Meu Ventre

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Yuki, meu caçulinha de oito anos, teve que ser entrevistado para a diretora da Escola de Música dizer se ele poderia ou não ser matriculado na aula de bateria. A entrevista foi hoje, 26 de Fevereiro, às 15h, no Méier. Ele estava nervoso e veio no carro questionando que estava querendo aprender justamente porque nada sabia e que aquela entrevista não fazia sentido. Concordei com ele, mas era protocolo da escola e vamu que vamu.

Ele entrou. Trinta minutos se passaram e eu do lado de fora sentindo como se ele estivesse numa entrevista de emprego.

– Pode entrar, mãe. Me disse a diretora mega séria cheia de óculos e notícias abrindo a porta e segurando-a para que eu adentrasse depois daquela interminável meia hora.

– Nunca vi nada igual, ela assim começou. Ele tirou nota máxima em ritmo, memória, resistência física, compreensão, raciocínio lógico e musicalidade. Essa entrevista é sempre feita para orientarmos os pais a fazer algo que ajude a criança a aprender música. Yuki, para minha grande surpresa, não precisa fazer nada. Seu filho já está pronto. É só lapidarmos esse diamante. E ele é nosso! Você vai fazer essa matrícula agora. O professor já está avisado que ganhou um presente em forma de criança. Mas você me lembra muito alguém. Você é irmã da Nara?

Nara, minha adolescente de dezesseis anos, começou a estudar canto nessa escola e fez um pouco de piano clássico lá também. Hoje faz aulas de Teatro Musical e estuda canto em uma das melhores escolas de música do Brasil com a Chiara Santoro e Mirna Rubim, na zona sul do Rio.

– Cof Cof. Eu sou a mãe da Nara.

Muitas festas, parabenizações e perguntas sobre o paradeiro dela.

– Nara foi a nossa melhor aluna aqui! Ela é outra que tem tudo!!! Já está pronta!

– Meu filho Hideo também estudou aqui.

– Você é mãe do Hideo??? – Hideo, meu primogênito de vinte a tantos anos, chegou a circular também por lá em aulas de canto. Hoje faz bacharelado em guitarra no Conservatório Brasileiro de Música.

– Caramba! Que ventre é esse, menina? Parece um palco! Não há nascimentos e sim estréias!

Vou dizer uma coisa para vocês…Chorei. Ventre que é palco foi lindimais de ouvir.

Que meus filhos continuem tornando o mundo um lugar mais agradável de se viver. Para tanto, todo o meu tempo e meu dinheiro continuarão sendo usados de forma prioritária para que eles continuem consumindo arte e aprendendo a fazê-la.

Estou extremamente orgulhosa e feliz!

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Os Pais Educam. A Escola Também.

Não concordo de forma alguma com frase “os pais educam e a escola ensina”. Primeiro que acho que a grande maioria das escolas não ensina nada e sim adestra o aluno a fazer prova. Entre fazer uma boa prova e aprender efetivamente um assunto, segue daí uma distância infinita. Depois penso que a maior educação que podemos dar é o exemplo e isso um bom professor pode ajudar e muito.

Eu sou professora de física e completamente apaixonada pela literatura. Na minha biblioteca, os livros competem entre si nos temas. Há tantos livros de ciência como há de romances, crônicas e contos e também de religião. Enfim, sou amante da leitura e, como todos sabem, também da escrita.

Quando chego para dar a minha aula de física, peço para que os meus alunos coloquem na mesa o livro que estão lendo. Tenho vários motivos para fazer isso: o primeiro é que quero, de fato, saber o que eles leem. Mas há outras razões: quando uma diversidade de livros começam a aparecer, é normal que eles olhem os livros que os colegas estão se distraindo. Animal curioso que nós somos, não raro vejo eles pedindo para dar uma olhada no livro do amigo. E temos absolutamente de tudo: Paulo Coelho, 50 tons de Cinza, Harry Potter, Stephen Hawkings, Clarice Lispector, Gregório Divivier…

Conforme o ano vai acontecendo, a quantidade de alunos que leem aumenta perceptivelmente. E todos os anos percebo esse fenômeno acontecer. Se antes 30% colocavam um livro na mesa, percebo rapidamente mais de 50% da turma lendo dois meses depois das aulas terem iniciado. Na verdade, eles podem estar me enganando para eu ficar feliz, mas não acredito que sejam todos gaiatos assim.

