Chapeuzinho Vermelho

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– Mãe, me conta uma história? – pediu-me Yuki, meu caçula de oito anos, ontem antes de dormir já que havíamos acabado de ler Reinações de Narizinho e o assunto, aparentemente, havia se esgotado.

– Eu não sei, Yuki… – falei enquanto pensava – Tipo qual? – sondei.

– Pode ser aquela da Chapeuzinho Vermelho…- respondeu-me ele.

– Conte-me você essa historinha para eu saber se você entendeu bem o enredo.

E daí, ele me contou o que todos estão carecas de saber. Mãe, doce, Chapeuzinho, Lobo mau, vovozinha, caçador…

– Tudo errado, meu filho. Não é nada disso. – falei ao final. – Deixe-me eu te contar a verdadeira história. Para começar, jamais o Lobo chegaria primeiro na casa da vovó que a Chapeuzinho porque ela era campeã em corrida na escola e nem o Flash seria capaz de alcançá-la.

– Jura? – estranhou ele.

– Claro que juro. E eu já menti para você alguma vez?

E lá vamos nós…

Era uma vez, uma mãe muito trabalhadeira e que, por sua vez, tinha uma mãe que morava mais ou menos perto e que estava doente: a Vovozinha. Essa mãe pediu para Chapeuzinho, a campeã de corrida na categoria infanto-juvenil em 200 metros rasos e alguns quilômetros profundos, levar a marmita para a vovó.

No meio do caminho, ela encontrou o Lobo que estava não com fome, mas sedento por  uma companhia. O Lobo era um sujeito com uma conversa muito boa e extremamente simpático e foi logo se apresentando e puxando assunto. O sorriso,  não economizado por ele, encantou Chapeuzinho (que nunca ouviu os conselhos de sua mãe e adorava conversar com estranhos que, percebia Chapeuzinho, eram muito mais interessantes que os normais).

Papo vem papo vai, rolou um clima bom entre eles.

O Lobo possuía olhos grandes que observavam com doçura as falas de Chapeuzinho. Suas orelhas pareciam aumentar de tamanho ao ouvir de forma tão atenciosa tudo o que aquela menina explanava. O nariz do Lobo não acreditava que estava diante do melhor cheiro que havia sentido em sua vida. E a boca do Lobo, ah a boca do Lobo… era carnuda e profanava coisas em que jamais Chapeuzinho pensara a respeito… Meodeos, como o Lobo era inteligente…

– Mas ele não queria comer a Chapeuzinho? – interrompeu-me Yuki de forma certeira.

– Ô. E se queria, Yuki. – respondi olhando para o teto cheia de devaneios.

De repente, me dei conta (em tempo de não causar um estrago) que estava ao lado de uma criança. Então emendei:

– Mas não no sentido ruim da coisa, meu filho. No sentindo bem metafórico. Tipo assim, ele queria saborear Chapeuzinho mas como saboreamos um doce. Um sorvete, melhor dizendo, já que não mordemos e nem trituramos o sorvete e sim deixamos que ele se derreta todo dentro da gente. Entende? Percebe a diferença? Então…

Acabou que os dois se apaixonaram e Chapeuzinho convidou o Lobo para ir até a casa de sua Vovozinha. A Vovozinha era uma senhora muito cheia de medos e preconceitos. Ao ver sua neta com aquele sujeito diferente opôs-se sem pestanejar àquela união e começou um bate-boca daqueles na choupana. Foi um quiprocó dos diabos.

Sem que Chapeuzinho e o Lobo percebessem, Vovozinha pegou o celular e ligou para a milícia. Em poucos minutos, chegou o Caçador, apelido dado para o miliciano mais ignorante da região, que mal entrou no recinto já começou a atirar no Lobo.

– Ele morreu? – perguntou Yuki com carinha tristonha.

– Ah não, Yuki… O Lobo era faixa preta em Jiu-Jitsu. Imobilizou o Caçador sem muita dificuldade.

Depois, pegou a Chapeuzinho e foram viver em paz no meio de uma linda floresta.

Até hoje, nas noites de lua cheia, nova, minguante e crescente, há quem ouça uivos de felicidade da Chapeuzinho.

Sobre a Educação e a Pobreza no Mundo

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Há tempos ando percebendo que estou sendo uma marionete de um sistema. Tudo começou quando fiz meu mestrado em História das Ciências e logo depois o doutorado em Filosofia. Sou formada em física e leciono no ensino médio há quase vinte anos. Somente há cinco ficou claro que o conceito de ciência que eu formava em meus alunos em minhas aulas de física – e que eu havia recebido tanto na Escola quanto na Universidade – estava tremendamente equivocado. Por que fizeram isso comigo? Mais ainda: por que me forçaram a fazer o mesmo com outras pessoas?

Estudando os documentos oficiais tanto brasileiros quanto de outros países no que diz respeito ao que deve ser ensinado nas escolas, ficou claro que há conceitos que devemos discutir e “ciência” é apenas um deles que, hoje, vou deixar de lado. Gostaria de propor com esse texto uma reflexão sobre algo maior:  a “Educação”. O que vocês lerão aqui é um breve ensaio de um estudo aprofundado sobre o tema. Não estou inventando a roda ou, melhor, desinventando. Apenas coloquei aqui o resultado dessa minha recente pesquisa com as minhas próprias palavras. Há tanto o que dizer e revelar que pretendo escrever um livro, mas a vontade e a necessidade de compartilhar é tamanha que me arrisquei a fazer esse breve texto economizando maiores detalhes. E afirmo, qualquer um que esteja preocupado com justiça social deve primeiramente refletir sobre a “Educação”.

É comum não pensarmos a respeito de conceitos que usamos no nosso dia a dia. “Sabemos” do que tratam certos vocábulos até o momento em que passamos a refletir sobre eles. Educação. Quase não se fala sobre isso, mas a Educação Pública e Obrigatória foi inventada em um determinado momento da nossa história. Na Antiguidade, havia espaços para a conversação e a reflexão. A instrução obrigatória por muito tempo era coisa somente para escravos. No mundo ocidental, a “Educação” esteve nas mãos, por um bom período, da Igreja católica e não possuía ainda as características que a definem atualmente. Somente no final do século 18 que se criou o conceito de Educação pública, gratuita e obrigatória. A Escola, tal como a conhecemos hoje, começou na Prússia com o objetivo de evitar as revoluções que se sucediam na França. As escolas prussianas se baseavam na forte divisão de classes e, tal como o regime espartano, pregava a obediência e o autoritarismo. Os monarcas até incluíram alguns princípios do Iluminismo certamente para satisfazer o povo, mas mantinham o regime absolutista. E o que buscavam os déspotas esclarecidos? Um povo dócil, disciplinado e que se pudesse preparar para as guerras que aconteciam na época entre várias nações que estavam nascendo. Diderot, uma figura famosa dentre os iluministas, ajudou a elaborar como seria a formação desses cidadãos obedientes e súditos do Estado.

O mundo gira, a Lusitana roda e, em poucos anos, a América e outras nações da Europa visitaram a Prússia para se capacitarem. “Educação para Todos” já era uma frase que se usava assim como a bandeira da igualdade quando justamente a essência do sistema educacional provinha do despotismo buscando perpetuar os modelos elitistas e a divisão de classes. Napoleão importou essa “educação” para também formar seu corpo docente e poder dirigir a opinião dos franceses.

