Presente das Galáxias

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Hoje rolou praia com o Yuki, meu caçulinha de oito aninhos, no final da tarde já que a mamãe aqui é branquela e não pode com esses raios ultraviolentos.

Lá pelas sete e tals, o Sol estava se pondo por detrás das nuvens de onde partiam raios vermelhos alaranjados. Se Deus existe, ele estava por ali. Muito lindo não ver o Astro Rei,  mas perceber que ele está firme e forte mandando brasa ainda. Olhei para aquela pintura e disse para o Yuki que estava montando um castelo na areia:

– Olha que lindo!
– Lindo mesmo, mãe! – Concordou após observar por uns segundos aquela paisagem imponente.
– Toma de presente isso para você.
– Mas não dá, mãe. Isso não se pega.
– Você já não ganhou bombons de presente?
– Sim. E comi!
– Já não ganhou perfume também?
– Sim. E fico bem cheiroso até hoje quando passo.
– Então. Tem presente que a gente pega, tipo brinquedo. Tem presente que se cheira, tem presente que se come e tem esse que estou te dando de se ver. Ora pois.
– Mas daqui a pouco acaba, mãe! – Disse Yuki perplexo apontando para o presente que já estava se transformando.
– Não se você não se esquecer, Kinho. Querendo de volta, ou seja, querendo vê-lo novamente, veja que maneiro, é só fechar os olhos. E é bom que você pode fazer isso quantas vezes que quiser e não gasta!
– Interessante esse presente. Presente de maluco isso.
– Pois então.
–  Então deixa eu olhar bem para essa paisagem para ela invadir a minha memória.
– Fique à vontade. Observe que esse presente é tipo um quadro valioso pintado por um artista famoso, mas que a gente só carrega dendagente.
– Tô ligado, mãe.

Depois de alguns segundos ganhei um abraço e um beijo de agradecimento.

– Nunca mais vou me esquecer disso, mãe. – Acrescentou meu Yuki fofurééééésimo.

E todas as vezes que um filho agradece assim, nós, mamães, é que recebemos um presente embrulhado em papel de eternidade, não?

Dor no Peito

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Estava com papai e mamãe no hospital Vitória que fica em frente ao Lourenço Jorge, na Barra. Papai estava esperando para fazer uma angioplastia e trocar um stent que não mais cumpre seu papel de deixar o sangue circular livremente. Saí para comer algo e levar um lanche para mamãe que estava como eu só com um cafezinho desde cedo.

Parei em um sinal na Ayrton Senna e fui abordada por um menino encardido de poeira que pedia dinheiro. Quando ele chegou na minha janela, eu olhei para o lanche que levava para a mamãe.  Ele, curioso e  boquiaberto, encarou meu banco de trás que estava repleto de livros infantis que sempre deixo para o Yuki, meu caçula de oito anos, se distrair nos engarrafamentos.

-Está com fome? – Perguntei pensando já em fazer mamãe me esperar mais um tanto no hospital.

Ele não me respondeu. Estava absorto nas capas dos livros.

– Você estuda? – Perguntei.
– Estudo sim senhora ali longe por aqui mesmo por perto.
– Quem foi Pedro segundo, então?
– Foi quem veio antes do Pedro primeiro, senhora.
– Muito bem, sabichão. Saca de história. Já vi. Vamos para geografia. Qual é a capital de São Paulo?
– Minas Gerais, senhora. – respondeu-me animado e ávido para que eu fizesse mais perguntas.
– Hmmm. – Respirei. – Minas Gerais é outro estado.
– Estados Unidos, então, senhora.
– Geografia você não tem muita noção. Matemática. Se eu te der dez reais e você me der seis de volta com quanto você ficou?
– A gente não dá troco quando ganha esmola. Mas não quero dinheiro não senhora, tia.
– Está com fome, criança?
– Quero um livro, tia. A senhora me dá aquele ali com um urso rosa na frente?
– Só esse?- Falei enquanto me contorcia para pegar O Urso no Jardim de Infância.
– Pode ser mais de um?!? – Exclamou em forma de pergunta.
– Te dou três e mais um lanche.
– Pode ser quatro e a senhora fica com a comida?

Dei-lhe todos os livros e ganhei um beijo no rosto. Lá então fui eu para o hospital de novo dar toda a assistência para meus pais.

Papai foi muito bem tratado e, grazadeus e ao fato do Diabo ter dado uma trégua por aqui,  vai voltar para a casa com o coração tinindo.

Quanto ao meu…

Era uma vez Clarice, meu Deus.

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Dizem que se auto-medicar é perigoso. Devo confessar-lhes, eu sempre o faço. Mas no lugar de fármacos uso livros. Se estou de mau humor, Rubem Braga, Veríssimo, Fernando Sabino. Apática,  Mia Couto, Saramago, Umberto Eco; para solidão, Jorge Amado, Ziraldo, Zélia Gattai e Fernanda Torres; para falta de paciência, Sérgio Porto, Martha Medeiros, Jô Soares.

 Para desespero, Clarice.

 Não foi por acaso que em todos os momentos que mais me senti aflita devorei um ou dois livros dela. Agora exatamente, em plena travessia de uma separação de uma união de mais de vinte anos, meu corpo pediu Clarice. Mas algo aconteceu. Talvez pela intensidade do momento e pela cumplicidade em seus textos, quis me aproximar dela. Clarice, por que me entende tanto? Por que me explica tanto, Clarice? Procurei vídeos dela na internet (só existe um) e me meti em algumas teses públicas falando sobre um ou outro livro seu.

