Converse com estranhos, meu filho.

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Quando era pequena, quer dizer, menor, meus pais me orientavam: não fale com estranhos. Eu desde os 11 anos já ia de ônibus para a escola sozinha. Antigamente era assim. Não havia um pedófilo a cada esquina (pelo menos a sensação de ter) e o play era na rua sem brinquedos e chão emborrachados.

Mas eu não entendia direito essa parada de “não fale com estranhos”. Qual a definição de “estranho”? Para mim, estranho era algo como o homem do saco, um mendigo qualquer ou um homem cheio de piercings e tatuagens de caveira. Mulher com cabelos grisalhos e verruga no nariz também. Fora esses, sempre dei papo para geral na rua. E se tem uma coisa que é legal nesse mundo é conversar com gente que não conhecemos, fazer excursão em becos que são a antítese de nosso lar e amizades com gente exótica. E se encontrasse um alienígena, que sorte teria!

Se viajo e quando viajo, o bom mesmo é explorar as pessoas. Dialogar em outro idioma, desenhar, gesticular, aprender com um nativo a falar palavrão e como agradecer são a cereja do bolo do passeio. Na verdade, nem precisamos sair de nosso bairro para nos depararmos com algo bem singular a nós. Basta conversar com o vizinho e voilá um outro continente. Bom lembrar.

Agora a mãe sou eu e meus filhos vivem conectados como qualquer um de nós. Não posso ser incoerente e hipócrita. Então, aqui em casa a ordem é: falem com estranhos, brinquem com estranhos, aprendam com estranhos.  Claro que dou orientações quanto aos mal intencionados, mas é para aproveitar à vera e à brinca a oportunidade de viver nesse albergue gigantesco internáutico sem dar a cópia da chave de nossa porta, senha de banco, telefone e endereço. Isso não. Só isso. Sem neura de precisar levantar a ficha, cartas de recomendação e atestados de bons antecedentes do novo amigo que, de repente, jamais verá pessoalmente. Estranho é legal. Estranho é maneiro. Cuidado com as exceções e vai ser feliz, meu filho.

É isso. E se você pensa que estou delirando, saiba que estou bem sóbria e consciente e que tem muita gente que te acha mega estranho. Sorte a minha se sou sua amiga. Super adoro gente esquisita.

Elika, quem matou Estácio de Sá?

Imaginacao

Quando eu era criança, estudava com a minha mãe todo santo dia. Depois do almoço, ela deixava a gente brincar um pouco no quintal enquanto lavava a louça. Depois limpava bem a mesa da cozinha, colocava todo o meu material arrumadinho, os lápis apontados e me chamava para estudar. Quando não havia matéria nova, ela ficava fazendo revisão da antiga ou mandava eu ler alguma coisa ou ficar, por exemplo, ouvindo o disquinho da tabuada para memorizar aquela budega.

O ensino mudou muito. Hoje não se decora mais nada. Mas antigamente era tudo diferente. Mamãe procurava deixar as coisas o mais leve possível, mas para algumas perguntas, eu tinha que saber a resposta certeira. Pois muito bem. O assunto que cairia na prova seguinte era sobre o Rio de Janeiro.

Lembro-me de uma tarde que ficou literalmente para história. Minha mãe, como sempre, estava lendo o texto para mim e me explicando.

– Elika, Estácio de Sá era sobrinho do Governador Geral do Brasil, Mem de Sá. Em 1563 chegou a Salvador, Bahia, com a missão de fundar uma cidade nas terras da Guanabara e expulsar definitivamente os franceses que ainda permaneciam na Baía de Guanabara. No dia 1° de março de 1565, Estácio de Sá veio a fundar a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Elika, quem fundou a cidade do Rio de Janeiro?

Pensava eu com meus oito nove anos: coitada da minha mãe…

Daí, ela repetia toda aquela ladainha mais alto e no final:

– Elika, quem fundou a cidade do Rio de Janeiro?

Morria de pena da mamãe. Ela havia enlouquecido de vez…

Vendo que não tinha jeito, ela tentou frases mais curtas:

– Durante a Batalha de Uruçu-mirim, Estácio de Sá foi ferido por uma flecha lançada por um índio bem no rosto, e faleceu em 20 de fevereiro, em decorrência dos ferimentos. Elika, quem matou Estácio de Sá?

Vixi. Agora eu estava morrendo de medo. Era pequena e não sabia como agir quando percebemos que nossa mãe não está batendo bem das ideias. Ela mesmo pediu socorro ao meu pai grazadeus.