A escola nasce em um mundo que começa a ser regido por uma economia industrial, portanto, busca obter os maiores resultados observáveis com o menor esforço e investimento possível aplicando, em muitos casos, fórmulas científicas e leis gerais. Nessa esteira, a escola era a solução e a resposta ideal à necessidade para se preparar  trabalhadores. Não foi sem motivo que foram os grandes empresários do século 19 que financiaram a escola obrigatória e não é difícil perceber que o modelo de formação industrial como uma linha de montagem era perfeito para ser usado nas escolas. A educação foi comparada à manufatura de produtos e por isso a importância e necessidade de uma série de passos determinados.

E hoje? Se olharmos de cima, bem do alto, percebemos que atualmente a educação também funciona como a melhor ferramenta para formar trabalhadores úteis a um determinado tipo de sistema e também para fazer a cultura permanecer a mesma – o que significa conservar a estrutura da sociedade.

Qual o papel do professor? Ele era (como hoje continua sendo) o encarregado de ensinar uma série de conteúdos determinada por alguns administradores. Percebam o que eu acabei de dizer: a Educação não foi preparada por educadores e sim por administradores. Na “linha de produção” uma pessoa estaria a cargo de uma pequena parte do processo que é propositadamente insuficiente tanto para conhecer o mecanismo em sua totalidade e as pessoas em profundidade. Nós, como professores, temos várias turmas com uma média de 40 alunos por ano o que torna o nosso trabalho, de fato, puramente mecânico de uma forma geral. As exigências e as pressões terminam por desumanizar a todos seja professor, seja aluno, seja diretor, seja inspetor.  Somos um mero funcionário que obedece a uma autoridade que dita o que temos que ensinar e de que forma devemos fazer isso.

Esse esquema de “linha de montagem” foi aplicado na indústria, no exército e em grande parte das escolas no mundo, principalmente, as do ocidente. Será que é uma coincidência o fato de as escolas serem imagem e semelhança das prisões e das fábricas priorizando o cumprimento de regras e tendo um total controle comportamental e social? Pelo muito que li e estudei posso garantir: não. A escola, no formato que a conhecemos, foi feita para ser uma fábrica de cidadãos, como já dito acima, obedientes, mas mais do que isso: consumistas e eficazes para o sistema.

Outra pergunta interessante a se fazer é: por que todos têm que saber o mesmo? Quem disse e escreveu isso? Se somos tão diferentes, se cada um de nós constitui senão um universo uma galáxia talvez, por que todos temos que aprender do mesmo jeito e ao mesmo tempo? As nossas escolas não têm capacidade e muito menos se propõem a responder às necessidades de cada um. Por quê? Porque ela não foi feita para educar  e sim para instruir.

Nosso sistema “educativo” é um sistema de exclusão social que seleciona o tipo de pessoa que vai para a faculdade para fazer parte de uma elite. A nossa “Educação” nas escolas não tem como função olhar e trabalhar cada um, ou seja, até hoje seguimos o mesmo modelo das escolas prussianas dos idos dos novecentos: ensino padronizado, aulas obrigatórias, divisão de séries por idade, currículos desvinculados da realidade, pressões por parte dos professores que por sua vez são pressionados por coordenadores e diretores, prêmios e castigos, horários rígidos e uma estrutura vertical.

O que a escola tem a ver com “Educação”? Nada. Absolutamente nada dependendo de como você compreenda o que seja educar e, por tabela, o que é considerado como uma boa educação. Somos, por um acaso, bem educados para você se conseguirmos adquirir conhecimentos que naturalmente não nos interessariam e superarmos barreiras que outros nos impõem? Ou seríamos bem educados quando somos encorajados e estimulados a alcançar uma boa qualidade de vida que não tem absolutamente nada a ver com nosso conforto material?

Vou propor a você um experimento de pensamento. Esqueça, por um momento, tudo o que disseram que deveríamos aprender na vida. Feche os olhos por alguns minutos e tente ver cada coisa como se nunca tivéssemos visto. Avalie, ao seu modo, cada ação, cada costume. Saia da caixa e veja de fora dela. Se pudéssemos escolher como deveríamos ser educados, a forma que temos hoje está lhe parecendo uma boa maneira de fazê-lo? Quem formamos nesse sistema de ensino? Respondo me colocando como fruto desse sistema tanto como aluna que já fui como professora que sou há duas décadas: formamos pessoas que sabem logarítmos e diferenciar briófitas de pteridófitas, mas não sabem como se relacionar com outras pessoas e com o meio ambiente.

O sistema sempre exige muito mais do que o ser humano – seja ele criança, seja ele adolescente – pode dar. Veja que as médias das turmas jamais são “dez”. Isso gera uma criança estressada, um adolescente com a auto-estima baixa e sem vontade de aprender, pois “aprender” se tornou um processo tedioso e difícil. São raras as crianças que aos doze anos, por exemplo, peguem um livro para ler por livre e espontânea vontade e curiosidade. Quem fez isso com ela?

Informação é definitivamente diferente de compreensão. A última é uma ferramenta em constante crescimento com características únicas que variam para cada indivíduo. Compreensão implica estabelecer relações entre conceitos e critérios e resolver problemas e construir novos conhecimentos. A primeira é o que é passado na maioria das escolas. Nossos alunos viram depósitos de informações e são bem recompensados por isso quando têm sucesso nessa empreitada. A informação que a escola deve passar para seus alunos é o que constitui o currículo. Mais uma vez cabe a pergunta: Quem fez o currículo aplicado nas escolas e com qual objetivo?

A aprendizagem profunda é aquela que se dá baseada no interesse, na vontade e na curiosidade. É muito mais do que estar bem informado. Porém, tanto a escola como a sociedade em que vivemos levam a assumir motivadores externos para alcançarmos nosso objetivo; dito de outra forma, a meta que nos forçaram a ter se resume a “ser alguém na vida” que por sua vez se traduz como “ser alguém bem sucedido” que todos aprendemos como sinônimo de poder ter riquezas materiais. Se buscarmos a origem da palavra “educação” veremos que ela vem do latim educare, por sua vez ligado a educere, verbo composto do prefixo ex (fora) + ducere (conduzir, levar), e significa literalmente ‘conduzir para fora’. Não para dentro. Significa, por essa esteira, motivar. E percebam com clareza uma coisa: uma pessoa pobre, sem dinheiro, não é, na sociedade, vista como uma pessoa bem sucedida. Aquele que estuda por prazer e não gera dinheiro com seu conhecimento é visto como louco ou burro por grande parte das pessoas que o rodeiam. Temos de uma forma geral, a ideia de “educação” como uma única via de ascensão sócio-econômica.

A tarefa do professor deveria ser mostrar mistérios, mostrar situações na natureza mesmo que já estejam descritas pela ciência de modo que o educando se surpreenda. E já que falamos sobre ciência, vale lembrar que ela se apresenta na sua história como composta de muitos mais erros do que acertos. Thomas Edison, o inventor da lâmpada elétrica, fez mais de mil tentativas antes de conseguir o modelo final. Quando um jornalista perguntou como ele se sentia depois de ter fracassado mil vezes, ele respondeu: “Não fracassei mil vezes, a lâmpada é uma invenção que requer mil passos”. E são raríssimos (nem sei se existem) os livros de ciência do Ensino Fundamental e Médio que apontam os erros dos cientistas.

