Sobre Baleias e Peixinhos.

baleia

O fotógrafo americano Eric Smith registrou um momento nada raro hoje em dia: uma baleia passando ao lado de homem sem que este a percebesse por estar de olho no celular. Diria você que isso não é comum e até mesmo por ser tão ímpar um momento como esse, a fotografia ganhou destaque nos grandes jornais do mundo. Se tomarmos aqui a baleia no sentido metafórico, como assim foi feita pela maioria das redações dos jornais que comentam o retrato, e associá-la a grandes fenômenos que acontecem à nossa volta enquanto estamos mandando mensagens no WhatsApp ou conferindo as atualizações dos amigos no Facebook é fácil entender que a imagem desse homem em seu veleiro sem se dar conta da baleia que tangencia o seu barco retrata o nosso cotidiano.

Todos já devem ter se deparado com vídeos e textos comentando o quanto as pessoas viciadas em celular deixam de dar atenção para quem está ao  lado. Não vou dissertar sobre isso fazendo coro a todos que criticaram o coitado que não viu a baleia. Primeiro que todos que o fizeram, em sua grande maioria, certamente usaram o próprio celular para atirar a pedra  (tal como aqueles que postam textos falando mal de haloween (a favor do dia no Saci, figura típica da cultura brasileira) confortavelmente de seu aifone). O próprio fotógrafo foi bem rápido em postar a imagem capturada no seu Instagram para criticar o modelo imerso em seu smartphone. Quem lhe garante que não passou outra jubarte ou algo que o valha ao lado do retratista neste momento?

Pergunto-me, por outro viés, a despeito de ser meu sonho ver esse enorme mamífero pessoalmente, se vê-lo faria do homem um ser mais sensível. Estou lendo um livro que aborda o tema do comércio na época da escravidão que acaba descrevendo todas as rotas marítimas utilizadas pelos senhores de escravos. Navio vem, navio vai, muitos homens começaram a observar baleias no mar e rapidamente se perguntaram o que poderiam fazer também com esse bichos para obter lucro. Na mesma época em que negros eram escravizados, surgiu no mundo assim, um mercado que fomentava a caça às baleias. Navios, armas de vários outros tipos, redes, arpões, guindastes eram manufaturados e vendidos para alimentar essa ideia. Até hoje, os japoneses, para citar um outro exemplo, na famosa enseada de Taiji (digitem no gúgol e vejam rapidamente as fortes imagens) chegam a mudar a cor de parte do mar ao matarem diversos golfinhos para seguir uma estúpida tradição. Enfim, o que estou querendo dizer é que ver jubartes, orcas, golfinhos e araras azuis não nos fazem mais sensíveis se não temos capacidade e se não estivermos preparados para sentir determinada emoção. Se formos metaforizar os bichos, pergunto-me quantos vezes nos deparamos com baleias sem que percebamos a beleza do fenômeno não porque estivéssemos focados no celular ou algo que o valha, não porque não estivéssemos olhando para o mar e sim porque algo dentro de nós não permitiu simplesmente chamar aquilo de belo.

No mais, uma outra observação: antes dos smarts, dos celulares que só eram usados para falar, dos telefones fixos e da televisão surgiu a escrita e pessoas que começaram a se ocupar dela. Tanto escrevendo mesmo quanto lendo. Lá pelos idos antes de Cristo, na Grécia, já havia quem criticasse os papiros por afastar a necessidade da presença do corpo nos processos comunicacionais. Por que ir até lá se posso mandar uma carta?  Eu, leitora ávida e por livros de literatura viciada, não raro me isolo para matar a sede pela palavra impressa e, por isso, perdi as vezes em que fui chamada de anti-social. Os alfarrábios eram um veneno para a memória, alertavam os críticos de plantão lá na Grécia antiga. Ninguém precisaria guardar mais nada, nenhum verso, nenhuma poesia, pois estava escrito. Com o exercício da leitura, há uma separação do conhecedor e do objeto conhecido e que perigo isso para a humanidade!, bradavam alguns homens nessa época.

Depois, muito depois, veio o telefone fixo, as cabines, os orelhões que nitidamente buscavam isolar quem do uso deles usufruísse. Pronto. Mais críticas de como estávamos sendo anti-sociais e dá-lhe mais alertas do mal que estamos fazendo com o amigo desprezado que está ao lado. Hoje em dia, não precisamos mais nos isolar. É possível você ouvir uma conversa romântica de um desconhecido que fala no celular ao andar de transporte público, mas ainda assim somos acusados de andarmos distantes de quem está próximo. Quanto ao televisor, nem vamos comentar. O que havia de psicólogos fazendo terrorismo com o fato de ficarmos todos calados olhando para uma telinha não está no gibi… Era o fim do diálogo entre os membros de uma família desde o televisor preto e branco.

Fato é que, mesmo sem dar atenção a quem estava ao nosso lado, em todos esse casos havia sempre uma interação entre pelo menos duas pessoas. Quando lemos um livro, por exemplo, nunca estamos sozinhos, nenhum leitor jamais reclamou de solidão tendo uma boa obra em mãos. E já analisando diretamente os dias de hoje, pergunto-me quantas baleias não vimos dentro do nosso celular. Quantos amores existem graças ao fato dessa engenhoca fazer parte de nossas vidas? Quantos deixaram de existir quando a comunicação era somente feita a pouca distância? Revidará você: e quantos casamentos terminaram por causa disso? Aceito a pergunta, mas não sem antes me questionar se foi o aparelho de celular que separou, de fato, o casal.

Bom, o que estou querendo com toda essa explanação, para quem ainda não me entendeu, é perguntar se é assim tão fácil fazer um julgamento sobre o registro de Eric Smith, ou seja, sobre como estamos nos comportando.

E, permitam-me uma última observação. Se pensarmos ainda mais um pouco, nem era preciso baleia nenhuma passar e deixar o moço sair, abusando do trocadilho, tão ruim na foto. Para os sensíveis, os sensíveis de verdade mesmo, basta ver com bastante atenção um peixinho ou o próprio mar sem que nada se mexa além das ondas e a vida já passa a ter muito o que comemorar.

Um comentário em “Sobre Baleias e Peixinhos.

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