“Tô iluminado pra poder cegar, Tô ficando cego pra poder guiar”

De uns tempos para cá mudei radicalmente a minha forma de ensinar. Ao ver o discurso de profissionais que ajudei a formar, percebi que estava, sem saber, imersa nesse sistema que se auto-reproduz “naturalmente” e ajudando a fortalecê-lo. Perguntei-me: em que medida eu ajudo os meus alunos a formular o conceito de ‘ciência’, ‘cientista’, ‘método científico’, ‘saúde’, ‘vida’, ‘organismo, natureza’, etc. ? Em que medida eu estimulo meus alunos a refletirem sobre esses conceitos?

No mais, constatei claramente que os programas escolares se baseiam no pressuposto que os conhecimentos podem ser adquiridos em uma ordem lógica pré-determinada. Ou seja, nem sonham em levar em consideração que o aprendizado só acontece em resposta a um desafio, a uma curiosidade. Isso, de certa forma, justifica a reclamação de tantos alunos quanto à necessidade daquilo que se está aprendendo dentro da escola. Vi, nitidamente, que fui objeto de tortura para quem “ensinava”. Não é à toa que crianças e adolescentes vibram quando um professor fica doente. E se ficamos horrorizados com isso é porque queremos, ainda que de forma inconsciente, que eles sejam como os necrófilos que se excitam diante um cadáver. Conhecimento morto que não serve para nada, para que?

Como professora de física, verifiquei notoriamente que muitas escolas particulares que usam seus laboratórios como vitrine para os pais para mostrar que se trata de uma escola moderna e bem equipada, de educação, nada sabem. Muitos desses laboratórios não só nada ensinam como fazem pior, enganam. Explico-me: o que os equipamentos mega moderninhos dizem é “é assim que se faz ciência de qualidade”. Não é nada disso. Ciência não é coisa que se faça em laboratórios. Ou melhor, dispensam-os facilmente, pois ciência se faz em qualquer lugar. Quando perguntaram a Einstein onde ficava o laboratório em que ele trabalhava, ele apontou para sua peruca branca descabelada. O famoso físico sabia muito bem o que dizia. Para se fazer ciência basta usar a cabeça. E a primeira tarefa de um professor de física deve ser ensinar a pensar, a perguntar e não ensinar a responder.

Nossos currículos são organizados em função de uma razão maior que está longe de ser o benefício dos alunos como seres humanos e pensantes. É mais ou menos assim, os currículos de nossas escolas servem para “formar” os alunos, na verdade, enformá-los, dito mais honestamente, deformá-los. E bem sabemos que tudo o que é “formado” é fechado. Ora, a educação não seria muito mais útil se abrisse nossos horizontes ao invés de limitá-los?

Cansei de deformar adolescentes. Dei o meu basta este ano. Há tempos percebia que a física que eu ensinava era um desserviço para a sociedade porque não servia para absolutamente nada a não ser passar no vestibular. Quem aqui usou a equação de Torricelli na vida? Eu mesma, como professora de física, jamais usei sem ser em sala de aula. Saber da existência da equação é uma coisa, compreender a sua origem idem, mas resolver um problema onde se pretende calcular se o carro vai ou não atropelar a vaca quando está a uma determinada distância da mesma e imprime ao carro uma dada aceleração… para que isso? O que isso acrescenta no meu aluno para que ele se torne mais crítico? Em que medida essa prática estimula a criatividade?

E o educador é, acima de tudo, um político, quer ele queira ou não. Trabalhando em cima do currículo-padrão, ele contribui como um instrumental de formação política e não-reflexão sobre as mazelas do país e do mundo, além de influenciar a postura do indivíduo diante dos problemas que nos afetam diretamente como a saúde pública, por exemplo. Ou ele bem ajuda a formar um sujeito reflexivo, crítico, que fomente a emancipação popular ou ele bem forma indivíduos acríticos, obedientes e conformistas, contribuindo para manutenção de um quadro de inércia coletiva diante das questões sociais.

Fazemos nossos alunos acreditar que uma aula termina quando a outra começa e que a matemática é a única forma em que a natureza se manifesta para os cientistas. Nas escolas brasileiras, os professores competem entre si em grau de importância da disciplina que leciona. Estimulam a ideia de que há uma diferença entre ciências exatas e todas as demais. Assim, formamos, literalmente, somente para citar alguns exemplos, psicólogos que não sabem fazer conta e engenheiros que não gostam de poesia. Dividimos o uno. E cérebro desses seres, monstros do dr. Frankstein que são nossos alunos, é usado como mero depósito de informações, em sua maioria, irrelevantes.

Não.

Não quero mais isso. Quero meus alunos usando a cabeça para conectar os dados que lhe são apresentados. Que eles aprendam a analisá-los, criticá-los e a reflirem sobre eles. Todo e qualquer conhecimento por nós, de fato, adquirido começa com uma interrogação e não com uma afirmação desinteressante de alguém em pé na nossa frente. Tudo se inicia na curiosidade e não na autoridade de um professor. Nosso modelo de educação entende muito bem da arte de doutrinar, habilitar, instruir, pontificar, mas pouco ou nada contribuem para alumiar mente nenhuma, pelo contrário, anuviam-na.

Educar é causar espanto, já dizia o mestre Rubem Alves. É provocar a dúvida. Minha luta hoje na educação é por uma escola em que os alunos não sejam ensinados e sim aprendam. E que todos percebam essa enorme diferença.

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