Mês: fevereiro 2016
Como Aprendi a Voar
Quando eu era criança, morava em uma casa com quintal enorme onde havia duas árvores: um coqueiro e uma mangueira. Já tem tempo que ambas foram cortadas por motivo de doenças, mas as lembranças estão aí para impedir que esses vegetais imponentes sejam mortos.
Houve um episódio inesquecível. Na mangueira, havia muitos ninhos de passarinhos e às vezes, por descuido de Deus – a despeito de sua onipresença e perfeição -, eles caíam com ovinhos e tudo. Lembro-me de ficar bastante perplexa com aquele pequeno “berço” feito pelas aves com palhas, penas, fios, etc, para botarem seus ovos, chocarem e alimentarem os filhotes recém nascidos… Como podem fazer aquilo? Eu com duas mãos não conseguiria e eles com um biquinho constroem uma encubadora perfeita?!
Infelizmente acidentes terríveis aconteciam. O mundo, no entanto, é tão literário que faz até mesmo das desgraças poesia. Era uma tarde bastante chuvosa. Estávamos todos na sala (eu e meus dois irmãos mais mamãe) vendo sessão da tarde e um barulho começou a nos incomodar. Era uma piação danada. Os passarinhos estavam eufóricos e nem era a primavera. Mamãe não se aguentou e foi ver o que estava acontecendo. Lá no quintal chegando, gritou:
– Corram! Venham ver!
Saímos em disparada deixando o filme do Elvis falando sozinho na sala. A cena que vimos ao vivo foi muito mais antológica que a do Rei cantando no Havaí. Nós tínhamos uma cadela da raça collie que pegava no ar os passarinhos que teimavam em voar baixo. Por conta da chuva, um filhotinho havia caído do ninho e estava amuado no muro com a Laica ameaçando a comê-lo. Em cima daquela parede alta que nos separava do vizinho, estavam vááários passarinhos que piavam estericamente toda vez que a Laica se aproximava um pouco mais do filhotinho caído. A mãe dele estava em desespero total. Batia as asas, abria o bico como quem quer fazer um furacão usando leques e enfrentava o dragão canino com a fúria de Teseu, o deus grego que matou o Minotauro (deus me livre que coragem…). Um pardal freando os impulsos de um cachorro, foi o que eu vi com esses olhos que ficaram muito míopes depois que cheguei na adolescência.
Calma. A história não acaba aqui. Apenas começa.
Mamãe foi rápida. Pegou o bichinho todo molhado e frágil e o trouxe para dentro de casa. Dona Ruth, sempre agindo de forma certeira, secou a avezinha e depois tratou de alimentá-la. Forrou bem uma caixa de sapato e fez um novo ninho para o pardalzinho. Colocou-o pra dormir no quarto dos fundos que dava para o quintal. Se abríssemos a janela do quartinho (forma como chamávamos esse cômodo dado o tamanho dele muito menor que os nossos), dávamos de cara com a sombra de nossas árvores.
Qual foi a nossa surpresa quando percebemos que a mãe-pardal ia sempre visitar o seu filhote. Parecia que estava conferindo se mamãe estava cuidando bem de sua cria…
Até que houve uma manhã pra lá de especial.
A passarinha ensinou seu filhinho a voar. Da janela, ela o fazia dar vôos curtos inicialmente. Depois foram aumentando a distância, até que o filhotinho, cada vez mais dono de si pelo estímulo de sua mamãe, conseguiu subir à copa da mangueira e não precisou mais dormir sozinho no quartinho longe de sua família. Lembro da euforia e da torcida de mamãe para que a pardalzinha conseguisse levar seu filhotinho.
Eu tenho muitas recordações da minha saudosa mangueira que foi uma das minhas melhores amigas na infância. Mas essa é por demais especial. Ter acompanhado tudo isso e testemunhado a força da maternidade foi essencial para o que me tornei hoje. Quanto mais alto eles iam, ao contrário do que deveria ser, maiores os passarinhos me pareciam…
Aprendi, com esses versos, que vale muito mais ter dois passarinhos voando do que um na mão.