Vale observar: não acho que quem não lê seja burro. Longe disso. A minha defesa pela leitura não é para a pessoa ficar mais inteligente, pois eu leio muito e tenho tremendas limitações de raciocínio. Acredito que lendo nos distraímos de forma saudável e um universo se abre diante dos nossos olhos. É um hobby como outro qualquer, mas muito fácil, barato, viciante e sem nenhuma contra-indicação. Se benefícios trouxer como passar a ver o mundo com mais atenção, escrever melhor, compreender um assunto com uma maior profundidade, ficar mais articulado e mais concentrado… tanto melhor.

Ler é um hábito. Se os pais não leem, dificilmente o filho gostará desse passatempo. Mas, se na escola ele percebe que outros da mesma idade que ele conseguem se divertir e crescer de uma certa forma pela leitura é natural que esse desejo e a curiosidade o dominem.

A leitura é, sobretudo, uma fonte inesgotável de prazer, penso eu. Dando bom dia dessa forma para meus alunos faço com que muitos deles sintam essa sede e passem a beber dessa fonte. O exemplo é dado não por mim, professora, e sim pelos próprios companheiros de turma.

A escola serve sim senhor para educar ao permitir que esse tipo de coisa – dentre outras tantas – aconteça.

Qual o WhatsApp do Cachorrinho?

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Hoje, Nara, minha filha cheia de dezessete anos, me contou uma história que vivenciou ontem depois que perguntei para ela porque ela estava rindo sozinha. E ouvi mais ou menos isso:

Ai, mãe!, encontrei o amor da minha vida! Fui buscar Marie Curie no veterinário e quando estava voltando bem devagar porque Marie estava operada uma porta se abre lentamente de uma casa voltada para a rua, exatamente quando eu estava passando.

Fiquei olhando a porta se abrir…

Um cachorro dourado enorme, maravilhoso, peludão sai e logo atrás dele o amor da minha vida! Ele, também enorme, maravilhoso e peludão me deu um sorriso lindo!!! Sem que eu perguntasse, ele me falou:

– Ele não morde. – E me piscou com aqueles olhos cheios de verde esperança.

Ai ai… E o dono…também parecia que
nasceu para me dar carinho…

– Ele tem whatsapp? Ele votou em Aécio ou Dilma? Ele gosta de ler o quê? O cachorrinho estuda onde? Ele gosta da série Sherloque Holmes? O cahorrinho lindo gosta de vacas ou as come? Qual o signo do cachorrinho fofo?

Enquanto olhava para ele hiper piscante, sonhando com as nossas futuras viagens mega românticas, rindo por nada, só pelo fato de ele existir no mundo e atravessar o meu caminho com um cachorro lindo e me trazendo tantos sonhos lindos, Hideo chega e fala antipaticamente empurrando as minhas costas.

– Bora, Nara.

Com a delicadeza do Hideo quase caí e quando acordei o amor da minha vida estava todo sem graça, certamente sem saber como lidar com as minhas gargalhadas saídas assim do nada, só de vislumbrar as respostas para todas aquelas ingênuas perguntas.

Fiquei pensando como seria os filhotes da Marie com aquele cachorro lindo… Depois me lembrei que voltava com ela do veterinário justamente por ela ter sido castrada e que não fazia sentido perder tempo pensando então nos meus netos peludinhos.

Meus sonhos, porém, estão longe de um bisturi, mãe. Por isso cá estou eu, contando para você sobre o amor da minha vida.

