A Seiva Imortal

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Essa história aconteceu lá pelos idos de 1920, em Minas, em uma fazenda de café. A escravidão já havia acabado no papel, mas se ainda hoje vemos notícias de pessoas trabalhando em condições miseráveis, naquela época em que as informações não eram democráticas encontrávamos com frequência os troncos onde os escravos eram ainda açoitados nos quintais dos casarões.

João Prudêncio trabalhou com Sinhô Rubens por pouco menos de vinte anos.  Apareceu na fazenda Vera Cruz ainda criança, porém totalmente desprovido de infância. Era adolescente quando foi trabalhar na plantação. Logo percebeu-se que João Prudêncio possuía uma característica peculiar: ele era um jardineiro nato. Qualquer cantinho de mato nas mãos de João Prudêncio virava jardim desses que fazem a gente andar até mais devagar quando passamos por perto dele. João Prudêncio sabia fazer poesia com as plantas e tinha o dom de trazer a primavera em qualquer mês do ano.

Esse talento não passou despercebido pelo dono da fazenda que tratou de dar-lhe a responsabilidade de cuidar de todos os jardins de Vera Cruz.  João Prudêncio passou a escrever, sem conhecer uma só letra, suas crônicas com os vegetais. Sendo assim, Bela-Emília, Azaléias  e Copos de Leite, por exemplo, compunham o canteiro onde se lia sua breve história na África. Flores coloridas como os brincos da mamãe, dizia João Prudêncio com os olhos marejados mirando o passado. Esponja,  Gérbera, Rabos de Gato e Sávias nos contavam as estripulias de sua vinda para o Brasil. Cada uma representava um sentimento ou uma atitude. João Prudêncio anotava pelas sementes que plantava todos os fatos de alguma significação em sua vida. A doença de dona Sinhá, a morte de Tibúrcio comido pelos cachorros, o nascimento de cada cavalo de Vera Cruz, uma bronca de Sinhô Rubens e, ah meu deus que isso não poderia ter acontecido, o amor – quando ele chegou – pela Sinhazinha Maria do Carmo. As flores do canteiro de sinhazinha eram bem alegres como são nossos sonhos quando sublimamos a realidade:  Amores-Perfeitos, Camélias, Cravinas, Céus-Estrelados, Brincos de Princesa e Rosas, claro, muitas Rosas.

Nascera em João Prudêncio uma espécie de Jade que é uma plantinha que parece uma mini árvore que demora uma eternidade para florescer, mas que vale a pena esperar, pois sua inflorescência tem um colorido de verde azulado único.  João Prudêncio percebeu-se vigoroso e forte como um coqueiro. E bem sabemos que vegetais não raciocinam assim como os homens que amam. Então, sem sequer receber adubos especiais, o amor cresceu no peito de João Prudêncio como licoalas,  palmeiras imponentes  e de grande capacidade ornamental.

Sinhazinha Maria do Carmo sempre passeava pelos jardins de João Prudêncio. Conforme ganhava corpo e idade, aumentava sua curiosidade pelas crônicas, canteiros, contos e cantos de João que cada vez mais escrevia e plantava suas sementes.

Os dias e os anos passavam e, de repente, essas sementes germinaram e os botões se fizeram flor. Sinhazinha, em uma noite quente, abriu sua janela e viu João Prudêncio caminhando pelo jardim. O escravo, percebendo uma claridade, voltou seu rosto para trás e viu sinhazinha. Andou lentamente até onde era permitido e sorriu o mais lindo dos sorrisos que somente um negro pode dar. Sinhazinha Maria do Carmo sentiu vagas perturbações e  hieróglifos de seu coração subitamente começaram a se decifrar. Sinhazinha não estava com calor, Sinhazinha estava apaixonada por João Prudêncio.

O casulo do amor proibido se rompeu e, ébria de luz que emanava de João Prudêncio, Maria do Carmo fez-se borboleta de seu jardim. João Prudêncio era o homem mais sensível e educado já visto pelos olhos atentos de Sinhazinha Maria do Carmo. E da posse dessa certeza, João Prudêncio libélu-la. Passaram por um período de inspiração para as cigarras, lecionaram para os passarinhos e aprenderam com as abelhas a polinização. Amanheciam a qualquer hora da noite. A terra, os canteiros, a lua, as cores tudo existia para acolher o amor de João Prudêncio e Maria do Carmo. Compreendiam-se, advinhavam-se,  cobriam- se e descobriam-se. Viviam o que era impossível de sonhar.

O amor do escravo João Prudêncio e de Sinhá Maria do Carmo não esmoreceu. Eles não chegaram a ter uma discussão sequer, ciúmes um do outro, insegurança ou cansaço. Nunca se desencantaram. Tagarelavam os dois divertidamente como as margaridas. Sempre foi assim até o último dia em que ficaram juntos.

Pudera.  O amor de João Prudêncio e Maria do Carmo não conheceu o tempo que traz sempre consigo o inverno.

João Prudêncio foi pego com sua boca na boca de Maria do Carmo pelo próprio Sinhô Rubens que pendurou seu corpo no tronco e, depois de tanto açoitá-lo, matou-o com um tiro certeiro. Maria do Carmo foi dada como louca e internada em um hospício.

Enlouqueceu porque percebeu que seria para sempre feliz e que a palavra amor jamais iria se empoeirar para ela. Todos os dias quando acordava ia regar suas lembranças sorrindo, pois sabia que gafanhotos e mutucas jamais entrariam no jardim que foi João Prudêncio.

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