 Há quem não perceba a sua moléstia, mas o contrário se fez presente, curiosamente, nesse meu momento de dor. Um amigo bateu em minha porta e disse: toma. É seu. E me estendeu essa caixa de remédio tarja preta em forma de biografia de Clarice Lispector.

 Benjamin Moser, o biógrafo, por incrível que pareça não é brasileiro. O maior especialista em Clarice é, se não me engano, americano. O livro é traduzido por José Geraldo Couto. Pouco importa, o que interessa é que Moser tem uma veia de historiador e uma grande qualidade literária. Clarice foi sendo descortinada ao som de um azul celeste.

 Assustei-me com tudo. Clarice, como eu, lado a lado de defender a própria intimidade, tem o desejo intenso de se confessar em público e não a um padre. Vide Minha Vida é um Blog Aberto. Não que eu esteja comparando a minha qualidade literária com a dela. O que eu quero dizer com isso é que Clarice sempre me entendeu muito bem e parece ter justificado todos os meus pecados de forma muito mais clara e direta. Quando leio Clarice, entendo muito melhor a mim mesma. É terapêutico a vera.

 Como tive problemas em meu casamento sendo escritora e leitora ávida, estava buscando saber como Clarice conseguiu escrever e ler sendo também esposa de um diplomata,  acompanhando Maury por longas viagens e levando consigo a opinião sobre casamento tal como aparece em sua personagem Joana do livro Perto do Coração Selvagem. Como suspeitava, não foi sem dor. Não foi sem luta.E a separação mostrou-se para ela o único caminho como vi a mim mesma forçada a seguir a despeito do medo e da insegurança de guiar sozinha um transatlântico.

 Ainda que soubesse que ela já morreu, o contato com a biografia narrada de forma majestosa tal como Moser o fez deu-me a impressão de que ela estava por aqui entre a gente. Conforme o livro vai terminando, a doença aparecendo e ela ainda dizendo que ia morrer escrevendo o desespero começou a se apossar de mim. Não, Clarice, fique comigo pelo amor de Deus. Aguente firme. Mas ela vai e me diz: “Elika, benditos sejam os seus amores. Será que estou com medo de dar o passo de morrer agora mesmo? Cuidar para não morrer. No entanto eu já estou no futuro. Esse meu futuro que será para vós o passado de um morto. Quando acabardes este livro chorai por mim um aleluia. Quando fechardes as últimas páginas deste malogrado e afoito e brincalhão livro de vida então esquecei-me. Que Deus vos abençoe então e este livro acaba bem. Para enfim eu ter repouso. Que a paz esteja entre nós, entre vós e entre mim. Estou caindo no discurso? Que me perdoem os fiéis do templo: eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar.”

 Desnecessário dizer que me desesperei. Fiquei íntima dela, li suas cartas para seus amigos, ouvi suas conversas, vi seu álbum de retrato. O livro Clarice, uma Biografia foi inclusive interrompido por uma leitura de um outro livro de Lúcio Cardoso, o grande amor de Clarice. Gay e, portanto, incapaz de lhe reciprocicar seu desejo, mas que lhe deu toda a amizade e inspiração para muitos de seus escritos. Se Clarice o amou, coisa ruim não pode ser. E não foi. Devorei um livro de seu grande amor que também passou a ser meu.

Agora estou sentindo aquele vazio de quem volta de um enterro. A casa está dolorosamente silenciosa e eu, egoisticamente, inconformada com a despedida.

Era uma vez Clarice, meu Deus.

Translucidamente Turvo.

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Ontem, depois da sessão com o terapeuta, fui para casa e dormi. Tive um sonho. Sonhei que estava em uma piscina do tamanho do mar e que havia nela três pessoas. Eu, He-Man e mais um que não conseguia ver quem era, mas que ditava as regras do jogo. Eu teria que fugir nadando. Ganharia se não fosse encontrada e perderia se fosse descoberto o local em que eu estava pelo homem que muito parecia fisicamente o super-herói dos anos 80. O tal do He-Man carregava consigo uma espécie de lanterna que servia menos para ver sob a água, que estava bem turva, do que para eu mesma, a que era perseguida, saber se ele estava se aproximando. Foi dada a largada.

Pensei: será impossível ele me encontrar. A cada braçada, eu tenho um leque de 360 graus de opção de caminhos e sempre escolherei um por onde seguir. Na terceira ou na quarta remada que eu der com meus braços, estaremos a uma distância de infinitas escolhas e será infactível meus passos serem seguidos. Não há necessidade de pressa, pois, pelas regras da matemática, jamais serei encontrada. E pensando assim no meu sonho, comecei a nadar. Percorria o que o pulmão me permitia. Parava. Olhava para todos os lados embaixo d´água e via lá de longe mesmo naquela água pouco translúcida sempre uma luzinha vindo em minha direção. Não importava o quanto me deslocava e o sucesso de minha apneia. Sempre era encontrada a despeito do tamanho da piscina, da água turva e do poder do infinito. Desisti. Emergi e gritei: não entendo!