– Takimoto! Corre aqui!

Eu quieta olhando assustada para ela.

– Veja isso, Taki! Elika, Estácio de Sá foi ferido por uma flecha lançada por um índio bem no rosto, e faleceu em 20 de fevereiro, em decorrência dos ferimentos. Elika, quem matou Estácio de Sá?

Eu olhava para meu pai na esperança que ele resolvesse aquele problemaço.

– Por que você não responde a sua mãe, filha? – Questionou-me papai para o meu desalento geral.

– Elika, QUEM MATOU ESTÁCIO DE SÁ? – Gritava a louca.

– Responde, Elika! – Papai se exaltava.

Papai é japonês e não teria capacidade de entender o quão biruta minha mãe estava. Eu já não sabia mais o que fazer. Se respondesse o que ela queria, corroboraria a doença.

– Elika, QUEM MATOU ESTÁCIO DE SÁ? – Berrava a doida varrida.

E ficamos um bom tempo assim. Papai desistiu e saiu de perto. Ela preocupada comigo e eu muito mais com ela. Lembro-me que eu estava firme, não responderia a perguntas sem sentido e, de fato, não o fiz!

– Elika, que dia que o Rio de Janeiro foi fundado? – Tentava ela outras perguntas.

–  1° de março de 1565. – Respondia eu prontamente.

– Elika, quem matou Estácio de Sá?

Silêncio.

Maluca.

A noite, antes de dormir, mamãe veio ao meu quarto me dar banoite como sempre fazia. Sentou-se na beira da minha cama, fez-me um carinho materno mega normal, abaixou-se para me dar um beijim mega nomal também, mas ao invés de me desejar a companhia dos anjos, falou:

– Elika, quem matou Estácio de Sá?

Benzi-me. Respirei fundo e respondi:

– Mãe, você está louca. Como pode Mem de Sá ser tio de Estácio de Sá? Isso é nome de lugar e não de gente. Como pode chão ser ferido no rosto? Como pode um terreno se auto fundar a si próprio? Como pode alguém se chamar Mem, mãe? Isso não existe! Nenhum índio fere um bairro ou uma rua com uma flecha, mãe! Mem não é nome de governador. Estácio não é nome de gente. Para com isso, mãe. Papo de doido, mãe. Para. Pelamordedeos…

Sei que minha mãe gargalhou alto como deve ter feito quem descobriu o Brasil, a dizer, Pedro (nome de gente. ok. beleza.) Álvares Cabral.

Enfim, depois de tudo esclarecido e também que Barros Filho, Bento Ribeiro, Brás de Pina, Cavalcanti, Cosme Velho entre outros, antes de serem nomes de bairros, foram apelidos de gente importante, eu, enfim, falei para alívio de Dona Ruth:

– Agora entendi tudo, mãe. Um índio matou Estácio de Sá que era sobrinho de verdade de um moço de verdade também chamado Mem. De Sá. Entendi. Brigado, mãe.

Eu estava mega feliz menos por ter compreendido a história do que pela alegria de voltar a ter uma mãe normal. A sensação daquela noite foi de ter dobrado o Cabo da Boa Esperança viu. Lembro-me direitim… Tal como o fez Bartolomeu Dias, em 1488, pensava quietinha olhando para o rosto de mamãe que sorria emocionada. Ele chegou lá nas águas cheias de tormentas, pegou o cabo que só podia ser de ferro e com a mó força, curvou-o lentamente. E renovado de forças e esperanças, descobriu as Índias. Assim eu me sentia, tal como Bartolomeu Dias.

Jamais vou me esquecer dessa história…

Cá com meus botões

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Virou febre. Listas, listas e mais listas. Lista de 100 coisas que se deve fazer antes de morrer, 50 lugares que você deve visitar antes de ter filhos, 20 sintomas que você é infeliz, 30 livros que vão mudar sua vida, 20 filmes que vão te deixar culto, as 10 profissões mais felizes,aff… e tem até números quebrados!, outro dia li “24 sinais que sua filha é sua amiga”. Bah, que diabos essa exatidão toda?

