Quente como uma Geladeira

gelo

Antigamente, a gente colocava nossos tênis encharcados atrás da geladeira de noite e de manhãzinha eles estavam esturricados de tão secos. O mundo funcionava desta forma mega esquisita. E ficávamos extremamente felizes em viver em um lugar onde até mesmo nossos sapatos eram tratados com calor por algo que nasceu para fazer gelo. Diziam para nós, agora veja, que isso estragaria o fabuloso eletrodoméstico porque ele não havia sido feito para aquilo, a dizer, trabalhar de forma contrária a sua essência. Mas eles mentiam descaradamente quando diziam isso e a prova de que o mundo era extremamente surpreendente era que nunca ninguém jamais viu um refrigerador pifar por termos descoberto, digamos, que ele possui outras naturezas e que a despeito de serem contrárias aos olhos dos físicos e dos engenheiros, não eram para nós. Nós que, de vez em quando, usávamos o final do dia para nos livrarmos de algumas sujeiras utilizando sabão, muita água quiçá cantarolando algo na certeza de que no dia seguinte estaria tudo pronto para caminharmos com os nossos tênis que de tão nossos possuíam internamente o formato de nossos pés.

E sempre era assim. No outro dia, pegávamos os calcantes decididos sem nos importar o quanto éramos esbofeteados pela vida. Por um momento, eles não eram apenas uma preocupação a menos, pois driblávamos a ciência e isso nunca foi pouca coisa. Nenhum problema social nem moral, nem a miséria no mundo ou guerra de classes, nem a ditadura e as crises nas artes, nada passava pela nossa cabeça quando olhávamos para nossos calçados secos a não ser calcar com eles o chão de um globo que nos pertencia. Daí, a rigidez de nossos passos, o orgulho de nossas atitudes e aquele ar de tranquilidade…sim, a felicidade já foi para nós um par de tênis que usufruiu de uma mágica, de um suspiro de esperteza. Como nos sentíamos astutos e capciosos ao arrastar a geladeira e tirarmos de suas costas, devidamente enxuto, o que tornava possível a conexão com o chão álgido, cruento, duro, desumano e impiedoso tão cheio de pedras e sujeiras e sempre a postos para punir os que insistiam em andar com os pés nus!

Nos dias de hoje,  isso, pelo que tudo indica, não é mais possível. Mudaram a estrutura externa das geladeiras de forma que não há mais como dar outro sentido a sua existência a não ser congelar, esfriar, resfriar, manter gélido e válido o que nos alimenta. Não há mais lugar  para  pendurarmos alegremente nada esperando alguma quentura nem que seja daquela forma ligeiramente furtiva.

Frias por dentro. Inúteis por fora. Assim elas se tornaram.

Então, olhando agora  para o meu all star pingando e tendo que contar com sabe lá quantas tardes de outono para secá-los e para que eles me ajudem a empurrar o mundo para trás e este, como já disse Isaac Newton, empurre-me para a frente,  pergunto-me não se estamos progredindo tecnologicamente, pois, quanto a isso não tenho dúvidas, mas em que sentido podemos dizer que estamos evoluindo, se de alguma forma não há mais lapsos de chama dissimulados, secretos, servis e vis na nossa moderna cozinha.

Eu, que poderia ser levada aos céus pelas mãos de um anjo ou ao inferno pelas mãos do capeta, sem resistência em ambos os casos e sem que, no primeiro, coubesse-me alguma glória, nem a menor desonra no segundo, e tão obstinada a jamais retroceder, trouxe meus tênis para o meu escritório onde estão todos os meus livros. Coloquei-os atrás da torre do desktop.

Vai que todo esse silêncio agitado e contido pelas capas fechadas de todos esse volumes somado a tanta energia que passa por todos esses fios me surpreendam pela manhã…

Bolsa Família

Para equilibrar o que vemos por aqui sobre o Bolsa Família. Nesse momento, muitos passarão para outra postagem porque estão de saco cheio e não querem saber de política. Mas para os que ficam comigo, uma breve reflexão. Vemos inúmeros compartilhamentos tentando convencer que o benefício é um estímulo à vagabundagem e à multiplicação dos pobres no Brasil dado que ‘filho de pobre’ é sinônimo de receber mais benefício do governo. A solução dada por esses que criticam o programa é muito simples e burra da Dilma que não pensou nisso antes: era só dar emprego do que esmola! E perguntam: È justo eu sustentar quem não quer trabalhar? Ou ainda: Acham lícito e honesto ganhar dinheiro sem trabalhar? Engraçado é perceber que quem fala isso não critica com o mesmo ódio a mais-valia, não critica os rendimentos das aplicações financeiras baseados na dívida pública federal, da aplicação nas bolsas, dos fundos de investimento… Ricos que ganham sem trabalhar ou que lucram em cima do suor de outros não são considerados vagabundos. Vai entender…