A pessoa que eu não conseguia ver o rosto direito me explicou: você cometeu um erro lógico. A piscina é enorme mas tem fim. As ondas que você faz batem na parede e voltam triplicando a chance que já não era pequena de encontrar você. Agora veja, eu havia cometido um erro lógico e a explicação não fazia o menor sentido para qualquer gigante da matemática.

Se nosso amigo Freud vivo estivesse reforçaria que todos esses símbolos oníricos são particularidades do nosso inconsciente. Acreditando nessa hipótese, fiz de minha própria cama um divã ao despertar desse sonho. O que era o mar? Quem seria o He-Man? Por que daquela luz? Que diabo de erro lógico que cometi? Mais ainda, por que a lógica não explicou um movimento simples da vida? Não vou tentar aqui esclarecer cada um dos símbolos que apareceram, mas gostaria de analisar o sentimento de ter cometido um erro (de lógica) e a explicação dada para o problema – um jogo, no caso – não fazer o menor sentido.

Lembrei-me, então, o quanto saí incomodada da minha última visita ao terapeuta. Percebi que estava havendo um esforço em ser entendida, não por ele, mas por mim mesma. O profissional agia corretamente, fazia perguntas que me ajudavam a pensar, a compreender a minha demanda, a interagir profundamente comigo mesma e, no mergulho a lugares nunca antes visitados dentro de mim, a fazer com que eu enxergasse com mais clareza essa miscelânea de sentimentos tão comuns a todos nós: medo, pena, insegurança, solidão, saudade, dor, alegria, culpa e por aí vai. Comecei a pensar em tudo o que nos fizeram acreditar e na quantidade de fármacos consumidos por todos que conheço, na agenda lotada de qualquer bom ou mau analista, na vida que seguimos como se tivéssemos a deriva sem muito o que fazer por nós mesmos, do medo que temos de gritar o quanto estamos cansados e do quanto não nos ajustamos a nenhum modelo. Estamos ficando doentes porque querem (nossos amigos, nossos pais, o padre, o pastor, o diabo) explicar nossos sentimentos de forma lógica e querem que nos entendamos para nós mesmos. Precisamos, para viver nessa sociedade, que nossas atitudes sejam explicáveis. Que para cada efeito tenha uma causa ou várias, vá lá, mas que ao menos todas elas sejam identificáveis e reconhecidas.

Onde está escrito, além de postagens supérfluas e livros religiosos, que amor entre pessoas do mesmo sexo é antinatural, que amor de verdade é o que dura até a morte, que casamento que dá certo é aquele em que os cônjuges não se separam, que devemos nos sacrificar pelo bem mental de nossos filhos, que o nosso amado está feliz por simplesmente estar ao nosso lado, que só se ama uma pessoa de verdade na vida, que só se pode amar um de cada vez, que no amor há felicidade, que não há amizade entre pessoas que já foram amantes, que ser fiel é contar a verdade, que devemos ser felizes, que quem ama entende o amado e que o amor eterno não acaba e que, se acaba, não era amor? Qual foi o deus que disse isso? Onde está escrito que devemos ser compreendidos?

Se as regras formam uma pátria, o que vemos é um monte de gente querendo e  ao mesmo tempo morrendo de medo de ser exilado. Não sabemos como viver sem as rédeas e sem colocá-las em alguém, agir dentro de uma teoria que já está estabelecida parece mais fácil, mas não há quem, ao colocar a cabeça no travesseiro, diga amém. A vida não cabe em uma teoria e muito menos é feita de várias delas. E o inverbalizável? Cadê o espaço para os impulsos, as emoções, as fantasias, os sonhos? Ora bolas, nem que fossem centenas de normas dariam conta do recado. Impossível enquadrar o grito, o que arde, o que lateja. Já dizia Cazuza, há o certo, o errado e todo o resto. Amar é bom, não amar é ruim. Entre amar e não amar o que temos? Nada? Qual o quê. Uma infinidade de sentimentos isso sim, uma confusão dos diabos, um desassossego dos infernos, saudades gigantescas, necessidades de afeto urgentes, desejos que não se adaptam a essa meia dúzia de regras do bom comportamento que nos impuseram.

Estamos todos vivendo certinho dentro das normas, seguindo corretamente o que nos ensinaram, nossa casa está arrumada, nossos filhos estão jogado alucinadamente videogames mega modernos na sala em total segurança, tudo está em seu devido lugar. Mas então, senhor, por que estamos tomando remédios para dormir?, por que se vende tanto livro de auto-ajuda?, por que ficamos horas embaixo do chuveiro olhando para o zero?, por que queremos sumir do mundo?, por que estamos deixando para trás tantos afetos que poderiam nos bombardear de hormônios?, por que nos sentimos injustiçados pelo destino?, por que temos que viver ponderando tudo e negando as paixões que insistem em nos aparecer, sejam elas por outro homem, outra mulher, por um livro, por um esporte, por uma ideia ou por um ideal?