Ai ai…

O Aparelho Reprodutor: Angeline Jolie

Para quem não leu ainda nos jornais, Angeline Jolie tirou as mamas, os ovários e as trompas com medo de ter câncer. Isso foi o suficiente para acender um debate e para que as feministas se exaltassem dizendo que Angeline Jolie faz com o corpo dela o que ela quiser. É claro que sim e que ninguém tem nada a ver com isso. A notícia deixou, porém, todo mundo meio boquiaberto e fez com que nos manifestássemos de diversas formas por três principais motivos, a meu ver.

Primeiro: a solução dada parece sim estapafúrdia a ponto das piadas serem inevitáveis.  Daí para “Angeline se mata com medo de morrer”, “Angeline corta os dedos para não ter mais unha encravada”, “Angeline arranca os olhos para não ver mais a fome na África”.., não nos custou nada. Eu, particularmente, pensei que fosse notícia do Sensacionalista (um jornal de humor) quando li a manchete do caso.

Ah não, já disseram alguns, mas é que era mesmo muito provável de ela contrair o câncer porque a proteína bê-sei-lá-o-quê estava alta e bababá bububu.  Justamente, Angeline e todos que usam esse argumento para justificar o feito utilizam do Princípio da Indução que é altamente falacioso. Somos induzidos a acreditar que se algo aconteceu antes vai acontecer depois. Popper e Hume, grandes filósofos da ciência, já argumentaram que o conhecimento baseado na indução é passível de erros e não serei eu a explicar isso aqui. No mais, se existem pessoas que morreram de câncer nas mamas e nos ovários, quantos foram as outras que sobreviveram e se tornaram pessoas mais saudáveis depois de ter passado por ele?  Por que devo usar o princípio da indução no primeiro caso e não no segundo?

Quando estava grávida de meu primeiro filho peguei toxoplasmose. Médicos me disseram que o nenem nasceria com hidrocefalia e eu provavelmente ficaria cega já que cansaram se ver isso acontecer. Bem provável, me disseram… Quando estive grávida da minha filha sem saber que estava, bati mais de 10 chapas de raio x que incidiram diretamente na região onde ela estava crescendo. A probabilidade de ela nascer “defeituosa” era enorme. Se eu acreditasse nisso e seguisse o que me foi aconselhado, o aborto, vejam vocês o que perderia. Se eu tivesse seguido o exemplo de Angeline e não tivesse encarado o meu futuro baseando-me em probabilidades e sendo dominada pelo medo… quão menos rica seria a minha vida.

Ah mas útero só serve para gerar filho e câncer, dizem alguns médicos… será? O que me leva ao segundo ponto:

Sabemos que não somos a soma das partes como muitos médicos insistem em nos tratar. Somos um todo que se influencia mutuamente. Ainda que os ovários não sirvam mais para nada para Angeline (se é que a única função dele é produzir óvulos e câncer), mutilar o corpo tem um significado muito forte. Já dizia Clarice que cortar os nossos defeitos pode ser perigoso porque nunca sabemos qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.

Quem me garante que retirando uma parte não irei desequilibrar outras? Os médicos? A comunidade cientifica que toda hora muda de opinião e que sobrevive a base de financiamentos?

No mais, se tivéssemos o dinheiro da Angelina e fizéssemos exames a mais exames para saber a probabilidade de se contrair isso ou aquilo, isso nos faria pessoas mais saudáveis ou mais neuróticas? O que e leva ao terceiro e último ponto.

O foco maior de tanta polêmica é a atitude dela diante um problema como esse que, como todos sabem, vira exemplo para um rebanho que vem atrás e quiçá para nós mesmos. E se como ela disse, fez isso para que os filhos jamais falassem que a mãe morreu de câncer (como se fosse um futuro certo ela morrer disso caso ela não tirasse os ovários), vai ter que conviver com o fato de que eles agora podem dizer que a mãe deles vivia com medo.

É aí que isso mexe com todos nós: tenhamos ou não ovários, por sua vez, passíveis ou não de terem câncer. O que fazemos diante do medo, sentimento esse que todos nós temos.

