Era uma vez Clarice, meu Deus.

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Dizem que se auto-medicar é perigoso. Devo confessar-lhes, eu sempre o faço. Mas no lugar de fármacos uso livros. Se estou de mau humor, Rubem Braga, Veríssimo, Fernando Sabino. Apática,  Mia Couto, Saramago, Umberto Eco; para solidão, Jorge Amado, Ziraldo, Zélia Gattai e Fernanda Torres; para falta de paciência, Sérgio Porto, Martha Medeiros, Jô Soares.

 Para desespero, Clarice.

 Não foi por acaso que em todos os momentos que mais me senti aflita devorei um ou dois livros dela. Agora exatamente, em plena travessia de uma separação de uma união de mais de vinte anos, meu corpo pediu Clarice. Mas algo aconteceu. Talvez pela intensidade do momento e pela cumplicidade em seus textos, quis me aproximar dela. Clarice, por que me entende tanto? Por que me explica tanto, Clarice? Procurei vídeos dela na internet (só existe um) e me meti em algumas teses públicas falando sobre um ou outro livro seu.

 Há quem não perceba a sua moléstia, mas o contrário se fez presente, curiosamente, nesse meu momento de dor. Um amigo bateu em minha porta e disse: toma. É seu. E me estendeu essa caixa de remédio tarja preta em forma de biografia de Clarice Lispector.

 Benjamin Moser, o biógrafo, por incrível que pareça não é brasileiro. O maior especialista em Clarice é, se não me engano, americano. O livro é traduzido por José Geraldo Couto. Pouco importa, o que interessa é que Moser tem uma veia de historiador e uma grande qualidade literária. Clarice foi sendo descortinada ao som de um azul celeste.

 Assustei-me com tudo. Clarice, como eu, lado a lado de defender a própria intimidade, tem o desejo intenso de se confessar em público e não a um padre. Vide Minha Vida é um Blog Aberto. Não que eu esteja comparando a minha qualidade literária com a dela. O que eu quero dizer com isso é que Clarice sempre me entendeu muito bem e parece ter justificado todos os meus pecados de forma muito mais clara e direta. Quando leio Clarice, entendo muito melhor a mim mesma. É terapêutico a vera.

 Como tive problemas em meu casamento sendo escritora e leitora ávida, estava buscando saber como Clarice conseguiu escrever e ler sendo também esposa de um diplomata,  acompanhando Maury por longas viagens e levando consigo a opinião sobre casamento tal como aparece em sua personagem Joana do livro Perto do Coração Selvagem. Como suspeitava, não foi sem dor. Não foi sem luta.E a separação mostrou-se para ela o único caminho como vi a mim mesma forçada a seguir a despeito do medo e da insegurança de guiar sozinha um transatlântico.

 Ainda que soubesse que ela já morreu, o contato com a biografia narrada de forma majestosa tal como Moser o fez deu-me a impressão de que ela estava por aqui entre a gente. Conforme o livro vai terminando, a doença aparecendo e ela ainda dizendo que ia morrer escrevendo o desespero começou a se apossar de mim. Não, Clarice, fique comigo pelo amor de Deus. Aguente firme. Mas ela vai e me diz: “Elika, benditos sejam os seus amores. Será que estou com medo de dar o passo de morrer agora mesmo? Cuidar para não morrer. No entanto eu já estou no futuro. Esse meu futuro que será para vós o passado de um morto. Quando acabardes este livro chorai por mim um aleluia. Quando fechardes as últimas páginas deste malogrado e afoito e brincalhão livro de vida então esquecei-me. Que Deus vos abençoe então e este livro acaba bem. Para enfim eu ter repouso. Que a paz esteja entre nós, entre vós e entre mim. Estou caindo no discurso? Que me perdoem os fiéis do templo: eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar.”

 Desnecessário dizer que me desesperei. Fiquei íntima dela, li suas cartas para seus amigos, ouvi suas conversas, vi seu álbum de retrato. O livro Clarice, uma Biografia foi inclusive interrompido por uma leitura de um outro livro de Lúcio Cardoso, o grande amor de Clarice. Gay e, portanto, incapaz de lhe reciprocicar seu desejo, mas que lhe deu toda a amizade e inspiração para muitos de seus escritos. Se Clarice o amou, coisa ruim não pode ser. E não foi. Devorei um livro de seu grande amor que também passou a ser meu.

Agora estou sentindo aquele vazio de quem volta de um enterro. A casa está dolorosamente silenciosa e eu, egoisticamente, inconformada com a despedida.

Era uma vez Clarice, meu Deus.

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