O problema é que todo o resto não entra no regulamento que devemos seguir e é o que, sinto lhe dizer, nos faz sentir vivos: nossa ausência total de certezas, nossa pureza que cismam em não acreditar nela só porque crescemos, nossa vontade de ir ali comprar um cigarro, nossa sinceridade ao dizer que não fizemos por mal, nossa vontade de fazer o mal, nossa obsessão em querer o bem, nosso desejo de ir embora, nossa ânsia em voltar, nosso asco em viver em paz, nossa angústia de não conseguirmos ser felizes porque sabemos, lá no fundo que, viver em paz é a morte em vida. Nossa. É tudo tão complicado…

Mesmo sem nada entender, recusei-me a ficar refém de tudo o que construí. Separei-me de quem namorei desde meus quatorze anos. O difícil dessa separação, perceba, será viver com ele (e não sem ele) em minha vida. Nem que ele tivesse morrido poderia a presença de tão boa companhia deixar de ser sentida por onde quer que eu me esconda. Não é necessário que Chico me responda pra onde vai o meu amor quando o amor acaba porque nada aqui dentro acabou. Transformou-se bastante, é verdade. E o suficiente para que eu aceitasse as minhas dúvidas impublicáveis que foram incompatíveis com as certezas de quem dormia cantando ao meu lado. Permiti-me o tormento de não ser única. Admiti que há um deus um diabo e o todo o resto morando em meu corpo.

Encafifa-me agora, ou melhor, está muito difícil de eu aceitar a incompressibilidade de que é concebível, mesmo diante desse mar de possibilidades que se agiganta na minha frente e que nele sigo remando com meu próprio corpo, alguém me encontrar com facilidade.

Prossigo eu apavorada tal como estivesse mergulhado em uma piscina gigante repleta de água turva com toda essa estranha gente que me habita. Sem nada entender. Sem nada enxergar. Mas meu deus. Como esse fluido que me circunda me mantém aquecida e me convida –  pela sensação que experimento em minha minha pele – que eu vagueie dentro ele.

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A obra que ilustra esse texto é do artista Sérgio Ricciuto.

Memória rã

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Às vezes estou no escritório e penso: vou no quarto tirar as lentes e colocar meus óculos. Quando estou no meio do caminho, já esqueci o que ia fazer. Volto de ré bem devagar para ver se a memória é resgatada no rewind. Nada. Ando para frente de novo. Abro a geladeira. Bebo água. Estava com sede. Era isso. Faço carinho na cachorrinha e sento de novo para escrever. Os óculos!

Antigamente, eu trocava o relógio de pulso para me lembrar de algo importante. Anel também funciona quando trocado de mão. Tirar um brinco idem. Porém, outro dia estava com as bijus todas trocadas, tinha até cordão nos meus tornozelos e as duas orelhas sem brincos sem conseguir me lembrar de como senhor fiquei naquele estado. Diria você: anota no celular. Não adianta. Pego o celular abro feicebuque, whatsapp, e-mails, messengers e esqueço do principal.

Isso foi um exemplo. Tenho vários e sei que você também porque com todos que eu comento escuto: comigo é igual! E dá-lhe história bizarra. Não importa a idade. Hideo, meu filho de vinte e um anos, já está pior do que eu. Alzheimer geral.

Uma médica me contou que foi fazer um teste de memória com o paciente dela. O teste consistia em ela falar cinco palavrinhas e depois de um tempo pedir para o paciente repetir. Pois bem, ela falou os vocábulos e continuou a consulta. A consulta terminou e ela se esqueceu de pedir para o paciente repeti-los. Bom para ela que nem se lembrava de quais eram. Tá tenso. Tá brabo.

Li em um artigo (que já não me lembro mais onde) uma associação que fizeram com noites mal dormidas e falta de memória. Dormir oito horas por dia lhe fará uma enciclopédia ambulante. Dizem que funciona mesmo. Não é balela. Mas cá entre nós. Oito horas de sono. Vai. Quem consegue isso hoje?

Deito-me fuçando nessa budega de celular. Depois pego meus livros. Daí, lá pelas tantas, eu durmo e mais ou menos às três da madrugada acordo do nada. Que horas são? Vou ver o celular e constato que tenho novidades e notificações em todas as redes sociais. Algo importante. Nunca é, mas sempre bom checar. Tento dormir. Daí começo a enumerar as coisas que tenho que fazer. Cabeça, sua maldita, descanse! A noite potencializa qualquer receio idiota. Então fico mudando de posição pensando pensando pensando e pego no sono bom que é interrompido imediatamente pelo despertador.

Solução? Ir para Marte talvez. Até que a viagem aconteça vou continuar por aqui trocando o nome de todos os filhos e agora dos nossos bichos de estimação.

Beijo, gente. Tenho que ir ali resolver um probleminha. Qual era mesmo?

Livro sempre. Livre cada vez mais.

LKA

Li em um artigo não sei mais onde que quem lê livros de literatura tem mais facilidade de se relacionar com outras pessoas do que os que passam por este mundo sem viver esse tipo de apneia. Isso porque ao ler tentamos imaginar e decifrar os personagens que se mostram múltiplos e surpreendentes tal como nós e os outros emergimos neste mundo. É um exercício que inevitavelmente carregamos para o dia a dia. A novela, dizia o artigo, já é um desserviço pois sempre mostra os sujeitos muito esteriotipados fazendo com que julguemos com facilidade, pressa e “sem erro” a atitude representada. Literatura aprimora os sentidos e a nossa capacidade de ver as coisas por vários ângulos e em um nível muito maior de profundidade. Ainda que não seja uma verdade absoluta, parece-me que faz sentido.

