Eu na Peixaria. E fora dela.

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Desde que me separei comecei a realizar algumas tarefas a mais dentro de casa. Dentre tantas, uma delas é a minha ida ao supermercado uma vez por semana para abastecer um lar constituído por três filhos, uma empregada que mora comigo há dezoito anos, Marie Curie (minha vira-lata cheia de raça), Gisele Bintchein (minha gata), Tobias Miguel (meu hamster), os peixes e eu. Por mais que se compre, sempre falta algo para essa galera. O ponto é que eu demoro demais escolhendo as coisas. Sempre tive dificuldade para decidir seja lá o que for e, por exemplo,  comprar um peixe não fugiu a regra.

Estava eu na fila da peixaria no supermercado. A fila vai se formando ao longo do balcão em que estão expostos vários tipos de peixes. Um moço com jaleco branco atende os fregueses. Depois de entregar um saco para um comprador, ele já olha prontamente para o próximo da fila pedindo para que lhe explicite o que deseja. As pessoas, além de designar o animal com guelras, para minha humilhação, aponta para o bicho com firmeza. Eu, esperta que só, fico prestando atenção para quando chegar a minha vez. Conforme a fila anda, percebo eu, passo pelo dourado, depois pelo salmão, depois cavala, corvina, pescadinha, badejo, linguado… Há quem mude de ideia em cima do laço e os que têm ideia fixa e não se deixam distrair por um instante sequer. Sabem o que querem. Interessante esses, penso eu, como conseguem?

Eu fico oscilando entre impulsos que nem sei se são contraditórios, pois querer um namorado não exclui levar um pacu, por exemplo. Aliás, há quem diga que o bom é levar os dois, neste caso. O problema é que sou agora somente eu a levar as compras para o carro, tirar as compras do carro, guardar as compras no armário e, portanto, sempre limito a quantidade de seja lá o que estiver comprando. Quero levar um só peixe e a questão que me move na fila da peixaria é: será que sou eu quem escolho o que vou levar ou o peixe que me escolhe? A impressão, se olharmos com cuidado a cena, é que há uma relação metafísica entre o peixe e quem irá degustá-lo. Essa coisa parece estar presente quando o olhar de ambos se cruzam. Reparem bem quando forem comprar esses vertebrados que vivem na água.

Então, nem preciso saber o nome ao certo do peixe. Será que é melhor que eu não conheça nada sobre ele? Permaneço buscando um olhar que cruze com o meu. E penso. Se antes de levá-lo comigo, eu já souber o nome do peixe, a história do peixe, a anatomia do peixe, de onde ele veio, em que águas já nadou, se gosta de superfícies ou profundidades…enfim, se eu souber muito de antemão, o meu relacionamento com ele não corre o risco de se tornar muito mais complexo e movido a preconceitos e expectativas do que se nos aproximarmos um do outro por uma lei transcendental do destino? Mais ainda, será que esse prévio conhecimento impede a emergência de uma verdadeira sapiência que ocorre quando nos entregamos sem medo aos novos sabores? Não seria somente (ou principalmente) na experimentação que saberemos se ele se come melhor assim ou assado (experimentação essa que começa com uma leve e doce imaginação do peixe nos fortalecendo por dentro, ou seja, altamente subjetiva)?

Por trás de cada peixe, há um oceano que nos convida a um mergulho. E vamos saber, de fato, se queremos nos aprofundar em sua história e nos permitir que ele nos alimente com seu ômega 3, alfa 4 e beta 5 primeiramente se ele for agradável no primeiro contato com a nossa língua. É por este músculo poderoso que complementaremos o que perpassou pelos nossos olhos.

– O que deseja, senhora? – perguntou o moço que segurava uma faca em riste.

A cena fez cair por terra tudo o que estava divagando. O que queria era algo saboroso, que não me machucasse quando o permitisse entrar em mim, algo que me deixasse mais saudável, mais forte, que fizesse bem para o meu coração. Mas diante da pressão da fila e do homem de branco, acabei aceitando uma sugestão fuleira como se o que transcende trocasse de lugar, justamente no meu momento de maior aflição, ao automatismo civilizatório que não titubeou em mostrar o seu poder.

Como a dúvida me corroeu ainda na fila do caixa e a sensação de que estava levando algo que não foi resultado de uma preferência autenticada pelos verdadeiros interessados e envolvidos me dominou, acabei devolvendo para a funcionária do supermercado o que haviam me incitado a levar. E assim, já por semanas, temos comido lulas, camarões e mexilhões enquanto não consigo, no meu tempo e do meu jeito, olhar nos olhos de quem emergiu de um universo pleno de sal e beleza especialmente para mim.

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A obra que ilustra esse texto foi feita pelo artista Sergio Ricciuto.

6 comentários em “Eu na Peixaria. E fora dela.

  1. Fiquei admirado com a eloquência do texto, não estou aqui descrever uma momento ou passagem que você enalteceu, mas sim para agradecer pela forma suscita com a qual você expõe o texto. Parabéns!

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