Se soubéssemos que trocando de curso bem no meio da faculdade haveria grande probabilidade de não sermos também felizes, se soubéssemos que haveria grande probabilidade de nos sentirmos só quando saíssemos da casa de nossos pais para morar em um país distante quiçá sozinhos em um bairro próximo, se soubéssemos que haveria grande probabilidade de sofrermos muito ao amarmos demais… Ficaríamos acuados pelo medo ou o enfrentaríamos?

Chaplin, se aqui estivesse, diria que até os planetas se chocam e do caos nascem as estrelas. A vida é maravilhosa se não se tem medo dela… Einstein diria que ficar com medo de que  a felicidade acabe é o melhor meio de se tornar infeliz. Clarice, já citada, atacaria dizendo que não tem medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois ela também foi e continua sendo o escuro da noite.

Enfim, medo todos sentimos. O que nos diferencia é o que fazemos com ele e por isso nos alardeamos tanto quando uma mulher aparentemente muito forte recua diante dele.

Não é o corpo de Angelina que nos assusta e sim a forma com que ela se joga na vida com ele.

Grande Sertão: Guimarães

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Mire veja: grazadeus sou brasileira assim como Guimarães. Por ele, já valeu apena ter nascido aqui. Amanheci minha aurora e ainda não deschorei tudo pra mor de resenhar essa obra fazida por um ser desumano porque quem é humano não escreve esse livro. Mas desemocionar-me não vou nunca jamais de conseguir. Pensei: enquanto haver a leitura desse livro, enquanto haver gente lendo o monstro Guimarães a beleza do mundo não se acaba porque se descomeça para antes do começo quando Ele escreve errado por linhas certas. Ele: Guimarães.

O que foi isso? Há simplicidade complexa? Pois sim que há. Ao abrir o livro levei um susto. Desfiz a minha paz. E desde quando aquilo que lia estava em português? A primeira palavra do primeiro parágrafo é “nonada”. Ãhn? A ordem lexical da obra é caótica, oral, as frases são desconstruídas. Foleei o livro para ver quando o livro efetivamente começaria e me assustei ao ver que não há capítulos e de capa a capa a narrativa seria naquele idioma. Por uma mágica dessas que ninguém explica, o cérebro se acostuma e a leitura começa a deslizar. Viver e ler é muito perigoso e ambos dão muito medo. Ao começar Grande Sertão, a impressão é estar adentrando um casarão velho cheio de almas penadas e sombras, movimentos indecisos, chãos atormentados. Insistindo a visão se habitua e com ela vem a admiração. Há quem saia depressa e no depressar tropeça em objetos de muito valor sem que os perceba. Grande Sertão: Veredas… Por que dois pontos no título? Mire veja: o Sertão pode ser o Universo e as veredas a opção de cada um nas circunstâncias. Percebi deserradamente? Acho que não.

O foco narrativo de “Grande Sertão: Veredas” está em primeira pessoa. Riobaldo, na condição de rico fazendeiro, revive  seus medos, seus amores e suas dúvidas. A narrativa, longa e labiríntica, por causa das digressões do narrador, fez-me sentir o próprio sertão físico, espaço onde se desenrola toda a história. Eu no mundo. Nós no Universo.

Riobaldo, a despeito de sua jaguncidade, é um filósofo do sertão. Já li Heidegger, Kant, Schelling, Hegel entre outros, mas com quem mais de muito aprendi por aprender a fazer mais ainda perguntas foi com Riobaldo. Se sonha; já se fez? O amor, já de si, é algum arrependimento? Para trás, não há paz? O real não está na saída ou na chegada? Será que o real se dispõe para a gente é no meio da travessia? Despedir dá febre? O sertão é do tamanho do mundo? O sertão é o mundo? Posso me esconder de mim? Coração mistura amores… tudo cabe? Quem sabe direito o que uma pessoa é? Julgamento não é sempre defeituoso porque a gente julga é o passado? E Deus, existe mesmo quando não há? Viver é etcétara… Todo amor é uma espécie de comparação? É, Riobaldo, a gente só sabe bem aquilo que não entende. Eu também, Riobaldo, divêrjo de todo mundo e quase que nada sei, mas como você, desconfio de muita coisa.

