O que o Mundo fez.

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Quando era criança, eu rezava todas as noites antes de dormir. Muitas vezes aconteceu do sono chegar antes do amém, o que me causava um sentimento de culpa enorme, pois, para mim, havia cometido uma tremenda grosseria de sair de uma casa sem me despedir do dono. Eu tinha muitas bonecas de papel e ficava muito mais tempo fazendo as casinhas delas com caixas de sapato – que sempre pedia nas lojas – do que brincando efetivamente com elas. Um dia, quando o pão caiu no chão eu fui correndo lavá-lo para comê-lo e me surpreendi com o resultado, uma pasta mole cheia de manteiga. Sempre quis ter padrinhos. Os que meus pais escolheram eram nossos vizinhos na época em que morávamos em Pilares e desde os meus quatro anos, após nos mudarmos, nunca mais eles me procuraram. Coloquei na minha cabeça que tio Rubinho e tia Nair eram os meus padrinhos e falava para meus amigos e primos essa mentira várias vezes. Todos sabem que uma mentira muito repetida vira uma espécie de verdade dendagente. Chorei rios quando os vi dando um presente de Natal para minha prima Letícia, a verdadeira enteada, e nada para mim. A verdade é que eu nunca tive padrinhos e isso, na infância e naquela época, era ser uma espécie de orfã. Pulava corda cantando meu namorado vai ser branco, louro, preto ou moreno e adorava escrever cartinhas de amor cheias de clichês. Lastimei, como lastimam a morte de um ente querido, quando meu porquinho da índia morreu.

Vejam só que menina ingênua  o mundo perdeu…

Quando era adolescente, sonhava em casar e ter filhos e morrer ao lado do Nelson. Achava que nos amaríamos o suficiente para envelhecermos um ao lado do outro. Lia Paulo Coelho e o achava muito bom. Aprendi a dançar lambada porque não sabia – ainda – que não levava jeito para dança. Peguei muito Sol sem proteção porque acreditei que sempre teria quinze anos. Não entendia as aulas de história em que se falava mal da ditadura. Afinal, meus pais sempre falaram que foi um período bem tranquilo para o Brasil. Encontrei Ayrton Senna e Xuxa (para quem não sabe, eles namoraram) no show do Oswaldo Montenegro. Enquanto muitos olhavam para a Xuxa e gritavam o nome dela, eu cheguei perto do Senna e disse muito obrigada. Ele sorriu e eu chorei quando Oswaldo Montenegro começou a cantar que amava como amava um beija-flor de qualquer clichê de cabaré, de lua e flor. Nunca tirei “A” nas redações e saí da escola acreditando que não sabia escrever. A crítica sempre era porque eu escrevia na primeira pessoa, atitude condenável e imperdoável em um texto, diziam-me. Fui expulsa da aula de geografia por estar lendo o livro O Mundo Assombrado pelos Demônios de Carl Sagan. Queria ser atriz. Fazia parte do clubinho de francês e me encantei com Edith Piaf. Amava o verão. Filiei-me a um partido político.

Vejam só que adolescente romântica o mundo destruiu…

Agora adulta, tenho três filhos de idades bem diferentes. Todos artistas. Entrei para aula de dança para reaprender a caminhar. Sou contra o sistema tradicional de ensino e qualquer tipo de religião (mas não de religiosidade). Sou ateia por parte de pai. Não acredito em escolhas. Jamais quis ser vista como autoridade tanto em sala de aula quanto dentro de casa. Sou de esquerda. Tenho facilidade de copiar qualquer figura, mas não consigo criar a imagem de nada. Não acredito em signos mas acho relevante dizer que nasci em pleno Carnaval. Exponho-me de uma forma que muitos acreditam que sabem tudo sobre mim. Tenho uma formação esquizofrênica. Fiz graduação em Física, mestrado em História, doutorado em Filosofia e sou formada em italiano. Fui premiada na área de literatura e me tornei uma espécie de “rainha das redes sociais”, título dado por meus alunos.  Quando tomo banho me distraio com o vapor que ofusca o teto e se estou limpa, leio. Escrevo sempre com a mesma lapiseira, mas mudo sempre de caligrafia. Não sei usar vírgulas e muito menos pincel. Estou solteira e aprendendo a viver o presente. Não crio mais expectativas. Minto sempre, mas falo muitas verdades também. Tenho amigos que nunca vi mas que não são aqueles imaginários da infância, são outros (imaginários). Escrevo sobre tudo que me incomoda, me engasga e me sufoca – muito menos para ser lida do que para tentar organizar algumas ideias. Busco perguntas e não mais respostas. Até pouco tempo atrás, não conseguia dormir, comer e nem ir ao centro da cidade sem companhia. Hoje durmo só. Minha força, definitivamente, não está na solidão. Preciso sempre ser orientada e jamais busquei a independência. Moro ao lado dos meus pais. Já fiz terapia e saí antes que me dessem alta. Sonho com as primaveras.

Vejam só que mulher perdida o mundo criou…

3 comentários em “O que o Mundo fez.

  1. Elika, você tem um mundo inteiro dentro de si.
    Fantástico!
    E nos dá a alegria de dividir conosco. Obrigada, menina!
    Continue assim
    Beijocas da Maria Luiza

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