No mais, o auxílio financeiro dado às famílias em situação de extrema pobreza pelo programa Bolsa Família não desestimula os favorecidos a buscar emprego. Eu não vou citar números. Basta procurar no gúgol. Aproveite e procure também saber sobre a queda da mortalidade infantil por desnutrição e diarreia e o decaimento da taxa de fertilidade no nosso país. E pense comigo, por que alguém iria preferir a segurança do $ dado pelo programa do que um salário? A meu ver, seria porque a remuneração ou deve ser baixa demais ou a garantia de permanência no emprego inexistente, não? Fala sério… Há muita crítica sem fundamento por aqui, carregada somente de ranço politiqueiro.

O Bolsa Família foi elogiado por órgãos como Banco Mundial, ONU e FMI. Teria sido à toa? Se fosse tão ruim assim e fizesse esse estrago na mente das classes desfavorecidas tornando-as parasitas, o programa teria sido copiado por outros países e sido considerado como um exemplo de programa de distribuição de renda, combate a fome e acesso a educação e saúde básica?

É claro que o Bolsa Família não é a solução dos problemas do Brasil. Ninguém é burro de defender isso. Todos sabemos que temos que investir em educação e saúde além de infraestrutura. O Bolsa Família não é a nossa oitava maravilha, mas é muito melhor que nada. E um começo.

Para finalizar, atacam o programa dizendo que isso é uma compra de voto descarada. Quanto melhor se todas as compras de voto nos dessem dinheiro ao invés de nos tirar, não?

Tai Xi Xuan

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Hoje de manhã, um Domingo de Maio, fui correr no Parque Madureira a despeito de ser domingo, de manhã e em Madureira. O parque sempre me reserva surpresas. Por mais que o tenha frequentado, nunca volto para casa do mesmo jeito. Há sempre alguma coisa singular para onde vai o meu olhar. Porém, hoje, apesar de tanta coisa inusitada que já presenciei, vi algo estrambólico. Cada coisa excepcional que vejo no parque tem um quê de, sei lá, plural. As coisas diferentes acabam se igualando naquilo que as distinguem. Explico-me com exemplos: bateria de escola de samba formada por senhorinhas que gargalham, velhinhos aprendendo a andar de skate, gordos patinando em grupo, pique entre crianças e adultos na quadra de futebol… percebem a  semelhança? Então. O que vi hoje foi além de desigual, também divergente.

Uma senhora, negra, acima do peso, toda vestida de preto, com fones no ouvido, óculos escuros e um leque grande e vermelho fazendo uns movimentos mega esquisitos. Todos que passavam por ela olhavam espantados e riam do ser sui generis que estava ali de boa, alheio a tantas calorias sendo perdidas pelos atletas de domingo. A minha corrida de 5 km implica dois vai-e-vens na extensão do parque, de forma que passei por ela quatro vezes. Na primeira vez pensei: o que é isso, jesuis? Na segunda, meodeos…o que é isso, jesuis? Ainda aí? Na terceira não aguentei. Parei. Estava achando tão engraçado que pedi para filmar. Ela consentiu.  Minha intenção não era, confesso, plena de pureza. Iria postar o filme no feicebuque e praticar bullying com ela. Filmei. Depois, para disfarçar, fui lhe perguntar que diabos ela estava fazendo e eis que se inicia um diálogo sem precedentes em minha vida de Parque Madureira.

– O que é isso que a senhora está fazendo? – Perguntei filtrando os meus pensamentos.

– Tai Xi Xuan Xen – Ela respondeu depois de me pedir para repetir a pergunta assim que tirou os fones do ouvido.

– A senhora aprendeu isso onde? – Questionei sorrindo por dentro.

– Na Zona Sul.

Daí pensei. Logo vi. Essa coisa está muito diferente de tudo que vi por aqui. E falei:

– Logo vi. Aqui não tem dessas coisas.

– Olha, tem Tai Xi no parque. Já vi aulas abertas aqui. – Disse ela giga simpática.

– Ah sim, mas não são legais. Também já vi. Mas parecem que não permitem um mergulho profundo. Não sei, mas falta muito para ser o Tai Chi Chuan que vejo nos filmes.

– Nossa. Como você é inteligente! Como percebeu isso?