Para mim, basta um tiro certeiro. Antes de morrer, todos devemos perdoar; antes de ter filhos, precisamos ir ao topo da montanha para pensar se, de fato, queremos; para saber se é infeliz, basta pensar se é melhor dormir ou acordar (os felizes amam dormir e não se sentem mal por isso); leia Rubem Braga e jamais será o mesmo; veja o filme que tiver vontade e se lixe para ficar culto (caso contrário irá ter problemas para dormir); trabalhe com o que mais te desafie…

Ah. E para saber se a minha filha é minha amiga, para mim, foi, como defendo, suficiente uma experiência:

Andava eu deprimida com a vida no centrão muvucado de Madureira com a Nara. De repente, ela vê uma loja de máquinas de costura onde havia bacias e mais bacias cheias de botões. Ela gritou “olha, mãe!” apontando para aqueles recipientes de plástico.

Corremos ao mesmo tempo para meter a mão até o fundo das tigelonas e ficar mexendo para lá e para cá nos botões pelo simples prazer de ver ondas de botão feitas por nós e senti-los passando por entre os dedos. Botões. Muuuuitos botões. De vários tipos e tamanhos! Fizemos tudo isso em silêncio e rindo de alegria por viver essa ímpar e maravilhosa experiência sensorial. Meu deus como é bom meter a mão em um bacião cheio de botão.

Bastou. Ali eu vi. Nara é a melhor amiga que posso ter. Mostrou-me muita beleza e um interessante prazer em pleno inferno. É quem eu quero sempre ao meu lado.

Quer saber? Nada de listas. Para bom entendedor, uma atitude vasta.

Enquanto isso na Índia, em Minas Gerais e na Nigéria…

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Aconteceu na Índia.

Quatro amigos monges budistas – Ryotan Igarashi, Shunyu Deshimaru, Taizen Rinpoche e Thich Susuki – estavam meditando há horas sem trocar uma palavrinha sequer entre eles. O local onde eles buscavam alcançar o nirvana,  o estado mais elevado e mais puro de existir, era em Madhya Pradesh, na Índia central, nos jardins do templo de Khajuraho.

Os budistas acreditam que quando atingimos este estado de pureza espiritual, o tal nirvana, conseguimos nos livrar do carma que todos temos por sermos condenados a reencarnar infinitamente. Somos por demais apegados ao mundo material e nossos, digamos, pecados nesta vida serão considerados nas nossas próximas vindas; esse é o nosso carma. Os budistas ainda creem que as reencarnações podem ser feitas em diversos tipos de seres vivos. Ao matar uma mosca, podemos estar dando fim ao nosso bisavô que veio nos visitar. Por isso, eles são meio São Francisco, amam os animais (até mesmo os mais peçonhentos) e não os comem de jeito maneira, nem assado nem frito. Nem com muito alho e com molho barbecue.

A ordem para os  budistas é se desapegar. Eles buscam o entendimento correto, o pensamento correto, a ação mais correta, o modo correto de se viver (virando monge) e para conseguir se livrar de todo desejo material e alcançar todo esse estado iluminado, o melhor caminho é a meditação que consiste em tentar limpar a mente de qualquer pensamento durante o tempo que suportarmos o desafio. Isso deve ser feito em um lugar de pouquíssimo ruído e em uma posição confortável para que nada nos incomode ou desvie a nossa atenção. Se não eliminarmos totalmente o carma, pelo menos, conseguimos diminui-lo um tanto assim considerável para a nossa próxima visita nesse mundo; isso, claro, se muito meditarmos. De fato, enquanto não fazemos nada e somente respiramos, não fazemos nada também de errado. Faz  todo sentido…

Isto posto e entendido, Ryotan, Shunyu, Taizen  e Thich estavam meditando, como já dito. Todos estavam sentados, com a coluna ereta, o pé esquerdo apoiado sobre a coxa direita e o pé direito apoiado sobre a coxa esquerda. Inspira. Expira. Inspira. Expira…

De repente, Shunyu  coloca as mãos para trás e dá-lhe de balançar os cotovelos.

Ryotan abriu um olho ao perceber uma vibração no olhar. Viu o corpo de Shunyu começar a tremer. Shunyu soltou uma alta gargalhada. Levantou-se de uma forma extremamente afeminada, deu alguns giros ainda mexendo os cotovelos para frente e para trás, aproximou-se de Taizen e disse:

– Que Conouó mais odubauê… – (Que quer dizer: que nego mais cheiroso) E deu-lhe uma forte fungada no pescoço do amigo revirando os zóio.

Thich caiu para trás.