Voltemos à nossa reflexão maior sobre “educação”. Outro ponto a entender: por que os alunos são agrupados por idades? Para que haja uma maior homogeinização: se uma criança fala pouco, ela tem que falar mais. Se uma criança fala muito, ela tem que falar menos. Há um protótipo que deve ser buscado. Porém, para quem tem mais de um filho como eu ou tem irmãos ou primos, fica muito claro que cada um tem um ritmo e uma maneira de aprender diferentes, motivações distintas assim como são também as formas de se relacionar. Mas as nossas escolas desprezam isso e a educação sem liberdade e sem esse respeito ao tempo de cada um gera uma vida que não pode ser vivida em sua plenitude.

Já imagino você me perguntando, como pai ou professor, se a falta de um discurso autoritário e de uma ordem não geraria uma indisciplina geral e um caos. Em outras palavras: há outra forma de se educar? Primeiramente temos que definir bem o que você está chamando de “disciplina”. Seria ela, por um acaso, uma forma de impôr um determinado tipo de comportamento? De onde surgiu essa ideia que educação deve ser repressiva? E você como pai, mãe ou professor, ou seja, como “educador”… como as suas emoções são controladas? O que sentem quando estão educando? Sentem-se em paz ou em conflito? Se não somos felizes educando, estamos de fato educando?

O discurso na maioria das casas é algo parecido com isso: educamos para que nossos filhos saibam se adaptar à sociedade que eles vão viver e que sabemos que vai ser dura. Proponho pensar em encarar a educação, tanto em casa como na escola, como algo que sirva para o educando como um meio de ele perceber criticamente o que gosta ou não, como uma ferramenta para ele pensar como pode melhorar a sociedade e viver em paz consigo, com o seu entorno e o meio ambiente.

É muito difícil, concordo, pensar em tudo isso porque implica mudança. E toda mudança gera um medo danado na gente porque significa questionar o que acreditamos. Não podemos mudar mantendo as crenças e devemos abandoná-las. Por isso, em certa medida, mudar é morrer. Entretanto, “morrer em vida” pode ser sinônimo também de renascer. Por outro lado, a “morte em vida” pode ser sinônimo de se manter sempre na zona de conforto. Tudo é uma questão de coragem e precisamos tê-la se queremos ser educadores, pois, a aprendizagem não deixa de ser uma transformação. Se não aprendemos e se não enfrentamos a nossa própria mudança, como pretendemos mudar alguém?

É muito comum os pais perguntarem para os filhos: “como foi a escola hoje?”. A resposta é sempre muito superficial e geralmente assim: “boa”, “foi bom”, “normal”… o que não quer dizer rigorosamente nada. Experimente perguntar (ou imagine que perguntassem para você nos tempos de escola): “como você se sentiu na escola hoje?”.

Olhemos para trás e nos encontremos como quem fomos na infância e na adolescência. Muito pouco do que aprendemos na escola nos foi verdadeiramente importante a nível de currículo que, vale observar, é quase o mesmo no mundo inteiro e serve para treinar pessoas para o emprego e uma cultura acrítica de consumo. O que carregamos até hoje não foi escrito nos cadernos. Pode ter sido um exemplo de um professor, uma briga com um amigo, uma aula que tenha nos tenha deixado perplexos (uma dentre tantas)…. A escola não nos ensina a ser livres, muito pelo contrário. A escola não nos ensina a nos encontrarmos com nós mesmos, ao invés disso, dificulta esse encontro. Falamos muito de um mundo melhor e esse mundo não é ensinado e discutido nas salas de aula.

O que nos ensinam para vivermos “bem” quando adultos é estar longe um dos outros e a competir por coisas que não tem valor (moral) sem que esse possa ser descrito por algo diferente de um número. Pais e professores não prestaram atenção às nossas demandas assim como não temos escutado hoje nossos filhos e alunos. Pais e professores não nos perguntaram sobre nossa opinião, assim como não perguntamos a opinião de nossos filhos e alunos. Pais e professores não tinham ideia de como nos sentíamos assim como não temos ideia de como se sentem nossos filhos e alunos. Se tivéssemos a opção ontem e se dermos como opção para nossas crianças escolher entre ir ou não à escola diariamente, quantos de nós iríamos? Por que não nos deram e não damos a liberdade de podermos ser livres para escolher o que aprender e como aprender?

Estamos todos como mortos porque não mudamos. Cada vez que negamos escutar nossos jovens é como uma pá de cal sendo colocada a mais na nossa sepultura. Cada vez que escolhemos a meta no lugar do trajeto nos mumificamos. Cada vez que deixamos de criar algo novo, uma parte de nosso corpo apodrece.

Vamos olhar para outras formas de educação no mundo diferente da nossa tradicional. Se fizermos um breve estudo, veremos que as primeiras sempre promoveram sustentabilidade. Não quero dizer que sejam formas perfeitas de educar, mas sim ressalvar que outros tipos de educação promovem um conhecimento maior do solo, do clima, da água… e fazem os educandos seres responsáveis pela própria vida e pelo outro geração pós geração. Voltemos ao nosso sistema educacional. Não aprendemos nada sobre sustentabilidade, não aprendemos sequer primeiros-socorros, não sabemos nos comunicar com pessoas com deficiência auditiva, praticamos bullying com o diferente, não temos ideia de como é produzido o nosso alimento, nos livros de ciências das escolas fundamentais os animais são apresentados pelas suas utilidades para nós, aprendemos a confiar cegamente nos médicos e nada sabemos sobre a história da indústria de fármacos e como a ciência hoje é financiada e desenvolvida. Não temos ideia de como lidar com problemas ambientais e qual é a nossa parcela de responsabilidade na degradação do meio ambiente, mas sabemos logarítmos e utilizar a equação de Torricelli em problemas que jamais serão nossos na realidade.

A Educação que temos não passa de uma doutrinação para uma forma de saber, de aprender e, pior, de ser. E temos consciência de que diferentes formas de saber, de aprender e de ser criam diferentes culturas e indivíduos. A nossa Educação como temos hoje – que, vale sempre lembrar, segue o mesmo modelo de quando foi criada na Prússia – serve para alimentar um sistema de produção industrial. Migramos da sabedoria para o conhecimento, do conhecimento para a informação e da informação para informação incompleta e desintegrada. A maioria esmagadora de todas as atividades que acontecem sob o título “Educação” vem de um plano muito bem específico e elaborado que se mantém o mesmo há séculos. Em 1960, Walt Roston em “The Stages of Economic growth” afirmou que “a maioria da população deve estar preparada para aceitar o treinamento para um sistema econômico […] que cada vez mais confina o indivíduo em grandes e disciplinadas organizações que designam tarefas limitadas e especializadas”. Anterior a isso, em 1898, Ellwood P.Cubberly, da Universidade de Educação em Standford havia dito que “as especificações para a produção vêm da demanda da civilização do século 20 e é o dever da escola construir seus alunos de acordo com essas especificações dadas”.

Vejamos agora o projeto “Educação para Todos” sancionado por inúmeros países do mundo. Trata-se de um programa apoiado pelo Banco Mundial e pela ONU que tem financiamento de grandes corporações. O plano é colocar todas as crianças na escola. A alegação é que indo à escola as comunidades serão capazes de se desenvolver e de fazer parte de uma sociedade maior que, para mim está claro, significa tornar-se parte de uma economia global. Não é raro presidentes, ministros e até educadores confirmarem essa informação ao dizer que temos que educar para crescer como sociedade. O que eles querem dizer com isso?

