Patroa Empregada.

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Em pleno século 21, há pessoas que ainda usam jornais impressos para buscar e oferecer emprego. Ivonete, cansada de ser explorada como babá, pois, chegando no emprego além de cuidar da criança era obrigada a passar, lavar, cozinhar para todos os marmanjos da casa, resolveu pela milionésima vez, procurar outra casa de família para trabalhar, na esperança de ser melhor tratada. Como Ivonete não é dada às modernidades, foi a humilde senhora anunciar seus dons serviçais no jornal de sempre que tinha um lugar reservado para agenciar empregos.

Lá chegando, pediu para o moço que escrevinhava os anúncios botar assim: “Um salário mínimo, mais condução, alimentação e bom tratamento em casa de gente de família do bem. A casa pode ser grande. Quarto com cama e banheiro se quiser que se durma no emprego. Cuidados com criança pequena ou com velhos. Não é para lavar e cozinhar. Só olhar e cuidar. Telefone para contato:30162X3#”

Ah esse eterno jogo de interesses entre empregados e empregadores… Os últimos querem exigir o máximo e os primeiros, como qualquer ser humano, querem trabalhar o mínimo. Acordo? Será possível?

Não é que Ivonete recebeu logo logo um telefonema? A moça do outro lado, apresentou-se como Dona Elisabete e disse que gostaria de ir pessoalmente à casa de Ivonete para conhecê-la, pois estava muito interessada no serviço. E, naquela tarde, Dona Elisabete fez ressoar a campainha de Ivonete.

– É aqui que mora a Ivonete? – perguntou Dona Elisabete olhando tudo com muita atenção pelos ombros da Ivonete que prontamente atendeu ao chamado.

– Sim. Dona Elisabete? Por favor, entre! – respondeu Ivonete que estava toda arrumada para impressionar a futura patroa.

– Foi a senhora mesmo que fez o anúncio na agência? – conferiu Dona Elisabete.

Aquele “senhora” causou uma certa estranheza para Ivonete que sempre foi tratada por tu ou você pelas patroas.

– Sim. Sim. Eu mesma. Quis deixar muito claro as condições do serviço para não ter aborrecimentos. A senhora gostou? Se interessa?

– Ô. Era a senhora mesmo que procurava há muito tempo. Eu preferi vir pessoalmente porque sabe como é, né? Esse tipo de trabalho é bom olhar nos olhos da pessoa para sabermos se fala a verdade ou não. Já me aborreci demais… – proferiu honestamente Dona Elisabete.

– Ainda assim vou esclarecer mais algumas coisas, Dona, para não ser pega de surpresa.  É para olhar e cuidar de velho ou criança. Não quero saber dessa história de depois ficar lavando quintal de sujeira de cachorro e nem louça de marmanjo.

– Não não. Isso não! Estou cansada dessa exploração com as empregadas ou cuidadoras e babás. Odeio isso também. Se quer empregada, que se contrate uma!, não é mesmo? Se quer babá, se contrate outra! Ou então que pague dobrado já que a outra vai se desdobrar no serviço, né?

– Justamente, Dona Elisabete. Vejo que a senhora é uma pessoa do bem. E depois, já que a senhora tem uma idade parecida com a minha, há de entender que mulheres da nossa idade e com o nosso porte não aguentam esse esfrega esfrega de chão. E quanto ao quarto? – conferiu Ivonete.

– Com banheiro que a senhora falou, não? Pois por mim está ótimo. Com cama e tudo, certo?

Ivonete vibrava por dentro! Nunca pensou que a agência fosse lhe mandar um anjo.

– Chuveiro elétrico, dona Elisabete?

– Como não, Ivonete? Para cuidar de pessoas, a babá tem que estar feliz e limpa. Isso tinha que ser lei em todas as casas, não acha?

– Puxa, dona Elisabete, quem me dera todas as patroas pensassem como a senhora. No geral, elas só querem nos transformar em um burro de carga e nos tratar como um bicho sem sentimentos.