Julgando o Julgamento
Estava eu no salão. Ao meu lado, havia uma outra mulher bem mais arrumada do que eu. As manicures fazendo nossas unhas. E a perua desata a falar:
– Não sei por qual motivo essas pessoas ficam pegando bicho doente na rua. Não pode ver um cachorro magro que sofrem como o diabo. Com tanta criança passando fome no mundo, eles ao invés de cuidar das crianças preferem cuidar de gato e cachorro vira lata. E…
– Mas quem disse que essas pessoas não se sensibilizam com as crianças? – me meti. – E onde está escrito que quem cuida de bicho não se importa com a fome no resto do mundo?
– Ah, minha filha, não mesmo. Elas só postam fotos de cachorros e gatos!
– E qual o problema? Ainda que elas se lixem para as crianças no mundo, não é melhor que existam pessoas que cuidem dos animais? Por que ficar incomodada com elas se elas não estão fazendo mal algum, inclusive para as crianças que passam fome no mundo?
Enquanto falava pude observar que o cabelo da mulher era tratado a base de formol e ela usava uma bolsa Prada.
– Seu cabelo está lindo. – menti – O que fez nele?
– A escova london. Lá num salão no Valqueire.
– Estou doida para fazer isso no meu. – menti de novo.- Desculpe perguntar. Foi caro?
– Olha, eu não achei não. Meu cabelo é longo. Ela me cobrou trezentos e…
– Por que você não doou esse dinheiro para as crianças da África?
A mulher me olhou dos pés a cabeça mesmo eu estando sentada.
– Eu já entendi. Você é dessas…
– Sim. Sou dessas que acreditam que quem julga as pessoas não têm tempo de amá-las e compreendê-las. Sou dessas também que acreditam que quem faz bem a um cachorro de rua jamais vai fazer mal a uma criança ou a um ser humano… Sou dessas que acreditam que melhor do que nada é fazer bem até a um caramujo contanto que faça o bem. Sou des…
– Eu leio para crianças cegas…- ela me interrompeu.
Emudeci.
Morri de vergonha de mim mesma…
Enfim. Perdão, Pai. Eu pequei. Falei contra o julgamento e eu mesmo julguei errado… Mais uma vez, o preconceito me deu um forte tapa na cara. É agindo assim que perdemos pessoas especiais.
Ganhamos as duas depois que eu pedi perdão e conversamos sobre essas coisas de forma mais branda e com a mente bem mais aberta.
Saímos do salão muito mais bonitas que entramos.
Esperança
Poucos sabem. Eu tenho insetofobia. Pode ser um simples e linda joaninha, odeio. Acho horrorosa. Fico arrepiada, o coração dispara… Eu tenho medos. Como somos frutos de nosso passado – saibamos ou não – as minhas razões são meus traumas. Fui muito picada quando criança, quase perdi um filho por veneno de um ferrão e agora a dengue, a zika, a microcefalia. A epidemia. E a coisa não é racional como acredito que não seja nenhuma fobia ou qualquer outro sentimento. Portanto, não adianta falar não morde, não pica, veja que bonitinho. Eu acabo ficando assustada. Porém, menos pelo bicho e muito mais por ser tão difícil alguém entender e respeitar o medo do outro.
Já tentei me tratar, adianto. Mas foi inútil como uma placa para cegos. Depois, nunca se sabe qual defeito sustenta todo esse edifício, já dizia a bruxa.
O fato é que ontem à noite entrou um bicho verde no meu quarto. Estou em uma pousada em Penedo tentando descansar a mente – objetivo claramente não atingido. Estava sozinha como nos outros dias mesmo sem ser feriado. Peguei meu chinelo e mirei sem piscar o bicho para não errar a pontaria. Quando percebi que se tratava da tal da esperança. Puta merda… por que tudo tem que ser tão difícil para mim?