A missão anunciada é “combater a pobreza global” pela educação. “É uma condição absolutamente necessária para a redução da pobreza”, afirmou Julian Schweitzer, diretor de desenvolvimento humano do Banco Mundial. Quais são os interesses que o banco serve? Ele mesmo, o próprio Schweitzer responde: “A demanda da educação está vindo de homens de negócios que estão descobrindo que eles não conseguem desenvolver suas fábricas porque há uma escassez de trabalhadores qualificados”. A questão que me faço lendo tudo isso é: quem se beneficia quando todas as crianças são educadas de uma mesma forma? Mais um pouco de Schweitzer: “Temos que ter cuidado para não sermos muito paternalistas com as chamadas culturas locais ou tradicionais [ele se referia às comunidades indígenas ou isoladas dos grandes centros]. Podemos não destruir essas culturas mas, por outro lado, ao tentar preservar essas culturas há um tipo de “congelamento” e para evitar isso, nós devemos ajudar educando as crianças”. Pergunto-me ao me deparar com isso: O que esses administradores de educação pensam sobre o “progresso”? Pesquisem vocês e vejam quantidade de crianças e adolescentes no mundo que sofrem de algum transtorno psicológico como a depressão, por exemplo. Vejam quantas tomam remédios psiquiátricos e quantos tentam o suicídio em nosso planeta.

Definitivamente, vivemos sob uma grande crença de que é através dessa educação que conhecemos que vamos tirar as pessoas da pobreza. Se prestarmos atenção, veremos que foi com o advento do colonialismo juntamente com o dito “desenvolvimento” e a ideia de “ajuda” que a pobreza foi criada no mundo. Nos outros sistemas de economia pré-modernas ou pré-desenvolvimento não encontramos o tipo de pobreza que se tem nas favelas. Futuro bom, para nós, é sinônimo de consumirmos muito e, vejam vocês, há pessoas estão se endividando para dar essa “boa educação” para seus filhos sob a grande esperança de que eles sejam futuros engenheiros ou médicos e “alguém na vida”. Quantos conseguem ter esse almejado “sucesso”? A grande maioria? Não. Pasmem. Menos de 10%.

Quando viajamos e visitamos culturas que não têm o nosso sistema educacional, deparamo-nos com uma economia sustentável, achamos pessoas extremamente desestressadas e vivendo em harmonia com o meio ambiente. Encontramos seres que interagem bem entre si e que se respeitam mutuamente. E acredita que ainda há quem defenda que devemos melhorar a vida dessas pessoas com escolarização? Tirar as crianças do contato com a natureza e colocá-las imersas em prisões de concreto, sem verde algum e darmos a elas livros que falam sobre a natureza da forma que falam? Para que faríamos isso? Com que propósito fazemos isso? Não é à toa que o grande mestre Albert Einstein disse ser “nada menos que um milagre que os métodos modernos de instrução ainda não estrangularam por completo a sagrada curiosidade da pesquisa”.

O nosso sistema educacional está classificando milhões e milhões de crianças e  jovens como fracassados. Pessoas extremamente talentosas e sensíveis se tornam os “rebeldes”, “problemáticos” e “repetentes”. O mais preocupante de tudo isso para mim é perceber que as pessoas que estão lutando pela justiça social não conseguem ver o gigantesco tipo de hierarquia e desigualdade que a nossa “Educação” gera. Vamos ligar alguns pontos: por que temos que aprender inglês? E se não tivéssemos aprendido? O que não estaríamos consumindo?

Todos os nossos índices de desenvolvimento não dizem nada sobre qualidade de vida. Ouvimos que “a renda per capita dobrou”. O que isso quer dizer? Devemos mesmo comemorar? Isso pode significar que algum agricultor saiu de uma economia agrária não-monetária para entrar em uma fábrica que explora seus empregados, não? A nossa qualidade de vida melhora, de fato, quando a nossa renda melhora?

Não quero, porém, desprezar tudo o que temos e sim propor um olhar mais crítico, pois quando analisamos a maneira que estamos ganhando o nosso dinheiro percebemos que ela é baseada em um paradigma econômico que segundo qualquer definição científica está mudando a bioquímica do planeta. O “sucesso” que a educação tradicional e a mídia nos fazem sonhar deteriora a olhos vistos o nosso meio ambiente e a nós mesmos como indivíduos. E pior, nosso “sucesso” implica o “fracasso” de outros. A riqueza material não existe sem seu oposto: a pobreza.

Pensemos com carinho e seriedade sobre o assunto.

Principal fonte da pesquisa: https://www.youtube.com/watch?v=gVSW652HrUg

Lista de Afazeres

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Lembrar-se de:

– Apagar as contas.

– Ir ao banco e sentar.

– Colocar o lixo lá fora.

– Corrigir prova e a postura.

– Alimentar o gato e as borboletas.

– Regar as plantas e a auto-estima.

– Arrumar o armário e bagunçar o coreto.

– Comprar presente e se livrar do passado.

– Trocar a lâmpada do banheiro e do pensamento.

– Rasgar os rascunhos e as lembranças que imobilizam.

– Botar para consertar e botar para quebrar.

– Livrar-se das roupas velhas e da culpa.

– Pagar a conta de luz e não apagá-la.

– Lavar o carro e secar as lágrimas.

– Estender a roupa e passar bem.

– Cortar o cabelo e pintar o sete.

– Correr e parar o relógio.

– Esquecer e aquecer-se.

– Amar-se.

Eu na Peixaria. E fora dela.

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Desde que me separei comecei a realizar algumas tarefas a mais dentro de casa. Dentre tantas, uma delas é a minha ida ao supermercado uma vez por semana para abastecer um lar constituído por três filhos, uma empregada que mora comigo há dezoito anos, Marie Curie (minha vira-lata cheia de raça), Gisele Bintchein (minha gata), Tobias Miguel (meu hamster), os peixes e eu. Por mais que se compre, sempre falta algo para essa galera. O ponto é que eu demoro demais escolhendo as coisas. Sempre tive dificuldade para decidir seja lá o que for e, por exemplo,  comprar um peixe não fugiu a regra.

Estava eu na fila da peixaria no supermercado. A fila vai se formando ao longo do balcão em que estão expostos vários tipos de peixes. Um moço com jaleco branco atende os fregueses. Depois de entregar um saco para um comprador, ele já olha prontamente para o próximo da fila pedindo para que lhe explicite o que deseja. As pessoas, além de designar o animal com guelras, para minha humilhação, aponta para o bicho com firmeza. Eu, esperta que só, fico prestando atenção para quando chegar a minha vez. Conforme a fila anda, percebo eu, passo pelo dourado, depois pelo salmão, depois cavala, corvina, pescadinha, badejo, linguado… Há quem mude de ideia em cima do laço e os que têm ideia fixa e não se deixam distrair por um instante sequer. Sabem o que querem. Interessante esses, penso eu, como conseguem?

Eu fico oscilando entre impulsos que nem sei se são contraditórios, pois querer um namorado não exclui levar um pacu, por exemplo. Aliás, há quem diga que o bom é levar os dois, neste caso. O problema é que sou agora somente eu a levar as compras para o carro, tirar as compras do carro, guardar as compras no armário e, portanto, sempre limito a quantidade de seja lá o que estiver comprando. Quero levar um só peixe e a questão que me move na fila da peixaria é: será que sou eu quem escolho o que vou levar ou o peixe que me escolhe? A impressão, se olharmos com cuidado a cena, é que há uma relação metafísica entre o peixe e quem irá degustá-lo. Essa coisa parece estar presente quando o olhar de ambos se cruzam. Reparem bem quando forem comprar esses vertebrados que vivem na água.