– Mas que silenço é esse? Kadê o atabakê? Cadê meus baluás e meus arimbós? – Perguntou em uma língua que misturava sânscrito com umbandês colocando as mãos nos lóbulos das orelhas como se procurasse por brincos e no colo catando por cordões.

Shunyu segurou o koromo (uma espécie de kimono usados pelos monges) pela barra e levantou-a colocando as mãos na altura do quadril. Gargalhou alto de novo com as pernas cabeludas e branquelas à mostra e saiu correndo rindo alto para dentro do templo enquanto gritava como fazem os recém-libertos:

– Eu quero Irubuá, eu quero Unuiê!

Antes que Ryotan, Taizen e Thich tivessem se recomposto, Shunyu voltou com uma garrafa de sakê segurando pelo gargalo. Pegou uma folha seca no chão, enrolou-a e colocou o charuto assim feito no canto da boca.

– Suncês ké sabê como se livrá do karmá? – Perguntou olhando bem na alma dos outros três.

Ryotan, Taizen e Thich balançaram a cabeça de uma forma lenta, mas positivamente.

Shunyu riu estridentemente. Agarrou ligeiro um gato que por ali passava. Com um golpe seco de kung-fu, decapitou o felino e se lambuzou todo com o sangue do animal. Ryotan, Taizen e Thich que nunca tinham ouvido o nome de Cristo colocaram lentamente a mão na testa, depois um pouco acima do umbigo, depois no ombro esquerdo e, finalmente, no ombro direito.

Shunyu rodava e gargalhava ensandecido com as mãos apoiadas no quadril e segurando o koromo. De repente, balançou os braços como um boneco de posto e caiu como os que desmaiaram vendo Elvis Presley ao vivo.

Fez-se o silêncio.

Shunyu, depois de lentos segundos, se mexeu.

– O que vocês fizeram com o gato???

Shunyu largou o koromo e mudou de espírito sem que o corpo tivesse morrido. Passou a escrever. Atualmente, ganha rios de dinheiro vendendo livros sobre poesias eróticas e parece bem mais feliz.

Até hoje, Ryotan, Taizen e Thich, a despeito de muito procurarem em livros e conversarem com monges mais experientes, não entenderam o que aconteceu naquele dia. Também pudera. Para acharmos a resposta certa, devemos saber fazer a pergunta que nos leve a ela e, cá entre nós, “Por que  diabos a Pombagira baixou em Shunyu?” jamais sairá da mente dos monges budistas de Khajuraho.

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Aconteceu em Minas.

No dia 16 de julho, quer faça um Sol de rachar o cocoruco ou caia chuva de encharcar a alma, ocorre a procissão das Comunidades na Paróquia de Nossa Senhora do Carmo, na cidade do Carmo que fica em Minas Gerais. A Procissão acontece sempre nesse dia em louvor a Padroeira da cidade, de novo: a Nossa Senhora do Carmo. Vejam bem, eu disse Carmo e não carma.

O dia era desses de céu limpo e bem azul e a hora era pela manhã. A procissão seguia quando, de repente, nuvens começaram a aparecer do nada. Lúcia, Jacinta e Francisco, três crianças que iam à frente da procissão, ajoelharam-se onde estavam, bem no meio da rua. Quem olhou para o céu naquele dia viu vapor d´agua condensado de todos os formatos aparecendo do nada e voando em direção a rua onde passava a procissão. Do dia fez-se a noite já que névoas cinzentas eclipsaram por completo o Astro Rei.

Acima das três crianças, que continuaram ajoelhadas com as palmas das mãos juntas, abriu-se um buraco nas nuvens e raios de Sol rasgaram mais ainda a fresta iluminando, como um holofote, somente o local onde estavam Lúcia, Jacinta e Francisco. Daquela brecha, todos viram apontar dois pés. Lentamente, conforme era a descida, as pernas começaram a aparecer. Percebia-se que estavam vestidas com uma calça larga e brilhosa a la Alladin. Logo depois, apareceu o barrigão que teve sua passagem dificultada pela abertura insuficiente. A saída foi feita com a ajuda de duas mãos ornamentadas de anéis e pulseiras. A – até então – Santa continuava descendo e aparecendo bem devagar e com muito menos charme do que se espera para uma imaculada. Mais duas mãos surgem e finalmente os devotos de Nossa Senhora do Carmo viram uma cabeça de elefante com uma presa quebrada e que tinha, ainda por cima, um desenho esquisito no meio da testa! Minha Nossa Senhora que não era a Nossa Senhora do Carmo! Era Ganesha!