– Justamente! – empolgou-se dona Elisabete. A escravidão acabou, mas parece que essas patroas não entenderam ainda isso. A senhora está falando com uma pessoa muito experiente nesse assunto viu?

Nunca na história do Brasil, houve uma cumplicidade tão perfeita entre as partes interessadas. As duas se entendiam e se espantavam com tamanha compreensão mútua de dor e sentimento de injustiça. Falaram tanto das exigências do bom tratamento à empregada que ao final a patroa praticamente teria que faxinar a casa da contratada. Nada mais justo, já que ela não teria tempo de arrumar e limpar a sua própria casa pois estaria de segunda à manhã de sábado cuidando de uma criança com toda a responsabilidade.

– Bom seria se pudessem ser dois salários. – pediu descaradamente Ivonete.

– Feito! – bateu o martelo dona Elisabete. Quando posso começar? Onde é a verdadeira casa da senhora?

– Oi?

– A casa da senhora, onde fica?

– ???

– Não é nessa casa que a senhora mora, né?

Vejam vocês. Dona Elisabete era tão empregada quanto Ivonete e as duas ficaram empolgadíssimas tratando de facilidades e regalias no emprego pensando que a outra era a patroa. O anúncio mal redigido deu margem à essa interpretação.

– Esmola demais o santo logo desconfia! Bem que estava achando tudo muito estranho! – riu-se toda Ivonete.

– Quarto com cama e chuveiro elétrico! – gargalhou Elisabete.

– Nem sonha em pegar na vassoura! – divertiu-se Ivonete lembrando da Elisabete falando.

E as duas ficaram a pilheriar com elas mesmas e achincalhando tamanha inocência.

Superando Obstáculos. Detonando os Paradigmas.

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Hoje, depois de ir pela primeira vez sozinha ao cinema na vida e ter vencido, mais uma vez, a mim mesma, entrei em uma livraria e por lá fiquei umas duas horas. Acabei encontrando uma professora do tempo em que eu era católica e nem usava sutiã ainda. Põe dois séculos nisso, gente…

– Elika?
– Tia Sônia?

Papo vem papo vai, contei a ela que havia me separado depois de vinte anos de casamento, que estava me reinventando como ser humano, que vivia um dia histórico na minha vida e bababá bububú. Mulher é assim. Fala tudo pra tia.

– Mas você está linda, Elika! Aposto que tem muito garotão querendo te levar ao cinema… – viajou.

– O ponto é que mesmo que isso seja verdade, tia, eu gosto mesmo é de alguém maduro para conversar. – lamentei.

– Elika, ô Elika!, heloooou, Elika! Olha, eu estou com sessenta e dois anos, vinte a mais que você. Sempre tive namorado mais velho do que eu. Os namoros duravam dois, três anos, no máximo. E eu sempre terminava falando a mesma coisa que você está falando agora. Dã. “Eu queria um homem maduro”. – e disse essa última frase fazendo voz de criancinha e zoando descaradamente da minha… da minha… ingenuidade? esperança? solidão?

– E depois, vou te explicar algo que deveria ter falado há trinta anos atrás quando fui sua professora, Elika. – continuou empolgadésima a me dar aula – O melhor da vida se faz em silêncio, ou melhor, sem conversar. Sabe o que é? – aimeodeos ela não vai me fazer ouvir isso! – Sexo e cinema!

Pronto. Falou.

E gargalhou alto. Comecei a procurar a minha cara debaixo da mesa.

Como assim a minha tia da quarta série não era virgem ainda? Como assim??? Como assim a minha tia que me ensinou a tabuada não era santa, imaculada e pudica? Como assim?

Bom, sei que cheguei em casa. O dia já estava pra lá de tenso para mim. Há um tempo que ando em guerra com minhas limitações. Mas, neste final de semana, resolvi partir para o massacre. Só não contava em desconstruir o paradigma da tia-freira-fofurésima com ela me dando de presente o kama sutra.

