de política, o comportamento suspeito é universal, ainda que tenhamos um cenário específico do ponto de vista da ética pública. Para consertar o que aqui está no nosso país, precisamos como todos sabemos, de uma reforma e que esta seja, acima de tudo, uma reforma moral para que nos posicionemos diferente em relação ao comportamento dos nossos políticos que, pasmem, são os escolhidos por nós.

Mas, então, onde se dá a diferença da esquerda ou da direita se não mais a encontramos nos valores da moralidade individual dos militantes dos partidos? Podemos encontrá-la em textos preconceituosos como os de Rodrigo Constantino que escreve no jornal O Globo? Em sua coluna ele afirmou que um esquerdista é aquele que “jamais precisa se importar com a coerência, com o resultado concreto de suas ideias, com pobres de carne e osso”, pois “ele goza de um álibi prévio contra qualquer acusação, afinal, é de esquerda, ou seja, possui as mais lindas intenções”. E isso, segundo Constantino “é o suficiente. Um esquerdista pode tudo!”. Acho complicado atacar dessa forma, porque não há dúvidas que a resposta pode ser, no mínimo, muito desfavorável à posição política que o jornal, como um todo, defende. Bah. De que adianta, estimular a briga e a impaciência em ambas as partes? Eu que não quero dialogar com pessoas que sofrem da síndrome de pânico conspiratório e não sabem se defender de uma forma diferente senão a de atacar.

Hoje, penso eu, para perceber a diferença temos que observar não mais a ideologia de cada partido, e sim as maneiras diferentes de cada um de vivenciar o tempo histórico, como já me disse um dia Olavo de Carvalho. E a partir daqui, posiciono-me politicamente com o que observo e com as diferentes narrações contadas pelos mais diversos jornais de um mesmo fato e/ou diante uma mesma planilha de dados.

O meu foco está na relação que cada vertente tem com o trabalho e a educação. Verifiquei que os ruralistas, por exemplo, e os grandes latifundiários são rotulados como membros das classes produtoras. Perguntei-me sobre quem realmente produz. Onde ficam os trabalhadores de campo em alguns jornais e que porcentagem da reportagem é dada a eles? Estendi essa pergunta para vários outros meios de produção em nosso país. Procurei respostas em diversos jornais e revistas e as obtive em formas diversas, quiçá contraditórias. Sobre o programa Bolsa-família, outro exemplo, temos, diante os mesmos números, os que consideram que a bolsa estimula a inércia, premiando milhões de vagabundos e, do outro lado, temos aqueles que apontam que dezenas de milhões de brasileiros saíram da miséria e acreditam que esses vão mais longe se fiando na notícia que um milhão de “bolsistas” devolveram a sua bolsa ao Governo porque já conseguiram caminhar sozinhos. O objetivo da esquerda é claramente modificar a sociedade, mudando a estrutura social e os meios de produção, e isso exige uma organização e um empenho que, de fato, está bastante questionável. Mas continuando… Sobre o programa das cotas, temos claramente de um lado pessoas dizendo que a política está premiando os piores, ou seja, atrapalhando a “seleção natural”. Do outro lado, há os que lutam pelas cotas como instrumento de correção social, um pagamento de dívidas históricas contraídas ao longo da história. Não quero, porém, ficar no lugar-comum dessa avaliação, ainda mais sendo uma educadora. Não vou me enveredar na discussão sobre capacidade intelectual e conhecimento adquirido, mas quero, ainda assim, insistir no tema.

Na posição de professora de física que já trabalhou na rede particular, na rede estadual e que hoje trabalha na rede federal com 50% de seus alunos cotistas, levanto a bandeira que a relação escola-cidadania presente nos nossos documentos oficiais precisa ser analisada com um cuidado especial. De fato, a educação sempre esteve a serviço de um determinado tipo de cidadania. Queremos que a educação forme um sujeito reflexivo, crítico, que fomenta a emancipação popular ou queremos que ela seja a responsável pela formação de indivíduos acríticos, obedientes e conformistas, contribuindo para manutenção de um quadro de inércia coletiva diante das questões sociais? Na história da educação brasileira, até mesmo na época da ditadura, a legislação educacional não deixou de mencionar, como principal finalidade do processo educacional, a formação do cidadão. Há muitos paradigmas de cidadania e temos que saber qual está sendo adotado na educação: para as elites condutoras ou para as massas a serem conduzidas? Analisando os documentos oficiais, a resposta foi clara. Afinal, não podemos e não devemos considerar que a escola pode se aproximar de instituições vinculadas não aos interesses concretos do povo, mas sim aos interesses dos processos produtivos? Se tomarmos em consideração que vivemos em um país que condenou milhares de pessoas a uma vida demarcada por condições de miséria, desemprego, violência, e demais indicativos de condições sociais inaceitáveis e as políticas sociais que o atual governo está implantando, o assunto ‘cidadania’ deverá ser, no mínimo, mais esclarecido. E em verdade, em verdade vos digo, que o ensino de ciências praticado na maioria das escolas brasileiras, contribui como um instrumental de formação política e não-reflexão sobre as mazelas do país e do mundo, além de influenciar a postura do indivíduo diante dos problemas que nos afetam diretamente como a saúde pública, por exemplo. Quanto a isso, há muito estudo em andamento da minha parte e muitas discussões filosóficas das quais participo, mas gostaria que pensassem sobre uma questão: qual a porcentagem que a educação científica recebida nas escolas teve, citando um exemplo atual, para a atitude arisca dos médicos brasileiros em relação à vinda dos médicos cubanos com o propósito de atuarem em áreas inóspitas nas quais os médicos brasileiros se recusaram a trabalhar? Adianto parte da minha conclusão: 100%.