Então, nem preciso saber o nome ao certo do peixe. Será que é melhor que eu não conheça nada sobre ele? Permaneço buscando um olhar que cruze com o meu. E penso. Se antes de levá-lo comigo, eu já souber o nome do peixe, a história do peixe, a anatomia do peixe, de onde ele veio, em que águas já nadou, se gosta de superfícies ou profundidades…enfim, se eu souber muito de antemão, o meu relacionamento com ele não corre o risco de se tornar muito mais complexo e movido a preconceitos e expectativas do que se nos aproximarmos um do outro por uma lei transcendental do destino? Mais ainda, será que esse prévio conhecimento impede a emergência de uma verdadeira sapiência que ocorre quando nos entregamos sem medo aos novos sabores? Não seria somente (ou principalmente) na experimentação que saberemos se ele se come melhor assim ou assado (experimentação essa que começa com uma leve e doce imaginação do peixe nos fortalecendo por dentro, ou seja, altamente subjetiva)?

Por trás de cada peixe, há um oceano que nos convida a um mergulho. E vamos saber, de fato, se queremos nos aprofundar em sua história e nos permitir que ele nos alimente com seu ômega 3, alfa 4 e beta 5 primeiramente se ele for agradável no primeiro contato com a nossa língua. É por este músculo poderoso que complementaremos o que perpassou pelos nossos olhos.

– O que deseja, senhora? – perguntou o moço que segurava uma faca em riste.

A cena fez cair por terra tudo o que estava divagando. O que queria era algo saboroso, que não me machucasse quando o permitisse entrar em mim, algo que me deixasse mais saudável, mais forte, que fizesse bem para o meu coração. Mas diante da pressão da fila e do homem de branco, acabei aceitando uma sugestão fuleira como se o que transcende trocasse de lugar, justamente no meu momento de maior aflição, ao automatismo civilizatório que não titubeou em mostrar o seu poder.

Como a dúvida me corroeu ainda na fila do caixa e a sensação de que estava levando algo que não foi resultado de uma preferência autenticada pelos verdadeiros interessados e envolvidos me dominou, acabei devolvendo para a funcionária do supermercado o que haviam me incitado a levar. E assim, já por semanas, temos comido lulas, camarões e mexilhões enquanto não consigo, no meu tempo e do meu jeito, olhar nos olhos de quem emergiu de um universo pleno de sal e beleza especialmente para mim.

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A obra que ilustra esse texto foi feita pelo artista Sergio Ricciuto.

Eu, Jesus e o Magistério

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É comum na minha profissão – que é ser professora – encontrar colegas desanimados. O pior dessa apatia é a (ilusória) nostalgia. Ficam lamentando dos alunos que não temos mais e vivem dizendo: “no meu tempo…” Aff.  O próprio professor se deprime apoiado em uma nebulosa memória do aluno perfeito que foi no passado. Tratemos do que temos na nossa frente e entendamos e aceitemos essa nova realidade de braços abertos. Se ele não sabe as operações básicas da matemática, reclamar disso não vai fazer com que ele aprenda. Se ele acha que ao ler Cinquenta Tons de Cinza, Paulo Coelho e similares está se aproximando do mundo da literatura cabe a você alfabetizá-lo. Se ficar no terreno do imaginação sonhando com o perfeito e apegado ao passado não vai produzir nada.

O desânimo reina e o discurso de que os alunos estão cada vez piores prevalece. Mas pensemos em um figura conhecida por todos: Jesus. Quer você seja cristão, ateu, budista, hare chrishna, não importa. Se mora no Brasil, sabe de quem estou falando e um pouco de sua história (ou lenda). Recordemos.

Jesus, dizem, teve 12 alunos que foram todos escolhidos por ele. Nós temos, em cada turma, em torno de 40 cujo fato de estarem sentados na sua frente nada tem a ver com a nossa vontade e o nosso conhecimento em relação a eles.

Os 12 alunos de Jesus tinham aula dia e noite. Foi tempo integral se não me engano por três anos. Os nossos alunos nos veem duas vezes na semana ou nem isso.

Os 12 alunos de Jesus largaram tudo para segui-lo. Os nossos sequer largam do celular e não querem acompanhar nem por cinco minutos nossos pensamentos.

Jesus fazia milagres. Diriam alguns colegas, nós também. Concordo, mas Jesus falava levanta-te e anda para um paraplégico que saía correndo pelas ruas de Israel ou algo que o valha. Ou seja, o que estou querendo dizer é que Jesus não dava somente aulas teóricas, mostrava na prática o que a sua ciência era capaz. Melhor ainda: as aulas eram ao ar livre. No mais, Jesus andou sobre as águas enquanto nós temos que tomar cuidado para não tropeçar no tablado. Ele transformava água em vinho. Nossos alunos sequer frequentam laboratórios ou têm aulas práticas e quando as têm é manca, pois carece de uma certa magia.

Ainda assim, após 3 anos o que aconteceu justamente na última prova do quarto bimestre? Os seus três melhores alunos caíram no sono enquanto Jesus chorava sangue. O tesoureiro do grêmio delatou o mestre ao diretor por trinta pontos na média final. Pedro, o líder da turma, negou que Jesus havia lhe dado aula três vezes diante do coordenador da disciplina. E os outros nove? Fugiram. E sequer deram as caras no dia que Jesus estava sendo crucificado pelos pais dos alunos e por toda a sociedade.

Ah sim. Tem João. Ele foi até lá mas o que fez ele para impedir o linchamento? Pois é. Nada. Ainda que consideremos João como o aluno que deu certo teremos um sucesso de menos de 10% dessa empreitada, considerada baixíssima, diga-se de passagem, pelos padrões do MEC.

Jesus estava morto. Mas o carinha entregou os pontos, chutou o balde ou desanimou? Não. Acreditem. Apesar de toda essa história, ele voltou três dias depois para dar aula de recuperação nas férias. Reuniu todos que não tiveram média para passar de ano e disse: eu em verdade vos digo que vos darei mais uma chance. Jesus, como sabem, gostava usar a segunda pessoa do plural.

Qual foi a surpresa de Jesus quando Pedro, considerado um de seus melhores alunos, presidente do grêmio perguntou: “Senhor, é agora que vais restaurar o reino de Israel?” . Mas gente…  Um de seus alunos mais inteligentes não havia aprendido patavinas!

Rendimento de todo o esforço de Jesus ao final: 0%. Jesus padeceu? Não. Dá-lhe novos milagres, exercícios, aulas práticas explicadas com muitas parábolas para os alunos entenderem, vinho, pão, trilhas ao ar livre… nada. Ao final, Jesus sobe aos céus no meio do clarão das nuvens, um espetáculo que se compara aos fogos de Copacabana na virada do ano, e babau. Nunca mais voltou mas, bem ou mal, todos se lembram do que ele disse (até mesmo quem nunca teve aula com ele diretamente) quando a porca torce o rabo porque os que o ouviram perceberam que Ele acreditava no que dizia e tinha amor verdadeiro pelo o que fazia.