Ganesha, o mais conhecido e venerado dos deuses do hinduísmo que tem um cabeção de elefante simbolizando a inteligência, quatro braços e corpo de menino e representa uma solução lógica para nossos problemas, parecia mais ainda atordoado com o que via. Coçou a cabeça com uma das quatro mãos e decidiu por descer assim mesmo.

Todos se afastaram menos Lúcia, Jacinta e Francisco que seguiam de joelhos no asfalto. Ganesha acariciou a cabeça dos três ao mesmo tempo enquanto segurava a flor de lótus com a mão que lhe restava. Beijou as pétalas e entregou aquela parte de vegetal à Jacinta.

As três crianças cresceram. Tornaram-se adultas, jamais engordaram e passaram, de primeira, em concursos públicos federais.

Muitos moradores de Carmo, depois do episódio, evitam comer carne e acendem, ainda hoje, vela para a Nossa Senhora do Carmo que apareceu, assim do nada, no meio de um ritual africano em Kaduna, na Nigéria.

O Nirvana de Clinton Blaindi e Pou Pipa

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Clinton Blaindi nascera cego e infanciou normalmente a despeito de sua eficiência em jogar bilboquê e de sua falta de medo do escuro. Pou Pipa apareceu no morro da Rocinha, onde se passa parte dessa história, adultecendo. Tinham os dois a mesma quantidade de invernos. Clinton Blaindi sabia do mundo muito pouco. Foi criado pela sua mãe que o deixava com a vizinha para trabalhar. A vizinha era uma moça desambiciada e achava que para viver basta estar vivo. Pouco conversava e tinha preguiça de descer o morro para levar cego à escola.

Pou Pipa era pedreiro. O primeiro nome foi escolhido pelo seu pai que se dizia fã dos Beatles e que, de fato, o era à maneira dele. Amava, como quem ama Imagine, Rélpi. O segundo nome (que é um adjetivo como já percebido) veio de sua fixação (que não se foi com a sua chegada à vida adulta) em botar pipa no céu.

Nos finais de semana e das tardes de verão, Pou Pipa colocava pipa para atrapalhar as correntes de ar e tinha como companhia Clinton Blaindi que sempre estava sentado em um banquinho do lado de fora do barraco. Escuta, meu amigo, o que é isso que você faz?, perguntou Clinton Blaindi quando, enfim, chegou novembro. Pou, que não sabia se divertir de outra forma, recebeu a pergunta como se tivesse visto uma equação do segundo grau. Começou sem entender como se vive sem diversão. Mas muito menos lhe ocorria como fazer um cego dimensionar o céu.

– Primeiro você tem que entender o que é o mundo. – Respirou Pou a responsabilidade.

E assim, Clinton Blaindi, ao avesso de São Tomé, cria sem ver e entendeu como o céu fora feito para justificar as pipas e que os pássaros eram pipas sem linhas. Tempo fechado era quando o céu, o espaço absoluto newtoniano, acordava repleto de portas e janelas fechadas. Ventos fortes eram o espaço curvo einsteiniano. As nuvens eram como um tecido estampado. Não entende, Blaindi? Ah é. Você não entende. Tecido estampado é… Vem comigo, Blaindi. Pou fez Blaindi colocar as mãos nos muros. Muro de tijolo sem reboco e muro rebocado de cimento salpicado com pedrinhas. Muro rebocado de cimento sem granulado. Tudo muro, Blaindi, com estampas diferentes. Blaindi entendeu perfeitamente o que eram as nuvens e estava extremamente feliz por ter um amigo como Pou Pipa.

Pou resolveu ensinar Blaindi não a soltar pipa e sim a segurá-la. Blaindi com sua cabeça andorinhando compreendeu o céu e sua extensão. Percebeu o infinito com clareza.  Quantas dessas têm no céu, Pou? A mesma quantidade de estrelas, Blaindi.

Blaindi já sabia que, de noite, as estrelas apareciam. Noite, diferente do dia,  como lhe explicara Pou, era algo bem distinto de tempo fechado. Noite é quando o céu se transforma em portão trancado para as pipas. E tem hora de abrir: dia. Estrelas são grãos de feijão jogados no chão que ficam atrás desse antipático portão e esses grãos de feijão atrapalham o movimento das pipas, entende, Blaindi? Blaindi entendia tudo.