O mundo sertanejo é quase medieval em sua religiosidade, na noção de honra pelos jagunços, e nas suas misérias e pestilências. Mas o amor ainda que medieval e sertanejo é igual em todos os tempos: só mente para dizer maior verdade. E eis que vivi a maior e mais linda história de amor na literatura: o amor de Riobaldo por Diadorim que transcende a sexualidade. Diadorim é o seu melhor amigo, mas ele sente uma atração inexplicável muito mais além de uma amizade.. Jagunço  que faz amor com jagunço não pode pela lei dos homens, mas as leis que governam os nossos sentimentos são feitas por outras mãos e nós não temos acesso a Elas.

Diadorim… Não me lembro de ter chorado tanto a morte de um personagem. Deslembrar Diadorim, nunca mais eu, assim como meu amigo Riobaldo.

A coragem de Diadorim: clara e louvável. Desde a infância ele já se apresentava como um ser sem medo e demonstra bravura tanto para atacar o inimigo, como para defender um inocente. Quando conhece Riobaldo, na época em que ainda eram muito novos, Diadorim o convida para um passeio no rio e o leva de margem a margem do rio São Francisco. Ao saírem da canoa, Diadorim da ordem ao canoeiro pra que esse ficasse, revelando uma autoridade que fluía naturalmente de si. Ao se afastarem da canoa, são abordados por um rapaz que os interroga sobre o que de errado faziam sozinhos no meio do mato. Diadorim era um ótimo observador e, percebendo as más intenções do homem, o chamou para mais perto. Ele se aproximou sorridente, e o garoto, com uma agilidade incrível, o feriu a faca, sem se preocupar se ele estava armado ou se poderia voltar com companheiros. Essa coragem inspirava Riobaldo, fazia com que esse se sentisse seguro. Além do que, aumentava a sua confiança em si mesmo, acalmando seus medos.

Quando sozinho com Riobaldo, Diadorim revelava toda sua doçura ao contemplar a natureza e falar dela como se fosse parte de tudo aquilo. Ele fez com que o amigo enxergasse toda a beleza que os cercava, despertando também nele o apreço pelas belezas naturais e por tudo que fosse vivo. “Assaz ele falava assim afetuoso, tão sem outras asas; e os olhos, de ver e de mostrar, de querer bem, não consentiam de quadrar nenhum disfarce.” Riobaldo sabe: quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade…

O senhor mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando, disse Riobaldo para mim.

Cá estou eu, em completa transformação e muito diferente de seiscentas páginas atrás. Sentindo que aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. Travessia.

Sorte é isso, merecer e ter lido Guimarães.

Bom dia! Não. Pera…

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Hoje acordei dez minutos atrasada. Foi o suficiente para minha vida virar do avesso e eu passar por momentos que se equiparam a um verdadeiro pesadelo.

O caminho de casa até o trabalho não é longo mas é engarrafado. Muito engarrafado. Giga engarrafado. Então, eu geralmente deixo para tomar o meu café no carro e acabar de me arrumar dentro dele que está já devidamente preparado cheio de bijouterias, perfume, acetona e esmaltes. Se o Takimóvel tivesse banheiro, daria para ir fazendo outra série de coisas no caminho e dormiria até mais tarde.  Mas vá lá. Está bom e vai ficar ainda melhor quando arrumar uma torradeira que possa ser ligada na bateria do carro. Serão mais 2 min e 43 seg que poderei ficar na cama. Maravilha.

Mas fato que hoje acordei atrasada e fiz tudo muito rapidamente como fazem aqueles que estão mega apertados para fazer xixi. Lembrei de pegar o pão, a faca e o catupiry para passar no pão. Peguei a caneca com café quentinho e os livros que usaria para dar aula. Fiz tudo isso correndo pra lá e para cá dentro de casa já no salto alto. Entrei no carro e vim me embora. Beleza.