Recebo, sem merecimento, elogios da minha maneira leve, do meu modo de viver e da facilidade de lidar com todos que me cercam, sejam alunos, filhos ou meus pais, por exemplo. Digo ‘sem merecimento’ pois tenho lá minhas dificuldades e minha alta conta no analista. Porém, de fato, percebo que a minha interpretação de muitos episódios difere do senso-comum. Sabedoria? Maturidade? Espiritualidade? Paciência? Nada disso. Ou pelo menos, nada que tivesse nascido pronto.

Eu poderia ter estudado nas mesmas escolas, ter tido os mesmos professores, ter tido o mesmo pai e a mesma mãe, convivido com os mesmos irmãos e feito a mesma faculdade; poderia ter visto os mesmos filmes e escutado as mesmas músicas e, ainda assim, seria uma pessoa muito diferente do que sou hoje se não tivesse lido tudo o que já li. Foram os livros que me moldaram como ser humano. Foram os livros que me deram consciência da complexidade dos sentimentos. Foram os livros que derrubaram todos os meus preconceitos. Foram os livros que me tornaram mais compreensiva com as diferenças, mais tolerante com quem, a princípio, me incomodava. Foram os livros que me fizeram andar nas ruas e observar poesia em várias esquinas do subúrbio.  Foi nos bons livros que conheci melhor a mim mesma e me descobri como escritora, pois, um bom livro nos dá a nítida impressão de que estamos sendo lidos e não lendo. Quantas vezes aprendi a expressar minhas emoções lendo e relendo um parágrafo que radiografafa exatamente o que sentia e não conseguia verbalizar? Foi pelos livros que eu viajei para longe de casa, pois leitura é uma outra maneira de estar em outro lugar.

Eu adoro ler segurando um lápis. Meu caçula de oito anos já me questionou sobre essa mania. Expliquei a ele que é interessante sublinhar as partes que eu gosto muito. Assim, quando eu quiser vê-las de novo, é só dar uma foleadinha básica e pronto. Quando rabisco meus livros sinto que ouvi e que de certa forma estou dizendo algo também para o autor. No momento em que a ponta do lápis toca a página, uma conversa sempre, para mim, começa a ser delineada. Ao me ver um dia lendo muito sem nada sublinhar, meu caçula perguntou-me se eu estava só ouvindo. E era justamente isso que fazia com os olhos. Foram os livros que me afastaram de qualquer tipo de solidão pois ao ler um diálogo íntimo sempre se inicia.

Há quem pense que se chega a Deus pelos pastores, padres e lendo a Bíblia. Eu, a despeito de minha ateinidade, penso que se chega a Ele muito mais rápido pela literatura e pela poesia. Ao abrir um livro bom, abrimos os olhos, as janelas do nosso corpo e um universo se mostra refletido dentro da gente. Somente quem experimenta a beleza e a complexidade do existir, sinto eu, está em comunhão com o sagrado. Agora vejam, foram os livros que me fizeram ateia. E foi nos livros que comunguei com o sagrado.

Há quem imagine o paraíso repleto de cachoeiras, árvores e anjos. Eu pressuponho que ele seja uma espécie de livraria. Beleza incomensurável pela sua infinitude de possibilidades e que também é uma forma de felicidade.

E outra inexplicável de liberdade.

Je ne sais pas qui je suis

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O ataque à revista francesa suscitou debates de vários níveis e o termo “liberdade de expressão” apareceu em quase todos eles. Uns contra outros a favor. Todas as posições foram bem defendidas a ponto de eu me pegar sem ter opinião sobre o assunto. Claro que ninguém aqui concorda com o ataque terrorista em si. Há quem diga que o objetivo real do ataque não era enfrentar o (polêmico) humor, o objetivo real foi político. Dito de outra forma, o objetivo não era atacar a liberdade expressão. Mas pouco me importa isso por ora. Não quero discutir isso neste momento. Vamos nos ater sobre o direito de falar e fazer piada sobre o que nos der na telha.

Para começar, gostaria de lembrar de um episódio ocorrido no ano passado onde Levy Fidelix, candidato à presidência, proferiu frases pelas quais foi acusado de estimular a homofobia em um debate dos presidenciáveis. A lembrar duas delas: “dois iguais não fazem filho” e “aparelho excretor não reproduz”. A mesma coisa que vemos depois do ataque à Charlie Hebdo aconteceu nas redes. De um lado, havia os que defendiam a tal liberdade de expressão; de outro, os que queriam dar a ela um limite. Reinaldo Azevedo, colunista famoso da revista Veja, partiu prontamente em defesa à liberdade em tela dizendo a la Voltaire (ou algo que o valha) que não concordava com o que Levy Fidelix proferia, mas defendia até a morte o direito de ele ter falado tudo o que ouvimos boquiabertos afirmando categoricamente que não havia crime algum porque todos temos o direito de ter alguma opinião seja lá sobre o que for.