Venci um trauma. É verdade. Filme assistido. Ponto para mim. Uhuul. Eu crente que estava abafando, me superando e ficando boa da cabeça… Voltei para casa mais desnorteada que bússola em um dos pólos terrestres.

Ficar imaginando tia Sônia naquelas posições do livro… mas gente… Eu que não rezo há anos, pensei em fazer uma oração praquela alma depravada encarnada naquele corpo super feliz.

Por isso é que eu escrevo viu. Dormir com essa sem dividir seria surto psicótico na certa!

E giga injusto com as outras mulheres…

Primavera-me, Genário

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Eunice era assim. Gostava tanto de Genário que rezava sempre ajoelhada ao pé da cama antes de se deitar ao lado dele para agradecer a Deus o que lhe aconteceria assim que fizesse do marido a sua coberta. Enquanto ele a esperava já pensando em como relaxaria o seu corpo no corpo de Eunice, ela conversava com o infinito e bem se sabe o quanto o além nos exige em orações subordinadas. Genário não tinha tantas profundezas, ele trabalhava como técnico em eletricidade passando fios e levando luz – não aquela que se traduz como ideias e sim a que viaja pelos fótons – à cabeça das pessoas.

– Bora com isso, Eunice. Quero fechar logo esse circuito.

Eunice com a cabeça ainda virada para o teto do quarto, olhou Genário de soslaio e sorriu em malandra pureza. Voltou para agradecer mais ainda a maior vitória: menos a de ser querida depois de tão velha e amolecida, e muito mais por querer Genário depois de tantos anos de correntes alternadas e resistências em série que o fio da vida oferece principalmente às fêmeas.

– Anda, Eunice.

E Eunice se demorava. Além do normal. Muito mais do que a eternidade no referencial da impaciência de Genário. Até que Eunice se benzeu mais vagarosa do que todas as outras vezes. Levantou calmamente. Ereta se desnudou para Genário que olhou  fixamente e cheio de desejo o seu sexo e foi subindo a mira de suas pupilas dilatadas. Os seios. Ah os seios de Eunice, que delícia beijá-los!

-Vem, Eunicinha. Vem.

E então, Genário olhou o rosto de sua Eunice que, espreita, chorava. Gotas de mar saíam dos olhos daquela que, em breve, viraria cachoeira nos braços de seu único amor.

– Oras, Eunice, por que choras?

Genário que era vontade em potência, transformou-se em corrente de afeto.

– Fale, Eunicinha, conversa com seu Genário não com seu corpo, mas com sua alma. O que te afliges?

Eunice explicou. Pediu a sua própria morte a Deus naquela longa oração. Se é para morrer que seja quando Genário estivesse feito ondas na praia em sua ilha cercada de carne. Ela lhe disse que não há maneira melhor de morrer do que na cama, mas não quando ficamos moribundos e sim quando de olhos fechados vemos todas as cores.

Genário desacreditava no que estava ouvindo. Eunice enlouquecera? Qual o quê. Eunice o olhava sorrindo. Serena. Como os convictos. Queria Eunice morrer no flagrante da fragrância de Genário.

– Brochei, Eunice.

Ela, então, se deitou ao lado de Genário e reverteu com maestria aquele apagão. Trocou a bateria de seu brinquedo preferido e sussurrou ao pé do ouvido de Genário poucas semvergonhices.

– Continua, Genário.

Genário virou um lago calmo.

– Vem, Genário, vem, força, meu homem.

Genário imitou o mar. Depois virou Oceano Índico e se enredou, gemente.

Eunice sabia que aquela morte não era morrer. Era suicídio de japonês que entende tudo como passagem, até quando o coração deixa de bater para sempre. A si mesma, Eunice se enfrentava. Seus olhos fechados testemunhavam a despedida de seu corpo e de Genário. Eunice gritava de prazer, se eletrizava e se contorcia. Genário ondulava como uma bandeira hasteada e dançava com sua Eunice como se os invernos e os infartos não existissem. Eunice primaverava. Comungava e conjugava: quando tu flores eu flor, Genário.