Porém, quase chegando no cefet parei para abastecer o Pafúncio, nome dado ao Takimóvel, quando me dei conta que havia esquecido minha bolsa com dinheiro e documentos. Nada demais. Estava hiper calma até aí já que esse tipo de coisa se resolve fácil com um telefonema ou simplesmente não se resolve e é só rezar que a gente se livra da blitz. O pior e o que me fez entrar em desespero é o que vou lhes contar agora e só as lindas me entenderão. Eu também deixo para me maquiar no carro e o reboco dessa fuça estava todo lá. Na bolsa que eu havia esquecido lááááá em casa.

Problemaço nível perder filho na praia. Imagina dar aula olhando para quase cinquenta alunos sem rímel e sem batom? Já imaginou a desgraça?

Nara havia dormido na casa do pai. Era a minha esperança. Ela estuda na mesma escola em que eu trabalho e tinha que chegar no mesmo horário que eu.

– Alô! Nara! Você não sabe o que me aconteceu! Socorro! Esqueci minha bolsa em casa!
– Ai, mãe, que desgraça! Andando na rua sem documento e sem dinheiro!?! E agora???
– Que dinheiro mané dinheiro! Você está com a sua bolsa de maquiagem na sua mochila?
– Ih, mãe. Eu super estou, mas vou chegar atrasada.
– Quando chegar vai direto para o estacionamento. Tem rímel?
– Mãe, eu disse que vou chegar atrasada.
– Então, estarei te esperando no carro. No estacionamento! Deitada no banco para que ninguém me veja! Corre que hoje tenho que dar uma aula giga importante! Beijo!

Ai. Grazadeus tenho a Nara… Amém.

Enfim, Nara chegou correndo e suada para me ajudar, passou um delineador em mim como só ela sabe passar, bem fininho quase imperceptível, passei o primer (um creme transparente que serve para não sei o quê), depois uma base bem natural com BB cream e batom cor de boca hiper cor de boca mesmo só para dar um toque. Pronto. Podia sair do carro e ir para o mundo que me esperava lá fora. Estava linda.

Como disse, foram momentos de terror e agora vocês super me entendem. Mas depois que Nara apareceu, eu saí do carro com os cabelos esvoaçantes no salto alto. E assim fui andando até a minha sala me sentindo a Gisele Bitchein no comercial da L’Oreal.

Mal dou bom dia para a turma um aluno lá atrás levanta a mão e me diz:

– Professora, sua blusa está do avesso!

É isso, gente.

Espero que o dia de vocês tenha começado melhor do que o meu.

Manifestações na Cozinha

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Estávamos vendo notícias na cozinha sobre as manifestações com a Nara, minha filha adolescente, fazendo pela primeira vez cookies com a ajuda da vovó.

– Vai dar merda… – Falei.
– Mas, mãe, eu segui a receita! Só confundi o bicarbonato com fermento, mas vai dar certo! – Nara protestou.
– Estou falando do Brasil.- Justifiquei.
– Está bonito! – Explanou vovó.
– Não falei, mãe!, vai dar certo o cookie! – Exclamou Nara olhando para os biscoitos todos tortos na fôrma antes de entrarem no forno.
– Estou falando das manifestações. – Disse vovó.
– Está tudo colorido! – Falou Nara mega feliz.
– Tudo amarelo. – Corrigiu vovó.
– Estou falando dos cookies! – Nara disse olhando para os biscoitos enfeitados com confetes de chocolate.
– Vai dar merda. – Falei.
– Você está pessimista com o Brasil, Elika! – Atentou minha mãe.
– Estava falando dos cookies… – Expliquei.

E assim ficamos nós nesse papo esquizofrênico divagando e tentando adivinhar o futuro próximo e o distante.

Os cookies da Nara ficaram ótimos, de fato. Quanto ao resto, estamos – a despeito do meu pessimismo – ainda todos na torcida.