De fato,  o direito ao livre exercício de pensamento e o direito à liberdade de expressão são garantidos pela Constituição. Isso, porém, não legitimiza ninguém a incitar à violência porque isso pode trazer consequências mais graves à vida de outras pessoas. E há também o direito de qualquer cidadão de preservar a sua integridade física, psicológica e de ser livre para fazer a opção sexual que melhor lhe agradar. Sendo assim, muitos dos que se posicionaram contra Fidelix o fizeram porque a sua fala alimentava a intolerância, o ódio, a discriminação. E chegamos ao ponto: o exercício da liberdade de expressão pressupõe responsabilidade. Não há crime em declarar o que pensa, mas a forma como se faz isso faz total diferença. A questão que me coloco diante o que ocorreu em Paris é: quem vai definir a forma correta? De qualquer maneira, Reinaldo Azevedo ter vindo à público defender o direito de se expressar da forma fidelixana ao invés de ter ajudado nosso país, na ocasião, a buscar uma convivência mais harmoniosa, mostrou bem qual é o conceito de civilidade por ele entendido. Ele conclamou as pessoas para desrespeitar ainda mais aqueles vistos como diferentes. Isso, para mim, ficou claro.

E o que era, de fato, o que os cartunistas da revista Charlie Hebdo faziam? Depende para quem se pergunta, é claro. Quem foi a vítima, afinal? O assunto fica delicado porque parece que estamos defendendo a carnificina. Por outro lado, há de se esclarecer mais uma questão em voga: se estamos dando uma atenção maior a esse caso do que aos nigerianos mortos quase que ao mesmo tempo em outras circunstâncias – que nada se assimilam ao que vimos na França, principalmente, em números – é porque está em jogo a nossa forma de nos portarmos nesse mundo. Podemos ou não dizer o que pensamos?

Inicialmente, é claro, veio o choque quando soubemos do ataque. Depois as charges começaram a aparecer e não que justificassem, mas percebemos que onde era visto uma ação, na verdade, era uma reação. Logo depois, jornalistas e humoristas começaram a virar Charlie, nenhuma novidade. Inicialmente eu fui também, mas quando vi Danilo Gentili sendo Charlie, percebi que deveria refletir mais sobre o assunto. Logo ele, o típico babaca que faz piadinhas sobre  racismo, machismo e homofobia e que gera o riso bobo de sua platéia que ao rir também endossa o racismo, machismo e homofobia fazendo do riso um lugar seguro pra que os estereótipos racistas, machistas e homofóbicos cresçam, legitimando a ignorância e raiva disfarçados de senso de humor, enfim, logo ele que sempre diz “é só uma piada” depois de ter disseminado mais preconceito e ódio no mundo vem defender uma coisa bonita como a liberdade?

Mas daí, nessa esteira, lembrei-me do quanto ri com Monty Python e a “ A vida de Brian” que mexeu com judaísmo, com religião e mais um monte de coisas e comecei e pensar sobre a beleza da liberdade. O filme é violentíssimo também, vamos combinar. Violento porque sabemos que o homem não é só a matéria corpórea que veste. É o infinito de suas ideias. O mesmo digo sobre “Porta dos Fundos” que despertou a fúria dos católicos e gargalhadas de muita gente. E aí? E agora, Josué? Onde fica o limite entre o que é engraçado e o que é ofensivo? O que é exercício do humor e o que é preconceito? As charges contra a Dilma, presidente que ajudei a eleger, não arrancam risos meus. É lícito proibi-las? Um humor que desse vazão às ideias de Bolsonaro por exemplo, seria defensável por mim? Existe charges que geram um riso universal? Laerte fez uma historieta com Alzheimer kid, um sujeito saindo correndo na cidade avisando que kid veio pra matar. Ele veio pra matar mas não lembrava quem. Eu ri a beça, mas quem tem na família pessoas com Alzheimer, achou graça?

Às vezes eu sou Charlie ainda que ache tudo muito ofensivo quando me coloco no lugar dos muçulmanos. Isso ocorre geralmente quando me lembro do quanto Monty Python me fez pensar com as piadas que ofendiam diretamente, na época, a minha religião. Monty Python foi fundamental para eu ter virado ateia. Era humor inteligente mas muito ofensivo. Daí me pego pensando qual a diferença entre os desenhos de Charlie Hebdo e as falas de Levy Fidelix?, e fico perdida sem resposta. E, tenho que confessar, às vezes não sou Charlie quando vejo as charges que atacam o atual governo em tom de zombaria e sem fundamentos rotulando a todos que dele participam e começo a achá-las um desserviço para a humanidade já que percebo a intolerância e a discriminação.

Enfim, o texto é inconclusivo. Tenho lido muito e procurado entender e conectar as informações. Tudo está sendo aterrorizante o suficiente para abalar as minhas convicções. Agora quais convicções, já nem sei mais. De princípio, tenho visto que nas exibições de força no feicebuque, as pessoas se apegam muito às posições delas e fazem trincheiras de onde atiram. Eu não consegui um lugar exato para fazer a minha barreira. A minha barricada vai para lá e vem para cá conforme eu rio ou me ofendo.

A verdade é que Je ne sais pas qui je suis. Talvez, exatamente agora, je suis uma mistura de Marcie e Patty Pimentinha.

