Poleiros

passaro_gaiola

Houve uma época em que era super normal dois homens lutarem até a morte para entreter uma multidão. Já foi normal escravizar pessoas, arrancá-las da família, separar mães de filhos e castigá-los chicoteando até que lhes rasgassem as carnes. Já foi normal casamento arranjado em que o casal se unia para sempre por vontade e interesse somente dos pais. Já foi normal mulheres não estudarem. Já foi normal professores fumarem dentro de sala de aula. Já foi normal casar-se virgem. Já foi normal festinhas de aniversário feitas em casa utilizando rolos de papel higiênico encapados de papel crepom como enfeites da mesa do bolo. Já foi normal patinar no gelo sem capacetes, joelheiras e cotoveleiras, andar sem cinto de segurança com o bebê no colo da mãe no banco da frente. Já foi normal as mulheres fazerem “permanente”, um tipo de penteado misturado com um processo químico poderoso que encrespava todo o cabelo. Já foi normal todas as crianças brincarem de iô iô na hora do recreio. Já foi normal passarmos metade do dia enquanto éramos jovens em uma escola e não usarmos nada do que aprendemos naquelas salas de aula na vida adulta. Já foi normal trabalharmos a semana inteira em algo que odiamos e mal termos tempo para gastar o dinheiro que ganhamos com isso. Já foi normal comermos coisas sem saber a procedência ou mesmo sabendo que estavam cheias de veneno, também já foi no normal comê-las sem crise de consciência. Já foi normal termos milhões de informação ao nosso dispôr e passarmos dias compartilhando somente bobagens. Normal já foi ficarmos o dia inteiro com um aparelho na mão e dormir com ele ao nosso lado. Já foi normal passarmos por deficientes físicos pedindo esmola e nada sentir. Já foi normal termos o colesterol, triglicerídeos, pressão, sono e ansiedade controlados por remédios e acharmos que vivíamos com saúde. Já foi normal gastarmos rios de dinheiro para viajar e chegando ao lugar do destino perdermos tempo tirando e postando fotos e mal percebendo o que está a nossa volta. Já foi normal chegarmos em casa reclamando para mostrarmos, a nós mesmos e aos outros, que trabalhamos muito e tivemos um dia duro, como se isso fosse algum tipo de mérito…

O que seria ser ‘normal’, afinal? Não parece ser uma espécie de doença coletiva? E o louco nessa história? Seria quem não perdeu a própria razão? Aquele que se recusa a fazer parte desse cenário esquizofrênico… é ele o doente mental? Não parece razoável considerarmos que ‘normal’ nada mais é um conjunto de hábitos admitidos pelo consenso social que, na realidade, são patogênicos em graus distintos?

Vivemos em constante epidemia. Curar-se dessa mesmice crônica é fugir dos padrões, é ser a ovelha azul da família, é dizer não a esse modelo de escassez que está no comando. É sair da zona de conforto, esse aparente estado de comodidade que nos leva a morte em vida. É abraçar a si próprio, beijar a sua verdadeira vontade, copular com sua essência e saber, enfim, o que é aquela imagem que se reflete no espelho. Isso, portanto, requer construir suas próprias verdades e não se apropriar de tantos enganos. É perceber o quanto é limitado tudo isso que dizem fazer sentido. Sarar-se é abrir a gaiola para dar fim não a prisão do passarinho – pois este já não sabe viver em total liberdade – mas ao diabo desses poleiros.

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