Então, meu caro colega de trabalho, se com Jesus que foi Jesus assim contam que aconteceu, por que tem se descabelado? Primeiro de tudo lembremos de como a auto estima e a confiança de Jesus era enorme: o cara simplesmente dizia que era o Filho de Deus e mandava ver. Nós estamos enriquecendo psicólogos, psiquiatras e a indústria de fármacos. Qual professor já não teve o pesadelo de perder o controle total de uma sala, especialmente na noite mal dormida que antecede o primeiro dia de aula? Segundo: como melhorar? Oras, eu não sei ao certo, mas tenho alguma ideia inspirada nessa lenda (assim considero) de Jesus.

A história conta que o Mestre disse: Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo. Quem quiser ser líder deve ser servidor. Se você quiser liderar, deve servir. Então, meu amigo, pergunte-se qual o motivo de ensinar tal coisa, qual a relevância, qual a utilidade de tal leitura. O professor é o primeiro que deve saber como tal conhecimento transformou a sua vida. Você acha que já está formado e preparado para esses novos alunos dando a mesma aula que lhe deram há 20 anos atrás? Que tal vencer a si mesmo para começar?

Os artistas de hoje foram aqueles que foram rebeldes na época de escola ou os que tinham o nome entre os dez primeiros melhores alunos em nota? Será que a sua irritação com a turma indisciplinada não é uma espécie de raiva por saber que eles estão querendo aprender algo que lhes seja de fato útil?

Enfim, inspiremo-nos em Jesus e parafraseemo-lo: Ame o seu aluno como a si mesmo e não faça com ele o que você não quer que façam com você.

Conexão Entre Universos

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Por esses dias que se passaram, se olhássemos para o céu veríamos Júpiter e Vênus alinhados. A despeito de parecerem duas estrelas, esses e os demais planetas têm um comportamento diferente de outros astros. O movimento deles não é sempre em uma direção visto por nós aqui da Terra. Eles andam um pouquinho para frente e voltam um tanto. Depois andam mais um pouco e voltam… E assim, nessa aparente indecisão eles muito mais progridem do que retrocedem, e vão desse jeito errático saindo do nosso campo visual.

Em todo tempo que eles permaneceram visíveis, eu os observei um pouquinho cada noite. Odeio desperdícios e seria muito injusto comigo mesmo eu deixar passar esse fenômeno sem interagir com ele e viver as consequências disso.

Ao mirá-los do chão do subúrbio carioca, perguntei-me o que de fato contemplava. Seria o mesmo céu de Galileu ou o céu das ideias de Platão? Olhava para o espaço absoluto de Newton e para o espaço imaterial dos postulados euclidianos? Ou o espaço curvo de Einstein? Essa desconfiança em relação aos meus sentidos e minha inteligência impediu-me de me fazer sentir à vontade com todo o restante do Universo. Olhando assim para seja lá o que for que estiver no firmamento, pensava eu, não consigo extrair nenhuma ideia de dimensões, de distâncias, de ciência e de poesia. Desconfio de tudo o que sei e para o que ignoro mantenho meu conforto suspenso.

Não sabia quando deveria voltar a olhar para as coisas próximas de mim. Será que eu já me apropriei desses planetas o suficiente? De quanto é a medida certa que os corpos celestes podem entrar em meus olhos?

Se tudo o que estou contemplando agora, divagava eu, está tão grávido de incertezas, dúvidas e interrogações o que me resta além de ter que confiar na escuridão e no deserto das minhas respostas? Devo aceitar o nada pela sua estabilidade? Por que diabos a minha relação com o céu é tão perturbadora ao invés de ser algo sereno? De onde vem essa revolução interna a cada vez que eu observo o tempo contínuo e imutável e me desprendo do tempo fragmentado e finito de nós terráqueos?

Assoberbada e insegura, acabei me enervando com os corpos celestes como com muitas pessoas – compulsada e compulsiva – à procura de uma verdadeira conexão.

Que venham outros alinhamentos…

Um lugar como Quintino. Uma pessoa como o Alemão.

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Eu ando naquela fase que viramos cobaia da lei de Murphy. Já estou um tempo nessa desde que me separei, diria. Vaso entupindo, chuveiro queimando, jarros de planta caindo por causa do vento depois que eu limpo o chão do quintal, caixa d´água com problema na bucha e ficando sem encher por dias, internet pifando… Diria você que esses problemas sempre existiram, mas havia quem os resolvesse para mim. Pode ser. Mas pode ser também que o inferno astral seja algo real e eu esteja passando por ele. Inteligente que sou, formada, professora pós-graduada e bababá bububú fico com a segunda opção. A última vez que tropecei na rua, por exemplo, eu sentei, chorei, olhei para os céus e gritei por quê? Por que tudo comigo?

Pois é, eu ando nessa fase…

Ontem dirigindo a noite voltando da terapia, vejam vocês, percebi que os faróis do takimóvel não estavam acendendo. Saí do carro e fiquei alternando entre entrar no carro e liga desliga, seta para esquerda seta para a direita, farol alto farol baixo, e correr para frente para conferir de perto o tamanho da desgraça. Diagnóstico: senta e chora que deu merda de novo. Os faróis não funcionam mais.

Tristeza profunda.

Pedi o telefone de um mecânico hoje pela manhã para um amigo no CEFET. Ele, super fofo, perguntou-me qual era o problema. Eu disse: os faróis do  takimóvel  não querem mais saber de brilhar. Mas isso é caso de eletricista, não? É. Bem. Deve ser. Daí para eu parar no açougue para tentar resolver esse abacaxi automobilístico já não estava muito longe. Quando eu não entendo de um assunto eu não entendo meesssssmo. Acabei apelando para as redes sociais perguntando quem conhecia um eletricista de confiança. No mesmo segundo, Ana Paula, minha amiga de escola, salvou-me dizendo que conhecia um cara de anos, super honesto e coisa e tal. Me passa o endereço? Pois então, não tem endereço. Só tem como chegar. E lá vamos nós.

As instruções foram claras: fica entre a antiga Funabem e a Igreja de São Jorge em Quintino. No meio desses dois tem algo como um mafuá. Chegando ali, disse Ana, pergunta para qualquer um do Alemão. Todos sabem quem é ele. Ok. Para lá eu me mandei. Ao ver a Igreja na frente, a Funabem pelo retrovisor e um furdunço numa esquina parei meu carro para perguntar. Havia ali um grupo de motoqueiros todos com o capacete na parte de trás da cabeça sentados na moto conversando de braços cruzados. Cheguei naquela tribo. Bom dia, vocês sabem onde fica o Alemão?

– Gorete! Alemão já voltou? – Sondou o motoqueiro para uma mulher na calçada que vestia uma calça leg estampada e que estava sentada numa caixa de feira com um bloquinho na mão anotando o jogo do bicho.

– Já. Ele só foi comprar pão na padaria. – Respondeu Gorete que pressionava um cigarro com seus lábios enquanto falava e anotava o que um outro lá estava lhe dizendo.

– É ali, senhora. Naquele portão. – Apontou o moço mais para o fundo de uma rua.

Lá fui eu para o portão. Passado por ele, entrei em um universo paralelo. Tudo se modernizou nesse planeta, menos esses ambientes de lanternagem, borracharia e consertos de carro em geral. As lojas apresentam sempre o mesmo formato, paredes imundas, mulheres peladas tipo Xuxa quando namorava Pelé coladas na parede e uns homens vestindo jardineiras encardidas com alicates no bolso de trás. Alemão está aí? Perguntei.