– Pela falta de comoção. – Respondi honestamente.

– Então, menina, lá na Zona Sul, de fato, tem escolas muito melhores. Faço isso há dezoito anos e hoje sou instrutora. Hoje, pela minha prática, sei que posso ensinar.

– A senhora falou que faz Tai Xi Xuan Tchen?

– Não tchen. Xen. Cê agá é ene. Ele é diferente do Iangue.  O Tai Xi Xuan Iangue tem maior flexibilidade e movimentos suaves, lentos, amplos, interligados, de ritmo homogêneo, sem interrupção. Já no Xen, os movimentos podem ser maioritariamente lentos ou rápidos e explosivos, quando pratica-se o fagin, além de assimilar a defesa pessoal.

– Entendo. A senhora pratica isso aí com que frequência?

– Ah, minha filha, todos os dias. Alcançar o equilíbrio requer um esforço diário.

– Mas nunca vi a senhora por aqui. – Se visse antes, com certeza, mas com certeza messssmo não me esqueceria.

– É que pratico em vários lugares diferentes do Rio. A monotonia faz mal ao espírito. No mais, tenho que aprender a me adaptar em ambientes diferentes e a me desconectar deles. Por exemplo, está todo mundo aqui rindo de mim e eu estou cagando para todos eles. Isso é fruto de muito equilíbrio.

– Ah sim… Então… sendo sincera, foi isso que me chamou atenção na senhora. A sua independência.

– Mas você, menina, é muito inteligente mesmo. O que você faz?

Nesse momento, pensei que dependendo do que falasse, ela iria tentar traçar o meu perfil ou questionar a minha escolha como tantos fazem. Professora de física definitivamente não era uma boa resposta. Dada a pressa e a intuição respondi:

– Sou leitora.

– Ah. Entendi tudo. Você está me lendo agora!

– Justamente. A senhora é muito inteligente também! – Disse com um sorriso super sincero. – E o que a senhora estava ouvindo?

– Ouça você. – E me deu os fones. Ouvi uma música celeste. Quase dormi em um minuto que me permiti viajar naquele som debaixo de um Sol e em pé em cima de um asfalto.

– Muito bom! Sem música não rola os movimentos?

– Rola, mas ela facilita.

– Tipo uma enzima.

– Menina, mas como você é inteligente!

– E o que a senhora sente depois que faz isso dessa maneira? – Perguntei sendo bem franca porque definitivamente aquilo não era Tai Chi Chuan Chen.

– Não consigo te explicar.

– Entendo. Eu tenho que fazer e sentir a essência da coisa que é indecifrável, inexplicável por palavras. – … – Sim, senhora, eu sou muito inteligente!

Rimos as duas. Expliquei a ela que nunca fiz nada, mas sei que há um mundo onde isso tudo existe. Disse que entendo a viagem dela porque, de certa forma, quando batucamos todos juntos no terraço, quando todos os corações batem na mesma frequência, a alma se lava e tornamo-nos mais leves quando nos livramos de certas impurezas cantando. Disse que tenho enxaqueca e tomo remédio todo dia para dormir.

– Você está buscando alternativas para isso, não? Sabe que a felicidade plural ajuda, mas percebe que não é suficiente. O seu equilíbrio deve ser buscado por você e inteligente como você é, entendeu isso. E por isso você parou para conversar comigo porque me vendo sabe que eu consegui dominar a minha mente. Ou que, pelo menos, domino muito melhor do que você.

– É. Bem. Na verdade, não foi bem isso. – Gaguejei envergonhada.

– Foi sim, minha filha. Acredite.- Disse ela levantando os óculos escuros e olhando para além das minhas pupilas. – E se precisar de mim, anota o meu telefone que te ajudo no que precisar.

Telefones devidamente trocados.

Como disse, o parque sempre me reserva surpresas e sempre retorno diferente para casa. Mas hoje voltei com um regalo valioso. Uma nova amizade.

Zero pro preconceito. Ponto pra poesia.

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Se quiserem conhecer minha nova amiga:

Tai Xi Xuan Xen

Mantendo os Planos

telefone

– Bom dia, dona Elika, em que posso ajudar?

– Alô, vivo? Estou querendo mais internet no meu celular.

– Ok. Qual o seu plano?

– Bem, eu gostaria de terminar de escrever três livros ainda neste ano. E também aprender alguma técnica de pintura em tela. Tenho planos também, agora, de me livrar da culpa que sinto por ter matado minha cachorrinha atropelada e também da amitriptilina para dormir e iniciar, quem sabe, a meditação. Gostaria de ter uma galinha muito peluda para cuidar. Agora mesmo estava também planejando fazer uns vídeos com a Nara. Gostaria também, de alguma forma, de melhorar a educação no Brasil. Ah! E terminar de ler Proust!