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Fontes:

http://www.diariodocentrodomundo.com.br/a-diferenca-entre-o-politicamente-incorreto-do-charlie-hebdo-e-o-politicamente-incorreto-de-gentili-e-derivados/

http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2015-01-08/nao-trabalharia-na-charlie-nao-tenho-porque-fazer-desenhos-de-maome-sem-roupa.html

http://descolonizacoes.blogspot.com.br/2015/01/por-que-nao-sou-charlie-hebdo.html

http://www.brasil247.com/pt/247/mundo/166167/Leonardo-Boff-‘eu-tamb%C3%A9m-n%C3%A3o-sou-Charlie’.htm

http://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-charlie-hebdo-era-racista/

http://www.brasil247.com/pt/247/mundo/166161/Porque-eu-n%C3%A3o-sou-Charlie.htm

http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/01/charlie-hebdo-reabre-o-debate-sobre-os-limites-da-liberdade-de-expressao.html

http://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/o-atentado-contra-o-charlie-hebdo-e-a-regulacao-da-midia-na-franca-e-no-brasil-3015.html

http://www.contextolivre.com.br/2015/01/a-diferenca-entre-o-politicamente.html

http://www.contioutra.com/eu-sou-charlie-mas-nao-muito/

https://atomic-temporary-52399608.wpcomstaging.com/2014/09/30/carta-aberta-a-reinaldo-azevedo/

https://atomic-temporary-52399608.wpcomstaging.com/politica/

Samurai e Somebody

arma

Quando minha irmã caçula nasceu, eu tinha doze anos e hoje com quase quarenta e dois chego a confundir as lembranças. Não sei se determinado episódio ocorreu com ela quando criança ou com minha filha, tamanho é o meu lado materno em se tratando das duas. Lyli – como lhe chamamos – mora sozinha em Florianópolis desde o dia seguinte em que pegou o seu diploma de médica. O reencontro com ela é sempre uma festa porque Lydiane sempre carrega uma mala cheia de novidades. Viajou, agora veja, para a Europa tendo como companhia ela mesma. Bastou-se para ser feliz em Florença. Pintou os cabelos de vermelho, colocou silicone, faz dança do ventre, compra roupas diferentes e, ó senhor, tatuou-se. Apareceu aqui outro dia com o corpo rabiscado.

Eu, desde que me entendo por gente, tenho o mesmo CEP por não conseguir ficar longe de mamãe e papai. Hoje mesmo, para mudar o estofado do sofá da sala, desesperei-me ao ligar para mamãe e ela não me atender. Como decidir se vou querer liso ou estampado sem que mamãe me ajude? Muito obrigada, moço. Amanhã  volto com mamãe. Pai, o que você acha d´eu mudar a cor do meu cabelo? Não vai ficar bom. Mas a Lyli mudou, pai. Não ficou bom nela. Não faça isso. Pronto. Vou ser a asa da graúna até a morte porque meu pai falou que ficarei feia. Lyli nem precisou perguntar nada para ninguém. Amanheceu ruiva, linda e sorridente como sempre.

No último aniversário da Lyli, eu comprei-lhe um presente. Fui em um antiquário desses na rua do Lavradio e depois de muito pesquisar, escolhi uma bolsinha de madeira, com travas, floralzinha por fora, forrada por dentro e com uma pequena alça de couro. Um mimo usado pelas mocinhas lá pelos idos do início dos novecentos. Se ela não usar para sair, pode colocar como enfeite de cabeceira, para guardar maquiagem ou algo que o valha, pensei. Mandei embrulhar para presente e aguardei ansiosa o momento de dar a ela o regalo.

Lyli pegou curiosa o embrulho. Abriu-o devagar. Eu estava com o olhar daqueles que esperam a opinião de quem prova um doce feito com carinho e com todo cuidado pela gente.

– Que linda, Eka!

(Todos que me amam muito me chamam de Eka com ká.)

Fiquei mega feliz. Afinal, não era um presente mesmo convencional e foi escolhido com muito amor pensando na menininha que Lyli sempre representou para mim, a despeito de estar literalmente voando sozinha – de parapente.

– Ideal para colocar a minha arma! Adorei!

Tóim tóim tóim. Mil martelos de brinquedos bateram na minha cabeça. Como assim, cara pálida, arma? Comprei a pastinha para colocar batom, jesus. Esmaltes vá lá. Arma? Que arma, meu padinciço?

Pois então. Lyli virou ninja a la Brasil. Fez curso de defesa pessoal, tem uma espada de samurai, usa como chaveiro spray de pimenta, acessoriza-se com arma de choque, tornou-se faixa preta em Muay Thai, Krav Magá, Kyusho-jitsu e capoeira. Fez curso de deusa do amor e de tiro. Empolgou-se com este último e acabou comprando uma pistola para os treinamentos que continua fazendo e que cabe exatamente na maletinha meiga que lhe dei. Aff.

Estive no sul esses dias para passar o Reveillon por lá. Lyli resolveu, ó senhor, me levar para conhecer o tal clube de tiro. Aceitei meio a contragosto, mas não quis fazer desfeita porque sei que ela anda treinando muito e certamente queria mostrar suas novas samuraizices. Fomos no carro falando de amores e desamores. Eu contando sobre meu problema de dormir sozinha, de minha inércia em me mudar para um bairro diferente, de minha terapia e coisa e tal quando, enfim, estacionamos o carro dirigido velozmente por ela.

O lugar era tipo sei lá jesus. Um clube de tiro. Cheio de armas penduradas de tudo quanto é tamanho, peso, calibre, cor e sabe deus mais o que é usado para categorizá-las. Todas trancadas numa vitrine de vidro porque é tudo giga perigoso. Também havia arco e flechas, dardos poderosos tipo mísseis, bolas de genkidama, habateku chidori, e kamehameha. Acho que foi mais ou menos isso que vi.