– Alemão! – gritou um ermitão.- Tem cliente no balcão!

Um homem imundo da cabeça aos pés parecendo um carvoeiro saído de uma mina e com uns olhos azuis-piscina-limpíssima apareceu.

– Bom dia. Fui recomendada para procurar o senhor aqui. Os faróis do meu carro pifaram.

O Alemão foi lá conferir o Pafúncio – meu takimóvel um ponto zero – na calçada mesmo. Mandou eu ligar e desligar tudo. Começou a mexer lá dentro do motor pelas rebimbocas das parafusetas da vida, ficou mais sujo ainda e me disse:

– Vai ali naquela loja e compra duas dessas. – e me passou uma lâmpada pequenininha.- Não quero nada da China, avisa ao Macarrão. Aquelas merdas não duram nada. Compra uma de marca.

– Qual marca? – perguntei.

– Qualquer uma menos chinesa.

Ok. Fui. Atravessei a Clarimundo de Melo e parei em um outro Universo paralelo. A loja tinha como enfeites calotas de carro de todos os tipos e uma geladeira do século XV bem lá ao fundo do outro lado do balcão de onde se via também um vaso sanitário. Ninguém para atender. Macarrão não estava ali. Bati palmas e gritei Macarrão! Apareceu um homem que parecia uma salsicha. Oi, bom dia, o Alemão pediu para o senhor me vender duas dessas, mas ele não quer nada da China porque disse que lá tudo é vagabundo. Salsicha me passou duas caixinhas e me cobrou quinze reais por cada uma.

Voltei. Alemão, pelo pouco que entendo de carro, havia desmontado todo o meu. Quase entrei em desespero porque nem havíamos combinado preço da mão de obra. Mostrei para ele as lâmpadas, ele pegou da minha mão deixando marcas de seus dedos em mim e começou a montar o meu carro de novo. Pela trabalheira que ele estava tendo visualizei notas de cem voando da minha carteira para o céu.

– Pronto. Liga lá.- Disse o Alemão.

Liguei. Tudo funcionando.

– Quanto foi o seu trabalho, moço? – Perguntei já me preparando para receber um Kamehameha.

– Dez reais.

Para tudo, gente. Dez reais? Há muito, não me via tão protegida, feliz e aliviada. Meu ímpeto foi abraçar o Alemão. Freei a tempo lembrando que esse gesto poderia ser mal interpretado e da minha calça branca.

E foi isso. Voltei para casa hiper feliz e segura depois de perceber que o mundo não se limita só a mim e que o contato com outros universos por mais bizarros que sejam pode fazer o mesmo efeito do que um banho de pipoca para uns e um mês de terapia para outros – como eu. Que se danem os meus problemas. No nosso planeta existe um lugar como Quintino e pessoas como o Alemão que consertam faróis e desmancham o medo das escuridões.

Somos Mesmo o Resultado de Nossas Escolhas?

livre arbitrio

Você já deve ter ouvido por aí que vivemos de acordo com as nossas escolhas ou que somos resultado daquilo que escolhemos. Há várias frases como essas compartilhadas ou ditas diariamente por alguém. A despeito de isso parecer algo óbvio e até sábio, esse papo motivacional, a meu ver, é uma grande ilusão. Há grandes possibilidades de que as “nossas escolhas” não sejam exatamente nossas, mesmo quando temos total certeza de que as tenhamos tomado de forma consciente.

Comecei a suspeitar de que a ‘liberdade’ é uma mentira em que acreditamos. Já escrevi sobre isso por aqui. Daí para concluir que a ‘escolha’ é uma ilusão não me custou nada. Nós, como seres humanos, gostamos muito dessa “ideia de liberdade”. Mas será que nós somos completamente autônomos como pensamos ser? No cotidiano, temos a faculdade de realizar ações que, em tese, poderíamos não realizar caso quiséssemos. O que defendo é que esta noção é muito mais complexa quanto parece e que pode ser tão real quanto uma miragem no deserto. Será que temos realmente a faculdade plena de escolher entre esse ou aquele caminho? Estamos inteiramente livres para escolher entre fazer ou não fazer certas coisas? Ouvir que somos livres para escolher isso ou aquilo sempre me incomodou profundamente porque jamais me senti livre e escolhendo nada. Nem profissão, nem marido, nem ter ou não filhos e nem a separação foram me dados como alternativas. Como não?, diria você. Vem comigo que no caminho eu te explico.

Para começar, se acreditamos na ciência, que o universo é previsível e segue um conjunto determinado de regras, ou seja, que cada coisa no universo que temos observado até agora segue algumas diretrizes específicas e nada está isento da influência de forças externas, então, por que nós – os produtos do universo – estaríamos isentos de influências do ambiente? Como fundamentar o livre arbítrio, a vontade que causa algo mas não é causada, numa mente inserida num mundo físico onde nada quebra a regra da causa e efeito?

Ok. A ciência também pode ser um tremendo discurso romântico e subjetivo, mas trazê-la para a discussão nos permite perguntar se e quais forças externas desempenham algum papel na nossa tomada de decisões. E só pelo fato de flertar com a ciência sem sequer aprofundarmos em seus fundamentos já surge a dúvida: será que a razão pela qual a intuição nos diz que temos um livre-arbítrio não seria porque a nossa mente altamente limitada não consegue identificar todos os fatores que afetam a nossa “escolha”?

Diria você: mas eu me vejo escolhendo, por exemplo, em tomar café com açúcar ou com adoçante. É? Vejamos: seja lá qual for a sua “escolha”, considere que ela possa ter acontecido porque a mídia tem mostrado demasiadamente o mal que um ou outro produto faz, que seu paladar não aceita ou um ou outro, que o seu médico aconselhou a diminuir o consumo de um dos dois e por aí vai. Até a mais simples das escolhas conta com fatores que não podemos saber ao certo quais são e muito menos pensar em questioná-los, mas que existem, concordam?

Continuando… Se acreditarmos nas ideias levantadas por Freud, veremos que não agimos de forma livre mas sim conforme nossos impulsos e desejos inconscientes, como se fossemos reféns do mesmos.  Desta forma, acreditamos estar agindo a todo instante conforme queremos e escolhemos sem notar que na verdade, estamos satisfazendo desejos que se encontram em nosso inconsciente. E vejamos como isso faz sentido: o que nos leva a consumir certos produtos, a trabalhar em certas atividades e a nos relacionar com determinadas pessoas? O quanto condicionamos nossos atos aos resultados que estes trarão? O quanto estes resultados que almejamos são construídos pelo meio social em que vivemos? Dito de uma outra forma: se um objeto lançado por nós tivesse consciência do seu movimento não poderia ele se julgar livre para perseverar nesse movimento na medida em que ignorasse por completo o impulso que demos a ele? Em que medida aquele que crê ser livre não é tal e qual uma pedra lançada ao vento que ignora a força que a impeliu?

Se acompanharmos os estudos feitos pela neurociência veremos que atribuir à mente humana alguma liberdade de decisão não condicionada por processos inconscientes parece cada vez mais difícil. Para muitos neurocientistas, o nosso cérebro é um órgão do corpo, como tantos outros, igualmente formado por tecidos e células especializadas, que funcionam conforme nossa constituição bioquímica, reagindo a estímulos internos e externos de formas complexas, porém, de certa maneira, previsíveis. A mente é um troço que emerge da atividade do cérebro em conformidade com as leis da física e da química, o que implica em dizer que somos, em certa medida, o que a química de nossos cérebros faz de nós ainda que não sejamos previsíveis totalmente. Cada emoção pode ser associada a processos neurológicos que, por sua vez, podem ser reduzidos a processos bioquímicos que, em última instância, nós não temos controle.

