A Menina que Roubava Flores

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Vou contar para vocês uma história. Se é real ou não deixo para que o leitor avalie. A mim, cabe somente narrar tudo o que eu vi.

Priscila é uma moça adulta, bem jovem e que mora sozinha na rua Sorocaba entre o Humaitá e Botafogo. Esta rua sai bem em frente ao cemitério São João Batista. Priscila é tal como a Januária do Chico Buarque, moça dada às janelas mas não tão percebida e nada que chegue perto de causar algum fenômeno natural tipo o mar fazer maré cheia para ficar mais perto dela. Longe disso. Priscila é moça sozinha e não vista pelo Sol quando desponta. Seu apartamento recebe pouquíssima luz natural.

Cheia de vida, Priscila se distrai bem com as mortes. Já acompanhou com o olhar inúmeros enterros. Se o falecido for gente importante, Priscila até é capaz de descer para ver de perto os amigos artistas chorando. Observa com atenção as homenagens e acha tudo muito bonito, mas nada que chegue perto da beleza das coroas e das flores. Ah como Priscila ama essas corolas das plantas, odoríferas e de cores vivas

Desde criança, Priscila tem paixão em ter em casa flores naturais como enfeite. Sabe que depois de livro lido, não há melhor ornamento para um lar. Flor que acaba de ser aberta traz energia boa para o ambiente, sempre repetiu Priscila. Pela proximidade do cemitério, Priscila já há algum tempo não gasta dinheiro com esses vegetais. Uma vez por semana, antes de entrar em casa, passeia por entre os túmulos e sempre há flores naturais deixada em uma sepultura por alguém saudoso. Como Priscila é cética, não acredita em religião nenhuma, búzios, cartomantes, reencarnação, previsão do tempo nem em astrologia ou forças do além e sabendo que defunto não sente nada, Priscila não titubeia em pegar um vaso ou um buquê que lhe agrade. Sem pedir licença nem nada, Priscila subtrai as cores do jazigo.

 A casa de Priscila está sempre, ao seu modo, com boas energias.

 Aconteceu, porém, algo estranho há dois anos atrás. Diria, surreal. O celular de Priscila tocou. Não apareceu número algum na tela do aparelho, a mensagem era ‘desconhecido’. Priscila atendeu e ouviu uma voz:

 – Devolva as minhas flores, por favor. Eu quero as flores que eu ganhei… – Um clamor choroso implorava do outro lado da linha.

Priscila, óbvio, achou que estava sendo observada ou que alguém pelas redondezas estava passando um trote. Mas quem poderia ser? Ela sequer cumprimentava seus vizinhos direito… Seria algum funcionário do próprio cemitério? Deixa estar, pensou a moça acreditando que aquilo seria passageiro. Qual o quê, minha gente.

 A Voz, digamos assim, ligava sempre. Todo dia para ser mais precisa. E mais do que a paz, aquilo estava atrapalhando as leituras de Priscila que, vale observar, fazia doutorado em filosofia na UERJ e estava se especializando em Heidegger.

A primeira solução dada foi a mais simples possível. Priscila comprou um chip novo para o celular, mudou de número e continuou florindo a sua casa com rosas, margaridas, lírios que estavam destinados a morrer debaixo do Sol quente beirando o insuportável que aquece as tumbas do São João Batista e todo o resto do Rio de Janeiro.

 Em menos de doze horas com o novo chip, Priscila recebeu de novo uma ligação de um desconhecido. Não pode ser!, pensou ela, eu não dei esse número ainda para ninguém!

 – Alô. – Sinalizou a moça que havia atendido.

 – Devolva as minhas flores, por favor. Eu quero as flores que eu ganhei… – A Voz insistia.

 – Quem é você? Por que não me deixa estudar em paz? – Desesperava-se Priscila.

 – Devolva as minhas flores, por favor. Eu quero as flores que eu ganhei… – A voz se repetia.

Por mais que Priscila insistisse, a voz parecia ser surda e não parava de reclamar as suas flores subtraídas.

Priscila tentou, então, desligar o celular. Porém, mal o ligava e a Voz já a chamava. Se não atendesse, a Voz insistia. Bem da verdade, bastava, ao que parecia, falar com a Priscila uma vez por dia.

Ninguém é ateu quando passa por uma forte turbulência no avião. No caso de Priscila, não era um aeroplano em vôo, seu próprio chão estava tremendo tal como o solo de Nepal no terremoto em 2015. Priscila resolveu pedir ajuda para uma mãe de santo. Nem sabia direito o que era isso. Por que pedir socorro a uma mãe ou um pai de santo e não ao próprio santo diretamente? Não importa, a macumba pareceu-lhe mais apropriada para o caso.

 – A senhora vai ter que acender duas velas de cores diferentes e rezar pelo espírito da Voz. – Disse a velha vestida toda de branco.

Priscila deixou de lado todas as suas certezas em relação ao espiritismo e tratou de fazer exatamente o que a macumbeira lhe aconselhou.

De nada adiantou… Acendeu, então, quatro velas, rezou muito mais do que foi a ela recomendado. Nenhum efeito…

Priscila resolveu, então, tentar um padre. Só que os padres, de uma forma geral, são ateus em relação aos deuses de outras religiões. Padre Zezinho, por exemplo, não acredita em espírito que fala – muito menos pelo celular. Por que não fala diretamente? Desde quando espírito precisa de aparelhos eletrônicos para se comunicar?, questionou o sacerdote para Priscila que já não mais raciocinava. A guria lembrou ao padre Zezinho do fenômeno Poltergeist e ele, sabiamente, orientou Priscila a procurar um psiquiatra dizendo que ela estava tendo alucinações.

