
Mire veja: grazadeus sou brasileira assim como Guimarães. Por ele, já valeu apena ter nascido aqui. Amanheci minha aurora e ainda não deschorei tudo pra mor de resenhar essa obra fazida por um ser desumano porque quem é humano não escreve esse livro. Mas desemocionar-me não vou nunca jamais de conseguir. Pensei: enquanto haver a leitura desse livro, enquanto haver gente lendo o monstro Guimarães a beleza do mundo não se acaba porque se descomeça para antes do começo quando Ele escreve errado por linhas certas. Ele: Guimarães.
O que foi isso? Há simplicidade complexa? Pois sim que há. Ao abrir o livro levei um susto. Desfiz a minha paz. E desde quando aquilo que lia estava em português? A primeira palavra do primeiro parágrafo é “nonada”. Ãhn? A ordem lexical da obra é caótica, oral, as frases são desconstruídas. Foleei o livro para ver quando o livro efetivamente começaria e me assustei ao ver que não há capítulos e de capa a capa a narrativa seria naquele idioma. Por uma mágica dessas que ninguém explica, o cérebro se acostuma e a leitura começa a deslizar. Viver e ler é muito perigoso e ambos dão muito medo. Ao começar Grande Sertão, a impressão é estar adentrando um casarão velho cheio de almas penadas e sombras, movimentos indecisos, chãos atormentados. Insistindo a visão se habitua e com ela vem a admiração. Há quem saia depressa e no depressar tropeça em objetos de muito valor sem que os perceba. Grande Sertão: Veredas… Por que dois pontos no título? Mire veja: o Sertão pode ser o Universo e as veredas a opção de cada um nas circunstâncias. Percebi deserradamente? Acho que não.
O foco narrativo de “Grande Sertão: Veredas” está em primeira pessoa. Riobaldo, na condição de rico fazendeiro, revive seus medos, seus amores e suas dúvidas. A narrativa, longa e labiríntica, por causa das digressões do narrador, fez-me sentir o próprio sertão físico, espaço onde se desenrola toda a história. Eu no mundo. Nós no Universo.
Riobaldo, a despeito de sua jaguncidade, é um filósofo do sertão. Já li Heidegger, Kant, Schelling, Hegel entre outros, mas com quem mais de muito aprendi por aprender a fazer mais ainda perguntas foi com Riobaldo. Se sonha; já se fez? O amor, já de si, é algum arrependimento? Para trás, não há paz? O real não está na saída ou na chegada? Será que o real se dispõe para a gente é no meio da travessia? Despedir dá febre? O sertão é do tamanho do mundo? O sertão é o mundo? Posso me esconder de mim? Coração mistura amores… tudo cabe? Quem sabe direito o que uma pessoa é? Julgamento não é sempre defeituoso porque a gente julga é o passado? E Deus, existe mesmo quando não há? Viver é etcétara… Todo amor é uma espécie de comparação? É, Riobaldo, a gente só sabe bem aquilo que não entende. Eu também, Riobaldo, divêrjo de todo mundo e quase que nada sei, mas como você, desconfio de muita coisa.
O mundo sertanejo é quase medieval em sua religiosidade, na noção de honra pelos jagunços, e nas suas misérias e pestilências. Mas o amor ainda que medieval e sertanejo é igual em todos os tempos: só mente para dizer maior verdade. E eis que vivi a maior e mais linda história de amor na literatura: o amor de Riobaldo por Diadorim que transcende a sexualidade. Diadorim é o seu melhor amigo, mas ele sente uma atração inexplicável muito mais além de uma amizade.. Jagunço que faz amor com jagunço não pode pela lei dos homens, mas as leis que governam os nossos sentimentos são feitas por outras mãos e nós não temos acesso a Elas.
Diadorim… Não me lembro de ter chorado tanto a morte de um personagem. Deslembrar Diadorim, nunca mais eu, assim como meu amigo Riobaldo.
A coragem de Diadorim: clara e louvável. Desde a infância ele já se apresentava como um ser sem medo e demonstra bravura tanto para atacar o inimigo, como para defender um inocente. Quando conhece Riobaldo, na época em que ainda eram muito novos, Diadorim o convida para um passeio no rio e o leva de margem a margem do rio São Francisco. Ao saírem da canoa, Diadorim da ordem ao canoeiro pra que esse ficasse, revelando uma autoridade que fluía naturalmente de si. Ao se afastarem da canoa, são abordados por um rapaz que os interroga sobre o que de errado faziam sozinhos no meio do mato. Diadorim era um ótimo observador e, percebendo as más intenções do homem, o chamou para mais perto. Ele se aproximou sorridente, e o garoto, com uma agilidade incrível, o feriu a faca, sem se preocupar se ele estava armado ou se poderia voltar com companheiros. Essa coragem inspirava Riobaldo, fazia com que esse se sentisse seguro. Além do que, aumentava a sua confiança em si mesmo, acalmando seus medos.
Quando sozinho com Riobaldo, Diadorim revelava toda sua doçura ao contemplar a natureza e falar dela como se fosse parte de tudo aquilo. Ele fez com que o amigo enxergasse toda a beleza que os cercava, despertando também nele o apreço pelas belezas naturais e por tudo que fosse vivo. “Assaz ele falava assim afetuoso, tão sem outras asas; e os olhos, de ver e de mostrar, de querer bem, não consentiam de quadrar nenhum disfarce.” Riobaldo sabe: quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade…
O senhor mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando, disse Riobaldo para mim.
Cá estou eu, em completa transformação e muito diferente de seiscentas páginas atrás. Sentindo que aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. Travessia.
Sorte é isso, merecer e ter lido Guimarães.
Curtir isso:
Curtir Carregando...