Um dia Clinton Blaindi quis saber um pouco mais. Você vê Deus, Pou? Não. Claro que não. Tem gente que diz que ele está em tudo, mas ele não está em nada. Se esconde atrás do céu. E como O explicam? Pou não soube responder, embora, tivesse certeza de Sua existência porque tudo existia e para sermos temos que nascer e as pedras nascem de algum lugar porque são pedras, logo, Deus existe porque o que não cresce não procria e sim se cria.

Livro serve para quê, Pou? Para quem não gosta de soltar pipa e não quer conversar. Quem lê fica em silêncio se ocupando de virar as folhas bem devagar, explicou Pou. Pareceu a Blaindi que  ler era algo que ele poderia fazer e ele quis experimentar isso, então, em dias de chuva.

Clinton Blaindi passou a ler, dessa maneira assim ensinada sem alfabeto, sílabas nem palavras escritas – já que a Pou também foi-lhe negada esta paisagem – nas noites, quando os portões eram trancados para as pipas, sempre o mesmo livro que ganhou de presente de Pou. Usufruiu, sem que o sábio amigo lhe guiasse, do bem que a leitura, assim por ele assimilada, faz para a mente e ficou viciado nesse passatempo por ele inventado. Agora era Blaindi que esclarecia a Pou de que  maneira uma simples atividade pode levar a gente para sei lá aonde meu deus.

Blaindi vislumbrou que talvez as pessoas que liam mudavam de página depois de passar por um determinado número de respirações que, por sua vez, era dado pelas batidas do coração já que Clinton Blaindi jamais aprendera a contar por números e muito menos entender o tempo por relógios. Passava por um processo mental não discursivo naquela estranha atividade de inspiração e expiração entendida por ele como leitura e, em plena quarta-feira anuviada, experimentou, de repente, um vazio iluminador, um êxtase quase místico e um soltar de sua alma.

Blaindi entendeu por quê um Sol de meio dia não faz sombras, assimilou-as sem nunca ter sentido a luz. E visualizou pipas coloridas na página quarenta e sete. Nuvens intateáveis e estrelas-grãos-de-feijão suspensas no ar. Meu deus como era bom ler. Clinton Blaindi que havia apreendido o tamanho do mundo com a ajuda das pipas de Pou quis lhe descortinar o Universo.

Vem, Pou, vou ensinar pra tu o caminho.

E assim, lá na Rocinha, ainda hoje, esses dois rapazes experimentam dessabendo um estado de cessação completa do sofrimento pela leitura da eterna graça alcançada somente pelos monges budistas do Tibet.