Ao ver médicos que ajudei a formar, percebi que estava, sem saber, imersa até o último fio de cabelo nesse sistema que se auto-reproduz “naturalmente” e ajudando a fortalecê-lo. Para quem não acredita no minha conclusão, pergunto-vos: Em que medida seus professores de ciências ajudaram a formular o conceito de ‘ciência’, ‘cientista’, ‘método científico’, ‘saúde’, ‘vida’, ‘organismo, natureza’, etc. que você tem hoje? Em que medida o seu professor de física estimulou você a refletir sobre esses conceitos? Já ouviu dizer que “a ciência é linda”? Que é “um conhecimento que se dá apoiado em bases sólidas”? Que é “objetiva por natureza e não subjetiva como as ciências não-exatas”? Quem te iludiu quanto a isso? Afinal, a ciência não pode ser entendida como prática que se define a partir de um conjunto de crenças, princípios e normas compartilhadas por uma determinada coletividade??? Para onde vai essa objetividade?

Nessa esteira, continuo o meu raciocínio: como o professor de física, ou de ciências de uma forma geral, tem contribuído para o fortalecimento de vínculos com correntes político-educacionais que apenas alimentam a mera reprodução de um sistema e, de que forma ele tem também contribuído para que atitudes sociais sejam tomadas “conscientemente” tais como a preservação da hegemonia cultural das instituições sociais ou, por exemplo, a aceitação sobre o diagnóstico e/ou medicação prescrita por um profissional de saúde? A (ingênua) segurança que você sente ao ouvir “foi comprovado cientificamente” tem origem onde?

Nosso ensino está a serviço de um sistema que, por sua vez,  está a serviço da elite e ajuda a mantê-lo. E não é à toa que “o outro mundo” defendido pelos esquerdistas é tão difícil de ser alcançado. Não é sem motivo que as cotas são recebidas com asco por muita gente. Não é por acaso que os Constantinos que escrevem para grandes jornais de ampla penetração querem que eu me envergonhe de minha posição política, dizendo que, nós, esquerdistas, temos “um salvo-conduto para defender todo tipo de atrocidade”, não é sem propósito que somos rotulados como românticos, intelectuais, ingênuos e defensores de bandidos. Tornamo-nos, é claro, figuras teimosas, concordo, mas entendo que assim tem que ser se queremos mudar. Não é atacando o outro e sim entendendo o outro que conseguiremos lutar contra o conformismo em relação ao que está aí dito “natural”. Há de se semear com muito cuidado e fazer brotar um outro Estado, uma outra forma de vida material e cultural e novas relações sociais. Não é simples, não é fácil e não acredito que alguém saiba como fazer isso.

Diante a complexidade do assunto que está longe de se esgotar aqui (e se o faço é para não cansar mais o leitor e a mim mesma), entendo, sobretudo, que não há “uma” esquerda e “uma” direita em nosso país e que ninguém absolutamente é detentor de uma Verdade Única. Vejo muitos, como eu, refluindo sobre alguns passos, repensando em tudo o que aconteceu para que as fantasmagorias do passado não voltem a nos cegar a visão do horizonte. Isto, eu sei, não me dá a garantia de que não me iludirei novamente. O que não posso é deixar de acreditar nas urnas como um instrumento de mudança. O que não posso é deixar de acreditar em um futuro que, tal como sempre cantamos juntos, espelhe, de fato, a nossa grandeza. Continuarei fazendo isso amparada sobre a minha nova concepção de diferença entre as duas vertentes políticas. Bastante atenta. Seguindo pela esquerda.

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Como o assunto é por demais complexo, não responderei a nenhum comentário e aqueles que eu considerar agressivos vou apagar. Coloco-me à disposição para discutirmos o assunto em outra seara. No mais, o texto está longe de esgotar o que sinto e li sobre o assunto. Entendo que cada parágrafo é controverso e precisa ser fundamentado com mais profundidade. Ainda assim, decidi publicá-lo para partilhar parte de minhas inquietações sobre o tema. Afinal, Minha Vida é um Blog Aberto.

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