 – Por que você quer ter a casa sempre florida? – Perguntou a doutor Mauro.

Priscila percebeu que aquilo também não resolveria seus problemas. O médico estava achando que era ela louca. Terminou a primeira consulta com uma receita tarja preta que foi jogada no lixo antes mesmo de sair do prédio que abrigava o consultório. Já dizia o filósofo alemão, aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música. Priscila sabia que não estava louca. Ela estava bem atenta a tudo o que estava acontecendo e ouvindo de verdade.

Diria você, não era mais fácil devolver logo o diabo das flores para o finado? Dois problemas Priscila enfrentava. O primeiro: já viram o tamanho do cemitério São João Batista? E quem disse que Priscila se lembrava de qual sepulcro  havia furtado? Vale observar que até então Priscila jamais havia considerado que cometera algum crime. Afinal, tirar algo de gente morta já enterrada não podia ser considerado errado já que é pela carne oxigenada que percebemos o mundo, pensava assim Priscila. Parecia-lhe, porém, diante tudo isso, que ela havia se enganado. Gente morta também sofre e continua apegada a coisas materiais. O outro era: como ela devolveria as flores furtadas se já havia jogado no lixo depois que murcharam? O falecido aceitaria flores compradas por ela? E não adiantava perguntar isso para a Voz pois ela só sabia repetir:

 – Devolva as minhas flores, por favor. Eu quero as flores que eu ganhei…

Poderia passar alguns dias, quiçá o resto da vida, sem celular. Porém, a Voz poderia muito bem, dado tudo o que Priscila observou, vir pelo rádio, pela televisão ou pelo microondas, por exemplo. O problema parecia-lhe demasiado profundo para que pudesse ser resolvido por considerações tão superficiais, a dizer, mundanas. Podemos ser punidos pelas nossas virtudes?, lamentava-se Priscila que resolveu, então, evitar o martírio, o sofrimento “pela verdade” e até mesmo a defesa de si. Todos aqueles caminhos já tomados estavam corrompendo a inocência e a sutil neutralidade da sua consciência. Tomou coragem e rebatizou o seu lado mau do seu melhor lado. Enquanto houver esperança não haverá solução, pensou Priscila.

A casa da moça continuava a ser lindamente florida pelo mesmo mecanismo barato que descobrira. O celular de Priscila continuava tocando todos os dias e ela sempre atendia. Ainda que a Voz parecesse não ouvir o que Priscila dizia, ela começou a usar aqueles telefonemas anônimos para (se) afirmar: O que eu faço com as flores? Faço isso: elas serem minhas e bem cuidadas. Essa glória ninguém vai me tirar, está me ouvindo?

 – Devolva as minhas flores, por favor. Eu quero as flores que eu ganhei…

Não vou me arrepender do que fiz: ladrão de flores tem não cem anos de perdão, mas uma eternidade, compreende? O que você faria por elas se nem ao menos nariz não tem mais?

 – Devolva as minhas flores, por favor. Eu quero as flores…

Flores em túmulos são mesmos para serem furtadas, não podem secar ao Sol, morrerem virgens enfeitando a morte, o que não se embeleza por definição. Não cumpririam o seu destino de flor. E eu tenho afeto a elas, sim? Não confunda afeto com beijos a abraços, por favor. Afeto, do latim “affetare”, quer dizer “ir atrás”. É o movimento da alma na busca do objeto de sua necessidade. É o Eros platônico, a urgência do alimento que faz a alma voar em busca do pão sonhado. Eu escolho as flores que pego com o mesmo cuidado de uma mulher que faz quimioterapia escolhe a melhor forma  de disfarçar a falta de cabelos em sua cabeça.

– Devolva as minhas flores, por favor…

Quer maior erro em deixar secar um botão de rosas? Preste atenção e é um favor: estou convidando você a mudar-se para um reino novo. Rosa é flor feminina que se abre toda e tanto que para ela só resta alegria de se ter sido aberta. Quando profundamente aspirada toca no fundo íntimo do coração e deixa o interior do corpo inteiro perfumado. Quem vai cheirar uma rosa em um cemitério? E quando há rosas brancas e amarelas? Como resistir tamanha exuberância e deixar que não sejam belas para ninguém? As violetas são bem mais introvertidas e de uma introspecção profunda. Dizem que se esconde por vergonha ou modéstia. Nada disso, as violetas só querem poder captar os seus próprios segredos. E cabe a nós encontrar esse perfume abafado em suas pétalas para ajudá-las. Violetas dizem cheiros que não se podem escutar levianamente. Há de se ter muito carinho com elas.

– Devolva…

Adoro a tagarelice das margaridas e a artificialidade e a antipatia das orquídeas… tenho vontade de por reticências em tudo que é frase com flor…

– …

A Voz calou-se para sempre.

Priscila agora tem que lidar com um outro fenômeno estranho. Suas flores têm durado muito mais do que o normal quase a ponto de parecerem artificiais. Beleza permanente enjoa e a casa fica com cara de monotonia. Para não jogá-las fora ainda assanhadas de tanto perfume e arreganhamentos, Priscila tem as levado de volta ao cemitério e feito todo mês um tipo precioso de escambo com os mortos.

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