Fora do ar

pedra

A verdade é que estou sofrendo. E é assim que tenho passado meus dias. Assim é cada segundo: sendo lançada longe como uma pedra em alto mar. O espaço a minha volta assobia, mas há calma dependendo de como me posicione em relação ao ar que resiste a minha passagem. Ou sou eu que dificulto o movimento desse fluido? Não há chão e por vezes não há eu. O ar parou de assobiar. Parei eu de me movimentar? Agora caio verticalmente? O ímpeto natural de se mover para frente. Acabou. Devo dar cambalhotas e aproveitar a queda ou tentar voar? Nasceu no horizonte um Sol sem cor. Sem brilho. Sem força. Não sei se é a minha posição que dificulta uma visão mais radiativa ou é o Sol mesmo que às vezes nasce quadrado. E sem cor. Sem calor? É possível cor sem calor? O quente sem o vermelho? Há silêncio, o mesmo de quando os sinos tocam lá longe. Eu já não escuto há tempos os sinos tocarem quando distantes mas, perto, se os ouço, ouço sobretudo o silêncio. Silêncio que precisei tanto mas que agora parece que só serve para eu traçar essas linhas retas, paralelas, sem auxílio de réguas. Réguas. Ando repetindo as palavras para ver se mudam de significado. Significado. O relógio anda e meus instantes são vazios. Plenos de rosáceas desenhadas à mão livre. Ridículas essas rosáceas. Momentos que nada sucedem, futuros que nada podem trazer. Há um bem-estar intermitente, uma sensação difícil e furtiva. Sonsa. Estúpida. Quero ir até o fim para ver como será o meu fim. Dentro do meu corpo os significados sussurram e se desfazem e se refazem com o movimento de uma aurora boreal. Sou uma menina descansando. Estou olhando, olhando, ressentindo o próprio sentir. Sou um instrumento abandonado que sem que me toquem começo a fazer som. Nada me inspira. Toco uma música inodora e cheia de arpejos, acordes dissonantes, pausas, semibreves. Confusa. O que penso são sensações que procuro não expressar por palavras porque estou obstinada a encontrar o meu inconsciente. Algo sucede distante. Ah por que tão distante? Essas léguas me aniquilam! Venço a distância ao olhar para ela, sincera. Sinto uma noção de viagem. Distância mudando de significado. Não sinto mais fome. O espaço não tem mais mistério e o olho com estranheza. O vento me provoca arrepios de compreensão. Aonde devo voltar para não entender? Percorri mais umas moléculas de ar, um pensamento indistinto e fraco começa balançando os cabelos e percorre o corpo abandonado. Fortalece-se revolto, continua incompreensível pelas palavras. Levanto-me. Tenho sede. E retorno ao movimento parabólico do lançamento. Ando sem que nenhuma força me empurre. Sem que ninguém me chame. Faz sentido esse movimento? Falta-me angustiosamente um sentido. Uma verdade para dirigir-me. Uma incompreensão a ser descoberta. Sou mãe precisando de mãe. Não suporto mais lembrar que quero ser esquecida. Eu quero falar e embora não saiba o quê, só não digo porque me falta coragem. Esqueço que gritar é necessário e sigo, eu-projétil, muda. Os olhos estão úmidos demais. É o vento. É o vento. O mar me parece familiar. Que o medo escorra, agora que o ar me abriga. Não posso dormir para sentir tudo até que tudo se mostre e se torne por si próprio e transforma-se em outra coisa diferente de medo. Medo. Noites de primavera, então, vocês também são assim? Deslizam-se para uma inquietude sem além? Eu estou só. Eu. Eu sou isso? Vacilante fingindo-me estar concentrada enquanto me ausento a todo instante? Vou saber o que é meu depois de misturar-me? Para pensar profundamente não posso me lembrar de nada em particular. Purifica-se de lembranças? Quando tudo for livre, quando não estiver ligada fatalmente ao que existe fora de mim, atingirei os céus ou já terei caído? Não quero respeitar pai e mãe porque fui ensinada, não quero sentir alegria por ouvir batucada, não quero sentir dor quando o joelho sangra, não quero rir dos risos e nem pedir dá licença. Não quero agradecer e muito menos ser grata por tanto aprendizado. Aos poucos, lançando-me e sendo lançada, respirando e sendo expirada, inspirando e sendo esperada vou me ligando mais profundamente com o que existo. De onde apareci com essa forma? Vivendo no final de mim e no começo do que jamais serei? Equilibra-se na insipidez? Estou fraca e recebendo o que é excessivamente pesado. Vai. Vai escrever. Vai ler. Não era isso que você queria? Já vai de novo? Isso não acaba? Eu sou tola demais para ter dificuldades. Vai. Quero ver você ler e escrever agora. Estou isolada de cansaço. Tudo é indeciso e deus como tudo é tão novo, como tudo nasce e como tudo morre. Tudo é tão revolvido, revolto, revolucionário, reviravolto. Ocupo-me verdadeiramente de Deus e começo a rezar. Porque tudo que me assusta e me deixa só é o que devo procurar. Flutuo ainda. Está tudo se desfazendo nesse ar. Diabo é amor. A quase noite está chegando de novo e o terror precipita no leito onde não se dorme mais. Estou só, mas deus como eu estava só… Estou calada de tão assustada, impossível um pensamento me guiar para algum lugar. A alma está exausta. Respiro procurando prazer nesse trajeto. Ao menos sentir-me viva. Sou tola. Burra e incapaz. Morri sem saber. Ploft.

Não. Espera. O espaço a minha volta assobia, mas há calma dependendo de como me posicione em relação ao ar que resiste a minha passagem. Ou sou eu que dificulto o movimento desse fluido? Não há chão e por vezes não há eu. O ar parou de assobiar. Parei eu de me movimentar? Agora caio verticalmente? O ímpeto natural de se mover para frente. Acabou.Devo dar cambalhotas e aproveitar a queda ou tentar voar? Nasceu no horizonte um Sol sem cor. Sem brilho. Sem força. Não sei se é a minha posição que dificulta uma visão mais radiativa ou é o Sol mesmo que às vezes nasce quadrado. E sem cor. Sem calor? É possível cor sem calor? O quente sem o vermelho? Há silêncio, o mesmo de quando os sinos tocam lá longe…