As pálpebras de Eunice borboletaram enfim.

No átimo do ápice do ótimo do gozo de seu amor.

Carpe Diem

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Algo mais ocorre quando reencontramos um amigo da época da adolescência, quer ele tenha virado padre, professor, político ou quer tenha se transformado em um doutor ou em um escritor. Percebemos a transformação externa, mas não conseguimos ver um adulto como um outro qualquer na nossa frente.

Ao vivermos esse reencontro, não há cabelos brancos e rugas residentes em nossos rostos que nos impeçam de enxergar o menino que ainda é e sempre será, para nós, o amigo reencontrado. Por outro lado, somente nesses reencontros percebemos também que há um lugar dentro da gente em que seremos eternamente jovens e estranhamente leves.

Para todos vocês que estão hoje no Ensino Médio, percebam como vocês ficarão daqui a uns vinte e trinta anos se mantiverem suas amizades. Porque no final, é sempre o caminho que interessa e a amizade é que colorirá essa tortuosa vereda.

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Durma bem, meu menininho.

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A cena de um menino de três aninhos morto por afogamento na costa turca tirou-me do equilíbrio. Assim que vi a foto da criança, sozinha, gelada, me deu vontade de cobri-la, niná-la, pedir perdão por tudo e colocá-la na caminha como qualquer criança merece para ela continuar seu sonho.

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Sei que há crianças morrendo no mundo inteiro e muitas até bem perto de nós. Mas há um elemento que fez toda a diferença nessa tragédia dos refugiados. Um elemento que se talvez não existisse não iríamos ficar tão tocados: a fotografia. Mais uma vez, a arte fez o seu papel na história. Sensibilizou. E muito. De uma forma ímpar.

A posição dessa criança ainda com tênis como se estivesse dormindo, com o mar e a areia como colchão tem, diria, algo da quarta dimensão. Coisa digna de Sebastião Salgado que dá o recado que mil discursos lindíssimos não conseguem nem chegar perto.

Se fosse uma fotografia de vários mortos não chocaria tanto. Por que? Não sei. Mas sei que chargistas do mundo inteiro ilustraram o fato e, também, mais uma vez, fizeram o seu papel. Ajudaram a comover mais ainda e melhorar o que já estava bom, ou melhor, piorar o que já estava pra lá de indigesto. Coloquei aqui nessa postagem, as charges que mais me emocionaram.

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Essa comoção toda talvez tenha acontecido pela posição em que a criança está. Parece que está dormindo e imediatamente temos vontade de tirar o tênis da criança, cobri-la e colocá-la em um lugar melhor, para ser mais exata, em um mundo melhor para ela ressonar.

Eu não entendo bulhufas de história. Leio leio sobre o Oriente Médio e o resto do mundo com aquela região e fico igual ao Yuki, meu caçula de oito anos, querendo entender o racismo. Não adianta. Não entra na minha cabeça como um ser humano faz tanta coisa ruim com outro.

Desgraçadamente o menininho que jaz na foto e nas charges é “apenas” um dos milhares de mortos que perdem a vida nas viagens de imigrantes desesperados para a Europa.

Não foi acidente, minha gente. Tudo isso e muito mais poderia ter sido evitado. Eu não sei exatamente a causa de tamanha desgraça, mas está claro que há falta de amor. No mundo está faltando muito amor. E sobrando ganância.

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A questão central colocada frente ao avanço da barbárie capitalista que vem deixando um rastro de morte na Europa é a necessidade de superar a agonia do capital. Qual o caminho? Penso eu que não há outra vereda a não ser o da violenta demolição da sociedade de classes e o da construção revolucionária de um novo modo de produção baseado na solidariedade e no internacionalismo.

Enquanto isso não acontece, colocamo-nos ao lado do menininho e sonhamos sim que ele está dormindo e acordará para brincar nessa praia e nadar nesse mar que o trouxe para todos nós.

Durma bem, meu menininho.

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