Silêncio.

– Não foi isso que você queria saber, né? Entendi. E entendi também, dando a resposta não errada, mas a não esperada, que não preciso alterar plano nenhum. Pelo contrário. Preciso fortalecer e realizar os que tenho. Muito obrigada pela pergunta e por ter me ouvido.

– A Vivo agradece a sua ligação, dona Elika. Tenha um bom dia, disposição, força e muito sucesso!

Dei nota dez no atendimento.

Foi sem querer…

Yorkshire-Terrier-11

Hoje sem querer atropelei a Pati, minha yorkshire, quando dava ré na garagem. Ela estava velhinha, surda e com a visão comprometida. Eu com pressa…

Corri com ela para o veterinário, mas ela não resistiu. 

Tivemos uma relação sempre conturbada. Ela não fez absolutamente nada certo em catorze anos. Nunca consegui cochilar em casa porque ela latia para a brisa que entrava pela janela. Latia para a luz apagada. Latia para eu abrir a porta. Latia para eu fechar a porta. Jamais! fez xixi no mesmo lugar em toda a vida. Moro em uma casa enorme, mas ela sempre fazia cocô na porta da casa do vizinho que jamais hesitou em reclamar da falta de educação dela. Eu não sabia mais o que dizer para ela. Pati não aceitou cruzar com yorks lindos e premiados que arrumei para serem meus genros. Acabou dando  para um pinscher, uma evolução pokemoniana de rato, da vizinha da frente. Teve três filhotes horríveis e foi uma péssima mãe. Arrotava alto quando comia ração e sempre se alimentava junto com a gente. Toda refeição, um arroto do cão. Peidava quando dormia e sempre se deitou ao meu lado. Fazia-me sonhar com esgotos. Mordia-me quando eu lhe dava banho e subia na mesa escondida para comer nossa comida.

Enfim, hoje, sem querer, sem querer mesmo, acabei com a vida de uma cachorrinha que era do avesso. Não tenho para quem pedir perdão e talvez por isso estou simplesmente com a sensação de ter não um bolo na garganta, mas uma melancia. Pedi desculpas para ela enquanto corria para o veterinário. Desculpa desculpa desculpa, Pati. Foi sem querer. Foi sem querer… Desculpa desculpa desculpa… Mas sei que ela não me ouvia por ter a audição comprometida há tempos. Entrei em desespero quando vi seu corpo sem aquela alma agitada, excêntrica, animal. E daria não tudo, mas muito do que tenho, para dar a ela de volta o que tirei ao esmagá-la por dentro com o peso do meu carro e de meus pensamentos.

Que meu luto sirva de aprendizado. Cuidarei de tudo o que está a minha volta com muito mais amor. Prometo prometo prometo. Eu não quero nunca mais ferir nem de leve um outro ser. Ainda que seja um cachorro. Ainda que seja parecido com a maluca da Pati…

Diante tanta dor que sinto, só me pergunto como pode alguém fazer mal a outro ser humano. Pareço eu quem fui atropelada. O mal que fazemos, com ou sem querer para alguém, reflete, acho eu me baseando no incômodo de meu corpo agora, diretamente em nós mesmos.

Conversando com Yuki e mais outros poetas

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-Mãe, por que você lê segurando um lápis? – Perguntou-me Yuki, meu caçula de sete anos.
-Ora, porque gosto de sublinhar as partes que eu gosto muito. Assim, quando eu quiser vê-las de novo, é só dar uma foleadinha básica e pronto.
– Posso ver o que vc já sublinhou?
– Sim! Claro! 

E entreguei, para uma breve apreciação da criança, Michel Proust de 600 páginas com 380 lidas e váááááárias passagens marcadas.

– Interessante. – Disse-me Yuki antes de sair de perto e voltar para a sua saga Pokemon.

Uns quarenta minutos depois, ele volta.

-Já sublinhou mais coisas? Posso ver como anda a conversa de vocês?

Engraçado, pensei eu. Quando rabisco meus livros é exatamente isso que eu sinto, que ouvi e que de certa forma estou dizendo algo também para o autor. No momento em que a ponta do lápis toca a página, um diálogo sempre, para mim, é iniciado.

– Não sublinhei nada desde então, Yuki.
– Você só está ouvindo né, mãe?
– Justamente, meu filho.

*-*