Eu, particularmente, não acho que a mente possa se reduzir aos processos que ocorrem no cérebro. Para mim, a equação seria “cérebro + alguma coisa = mente”, sendo que essa alguma coisa geralmente é algo metafísico, que traria imprevisibilidade para as decisões do indivíduo, quebrando o determinismo do mundo físico. Mas ainda assim não acho que isso implique a existência do livre arbítrio. Sentir nojo de insetos não me parece uma escolha. Sentir-me mal em um determinado ambiente não me parece uma escolha. Sentir-me atraída por alguém não me parece uma escolha. Sentir saudade não me parece uma escolha. Sentir-me sozinha não me parece uma escolha. Sentir-me triste não me parece uma escolha. Sentir seja lá o que for não me parece uma escolha.

Afinal, “o que, então, determina a minha vontade?”, perguntaria você. Eu não sei ao certo, mas se você acha que é você mesmo ou nada, perceba o quanto isso é incoerente: se é você que determina a vontade, isso significa pressupor um “você” de certa natureza que determina necessariamente a vontade. Dizer que “você” determinou sua vontade só faz algum sentido na defesa do livre arbítrio se “você” não é determinado por nada. Porém, o que seria algo que não é determinado por nada? Complicado quando pensamos seriamente a respeito, não?

Ainda na esteira da ciência, pergunto-lhe: uma célula individual tem o livre-arbítrio? E uma bactéria, teria? Ou uma flor? E uma girafa, um cachorro ou um leão, por exemplo – será que eles têm livre-arbítrio? Em que ponto da nossa história essa tão contraditória e ilusória ideia de liberdade para escolher apareceu em nós?

Visto pelo lado religioso, perceberemos como essa ideia surge e a necessidade de que acreditemos nela, afinal, o fundamento do mal e da punição dos pecadores é o livre arbítrio. Que sentido teria mandar para o inferno pessoas cujos pecados não tivessem sido cometidos por vontade própria? Ou pior, sem agentes de vontade livre, a culpa pelo mal no mundo recairia sobre o único ser livre que sobraria: Deus. O fato de a ideia da escolha vir associada a outra de julgamento não é por acaso: a última precisa da existência da primeira. Isso é algo simples de compreender, afinal, quais seriam as consequências para a sociedade, então, se descobríssemos que não existe livre arbítrio? Como a doutrina da condenação e salvação se sustentaria?

Penso que grande parte da infelicidade, da culpa, do arrependimento e da angústia que sentimos é porque nos fazem acreditar que somos livres e que devemos pagar pelas más escolhas. No caso das religiões abraâmicas (cristianismo, islamismo e judaísmo) o impacto da ideia de que não somos livres para escolher seria fatal. Muito complicado, eu sei, acreditar que não escolhemos nada e que não somos culpados por nada. Como lidaremos com a responsabilidade e autonomia pessoal na Moral e no Direito? Como algumas religiões se legitimariam? Como educar nossos filhos sobre o certo e o errado?

Pesquisando aqui, li que em 2008, em um estudo publicado na Nature com o título Determinantes Inconscientes de Decisões Livres no Cérebro Humano, ficou provado que a decisão começa a ser formada no cérebro até 10 segundos antes dele tomar consciência disso. Ou seja, você se prepara inconscientemente pra fazer algo bem antes de sequer se dar conta que está fazendo isso – e bem antes de realizar o movimento de fato. Outros estudos, dessa vez focados na atividade de cada neurônio em vez do cérebro como um todo, mostraram que as células neurais ficavam ativas antes da decisão de apertar um botão, por exemplo.

Tudo bem. Vocês podem dizer que o livre arbítrio é muito mais profundo do que os resultados dessas pesquisas nos induzem a pensar. Em vez de mexer dedos e apertar botões, seria necessária a análise de atividades mais complexas. Concordo com isso, mas ainda assim percebo que mesmo essas tarefas mais abstratas e intelectuais do que propriamente de movimento não são totalmente espontâneas – elas dependem de coisas como carga genética, experiência, traumas de infância etc.

Talvez você acredite tanto nessa ideia de livre-arbítrio e da existência da escolha porque ignora as causas do seu querer. E veja que interessante e paradoxal: quanto mais imaginamos um livre-arbítrio para escolher, mais nos tornamos escravos porque precisamos de regras que limitem, justifiquem e expliquem a liberdade.

Somos o que somos porque, acredito eu, temos uma essência que não controlamos. Talvez, se houver liberdade de fato, esta deva ser compreendida como a proximidade máxima do conhecimento dessa nossa essência (que é ímpar para cada ser), do que nos torna tristes ou mais felizes. Vocês que acham que existe liberdade de escolha perdem o tempo pensando que tudo poderia ter sido diferente e ficam se culpando por caminhos (que não existem de fato) que poderiam ter tomado. É para isso que o livre-arbítrio nos serve. Para condenar e nos culpar.

Mas, então, perguntaria você, se eu não posso escolher como posso ser julgado? Justamente. Eu acho que essa ideia de ‘escolha’ leva diretamente a outras como de julgamento e moral que eu não aceito como objetivas e universais. Mas, continuaria você, se não há certo nem errado, matar, por exemplo, seria lícito? Se estou criticando a escolha, estou dizendo exatamente que quem mata não teve outra alternativa; o que não quer dizer que um assassino não deva ser condenado porque entendo que o ‘mal’ pode ser considerado como aquilo que prejudica o outro.

Perceba o que quero dizer: ainda que eu acredite que não exista o bem e o mal nesse mundo isso não significa que dispenso qualquer valor. Não existir o bem e o mal não quer dizer que não exista o bom e o ruim. Tenho meus valores. O ponto é que penso no ser em si, no que o movimenta, no que o engrandece e o diminui e dispenso um critério exterior e moral para julgar as coisas. Refugiamo-nos naquilo que nos limita, nossa moral nos protege, concordo. Mas friso que isso nos enfraquece e nos tira muitas essências. Quando eu nego essa ordem moral do mundo abro as portas para os devires: permito-me tornar o que sou e a aceitar o outro como ele é. Sem julgamentos.

Compreendo, vale observar, que a liberdade da vontade não poder ser coerentemente pensada através de conceitos (uma vez que, em última instância sempre caímos ou no determinismo ou no acaso) não significa que sua possibilidade esteja negada. Mas não consigo desistir da ideia de que a metáfora da bifurcação e de caminhos escolhidos é uma invenção que só nos serve para nos gerar culpa e medo.

Se entendo que agi mal em uma situação é pelo fato de ter feito uma coisa de uma determinada maneira e ter tido um resultado ruim.  Neste caso, tentarei mudar, digamos, a química de meu corpo ou o meu modo de pensar para que eu seja capaz de agir de uma forma diferente quando submetida a uma situação similar.

Por fim, as consequências de acreditar que não temos escolhas, ou seja, reconhecer que minha mente consciente nem sempre vai originar meus pensamentos, minhas intenções e ações não muda, a meu ver, o fato de que pensamentos, intenções e ações de todos os tipos são necessários para a vida.

Delirei muito? Não tenho culpa se entendo tudo assim.