Dia Internacional da Mulher.

igualdade homem e mulher

Pois é, lembro-me que ao terminar o mestrado e doida para ingressar no doutorado fui freada pela minha ex-sogra que me veio cheia de preocupações e, a seu modo, com boas intenções: você só está olhando para você, seu marido precisa de atenção, você está abandonando a sua família, sua filha está ficando adolescente e está ficando sem mãe!, depois não diga que não avisei!

Boba que sou, pensei em desistir. De parar de estudar. Nara, ainda uma criança na época, percebendo que eu estava muito tempo em casa, questionou:

– Você não está fazendo mais nada?
– Não. – Respondi. – Acabou. Mamãe agora vai ficar mais tempo com você. Não é legal?
– Puxa… o que eu vou dizer agora para as minhas amigas?
– Como assim? – Perguntei sem entender.
– Quando você fazia mestrado, eu dizia orgulhosa que você estava estudando. Que ia, como é mesmo o nome do que você fez? Isso, que estava se preparando para a defesa e coisa e tal. E agora… o que vou dizer sobre você?

Era tudo o que precisa ouvir. Naquele mesmo dia, mandei um e-mail marcando uma hora para conversar com aquele que foi o meu orientador.

Agora vejam, enquanto estudava, não estava deixando de ser uma boa mãe, pois estava sendo um exemplo para minha filha. Quanto ao meu casamento, de fato, acabou. Não pelo fato de eu ficar tanto tempo estudando (ou também, sei lá), mas por outros tantos motivos que não vêm ao caso aqui expôr.

Nesse dia Internacional das Mulheres, desejo que menos culpa seja colocada na nossa conta. Que tenhamos paz para estudar, para ler e escrever. E que se der na louca de uma esposa querer ter uma vida acadêmica em pleno matrimônio, que a sogra converse com o seu filho para compreendê-la e apoiá-la. Que as mulheres se ajudem nesse sentido e que a responsabilidade de um casamento feliz ou de uma separação pare de ser só (ou principalmente) da mulher. Isso, penso eu – coisa rara de se observar na nossa sociedade que aponta o dedo para a mulher por tudo de errado que acontece dentro de um lar -, seria um grande exemplo de igualdade.

Lugar de Mulher.

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Sérgio Ricciuto

Eu sou mulher, mas não tenho bundão, nem peito durinho nem coxas sem celulite. Eu sou mulher, mas não sirvo para embelezar estádios, para ser candidata a musa de torcida e aparecer em propaganda de cerveja. A minha sensualidade não pode ser vendida como atrativo porque ela está na minha inteligência. Entenda: não é a minha arquitetura que me define e sim a minha biblioteca. Sou mulher, mas a minha existência não gira ao redor da aprovação e da satisfação sexual masculina. Não deixo o mundo mais bonito quando uso uma roupa justa e sim quando falo, quando escrevo e quando trabalho.

Não vou negar que fico feliz quando alguém generosamente me acha bonita. Mas sei que a beleza enxergada o tempo já está levando e, em breve, pouco restará. Portanto, se me alegro quando elogiam a carcaça, regozijo-me quando enaltecem o que produzo intelectualmente: minhas aulas, meus textos e meus filhos.

Sou uma mulher madura pois gargalho por besteira. Sou delicada, não como um jarro de vidro mas tal e qual as manhãs: expulso a escuridão não somente ao colocar um salto alto e um vestido estampado de vez em quando, mas também – e principalmente – quando abro um livro ou a minha mente.

Sou mulher e não sou obrigada, por isso, a ter algum grau de parentesco com a Nossa Senhora. Sou dona de mim e rainha do meu Castelo. Não ostento jóias. Mereço mais profundidades. Sou o pássaro que canta não para comunicar-se e sim para permitir a primavera. De reta fiz-me curva ao olhar diariamente meu reflexo tão refratado e pleno de passados. Estou, paradoxalmente, cada vez mais presa aos que me libertam. Meu corpo carrega a história de tantas outras mulheres. Meu pretérito é imperfeito.

Meu tempo é hoje e ele não se mede por extenso. Mede-se pelas explosões e pela intensidade e complexidade dos momentos.

O meu lugar é onde eu quiser.