– Pega aquela ali para mim, Mônica, por favor. – Disse Lyli apontando para uma arma tipo assim muito grande quase um canhão para a moça que ficava atendendo, a Mônica.

– Quero também munição para a minha pistola. – E abriu a bolsinha linda vintage.

– Eka, segura aí. – E me deu… acho que era um fuzil. Ou uma carabina. Não sei a diferença. Sei que peguei com o mó  cagaço.

Colocamos protetores de ouvidos, óculos de proteção e Lyli pegou um papel do tamanho de uma cartolina em que tinha um moço desenhado. Entramos no local cheio de homens armados atirando nos bonecos. Fiquei apavorada. Senti-me no Iraque. Lyli nos meteu em uma cabine, ou algo que o valha, prendeu o boneco em um varal, apertou um botão, e o homem-alvo foi para um pouco longe da gente. Senti-me dentro de um filme. Daí ela municiou a pistola dela com uma desenvoltura ninjiana que só vocês vendo, colocou-a em um parapeito lá que ficava entre a gente e o moço pintado no papel e disse (depois que me mostrou como se pega na arma, se mira e coisa e tal):

– Vai, atira nele.

– Ãhn? Como assim? Por que? Ãhn? Como assim?

– Vai. Atira ué. Você acha que a gente veio aqui para quê?

Ao ver que eu estava com medo, ela resolveu me mostrar como se faz.

– Abre as pernas, relaxa os ombros, coloca os polegares paralelos, coloca o dedo levemente no gatilho. Puxa devagar. A bolinha da frente da mira tem que se encaixar aqui. Puxa devagar e POW!

Acho que fazia tempo que não levava um susto tão grande. Gritei como aqueles que vêm a cara da menina do exorcista ou a barata voadora se aproximando. Os homens de verdade que estavam por ali se chegaram prontamente pensando que a Lyli tivesse me atingido, ou não. Sei lá. Sei que da arma saiu faísca, pulou uma cápsula e isso não foi legal. Mega normal, disse ela, mas não foi nada legal. Nada legal mesmo. Nada legal a cápsula ser cuspida quentelosa de cima da pistola.

– Está tudo bem, gente, ela se assustou. primeira vez, eheheheee. – Riu Lyli amareladamente para os coleguinhas franco atiradores.

Vou encurtar a história. Foram várias tentativas. Inúmeras diria. Lyli deu outros tantos tiros (todos seguidos de gritos (reflexos mega naturais meus)) para me mostrar que era maneiraça a parada. Ficamos lá mais ou menos uma hora, eu acho. Cada instante que eu pegava na arma me sentia manuseando uma arma. Quando apontava a arma para o boneco me sentia segurando uma arma apontando a arma para um moço. Arma arma arma. Os barulhos dos tiros das cabines ao lado não ajudavam. Lembrava-me de Platoon, do  Afeganistão e do morro da Serrinha. Mega tenso.

Elika segura a arma é uma oração onde o sujeito da frase não era para estar ali. Apertar o gatilho era algo que jamais pensei em fazer na minha vida. Mamãe e papai não me prepararam definitivamente para aquilo. Eu sou da paz. Sou amor, gente.

Mas eu estava ali.

E não estava me parecendo errado.

(Será divertido?)

Atirei.

E foi no alvo certo.

Em cima da arma desenhada no cartaz.

Não feri quase nada o boneco.

Yeah.

Toda mudança cobra um alto preço emocional. A de valor nem se fala. Antes de eu puxar o gatilho e durante o ato, foi extremamente doloroso. Dúvidas e questionamentos que vinham do além. Não havia pernas abertas e músculos contraídos que me manteriam em pé após o disparo, era a sensação. A mão suava frio. O corpo tremia. Estava perdida em mim mesma. Mas enquanto tremulava, procurava-me e me achei. Perder-se também é um caminho, já dizia Clarice. Enlouqueci e deixei rolar.Tive toda a aparência atrapalhada de quem acertou sem querer, mas não sei. A mira, agora que estou calma, parece que de fato foi feita corretamente.

Lyli não acreditou em tamanha resistência. Mas respeitou a minha velocidade de assimilar a novidade. E para mostrar que ainda podemos mais, muito mais!, pegou o fuzil ou a carabina (já disse que não sei a diferença) colocou munição que era do tamanho de um pão francês (assim me lembro) mexeu no cano para lá e para cá para encaixar o projétil (igualzim como vemos nos cinemas) e atirou elegantemente com seus cabelos vermelhos e esvoaçantes no moço de papel. Riu do rombo que fez.

Na volta para casa, ela me contou que vai pular de paraquedas enquanto eu ainda estava sem acreditar no que havia feito. Consegui me despir do preconceito e das inúteis associações que fazia que só serviram para frear um disparo inofensivo, puro, quiçá infantil.

O tiro (o único tiro que dei na vida) foi certeiro, mas o mais importante naquele dia com a Lyli, foi eu ter vencido e superado a mim mesma e ter me concedido uma ousadia. Eu que temo tanto o desconhecido vi, ainda que em milissegundos, uma explosão. Mas em mim. E de coragem.

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