Fiquei observando como a esperança se comporta para ver se aprendo algo e me curo dessa e de outras fobias. Ela parecia uma folhinha. Frágil. Parecia burra também. Não parecia ter fome o que me deixou perplexa porque os bichos, como nós, caçam o dia inteiro. Não precisava alimentar a esperança? Procurei seus olhos. Meu Deus a esperança é cega…
Desisti de matá-la, pois isso poderia ser metafórico demais e eu sou ligada em poesia. Expulsar do quarto tão igual. Ora por que diabos a esperança é um inseto? Não poderia ser um filhote de urso panda? Um flor cheirosa? Dormir com a esperança? Jamais. Ela, para mim, é tão nauseante como uma barata. E se ela andar por cima de mim quando durmo? E se ela me colocar ovos na cabeça?
Abri toda a janela e também a porta. Liguei o ventilador de teto. Nada da esperança ir embora… Enquanto isso consultei na internet a foto do inseto que me acompanhava. Qual o quê…
Tratava-se de um louva deus.
Com um kamehameha cuja energia foi materializada em forma de havaiana, tentei me livrar daquele pesadelo o quanto antes.
Na mosca.
Precisa-se…
Estava andando pela cidade aqui que estou a conhecer. Lindinha por sinal. Mas vi muita placa escrito “precisa-se”… Precisa-se de jardineiro, precisa-se de cozinheiro, precisa-se de camareira… isso me desestabilizou (se é que em algum momento meu eixo foi equilibrado). E se eu andasse também com uma placa precisa-se? Será que adiantaria? O que colocaria na placa? Acho melhor criar um anúncio, pensei, explicando bem do que ando precisada…
Precisa-se de alguém que me ajude a ficar feliz porque ando tão feliz que não aguento mais essa alegria toda sozinha e tenho necessidade de repartir esse sentimento. Pago bem. Pois pago com a própria felicidade. Precisa-se dessa pessoa para ontem. Tenho urgências antes que tudo se transforme em drama em pleno carnaval. Tarde demais. Ok . Apenas precisa-se. Sem data certa… Mas antes que essa alegria solitária fique patética.
Precisa-se de alguém a quem pertencer. E adianto que o trabalho é bom mas é complicado, pois, a fome de me dar de presente para alguém é tanta que fiquei extremamente arisca. Preciso mas repudio. Tenho medo de revelar o quão pobre eu sou e o quanto preciso. Por isso fujo ou me escondo. Precisa-se de alguém que entenda de paradoxos.
Já sei que temos que nos bastar e ficarmos bem sozinhos. Adianto: fico ótima sempre. A cabeça ferve o tempo todo. Precisa-se, portanto, de alguém que goste de brincar de pensar mas, que a noite, freie meus pensamentos e acelere o meu fluxo sanguíneo.
Não é questão de fraqueza esse anúncio. Em matéria de forças, já provei a mim mesma que consigo carregar toneladas e toneladas de flores. E é dessa força que vem a vontade de pertencer. Cansei de possuir uma força inútil.
Já pertenci a alguém? Já. E aproveitei a oportunidade como Viviane Araújo nesse carnaval. Experimentei tudo até a última purpurina. Mas a passarela acaba, o desfile termina. Quisera eu poder sambar eternamente… portanto, precisa-se de alguém que fabrique confetes e serpentinas para além do carnaval…
A sensação que posso passar com essa placa pendurada no pescoço é que procuro alguém às cegas e que estou desesperada… Ledo engano. Isso se deve porque insisto em procurar frases que exprimam profundamente o que sentimos. Teimo em tentar traduzir por palavras esse mundo impalpável e ininteligível. Precisa-se de alguém, então, que entenda que eu tenho muitos sentimentos e ideias e que, além de gastar energia explicando-os, padeço muito mais concebendo-os. Por exemplo, que nome dar a essa necessidade de pedir licença para existir? Ou… como chamar aquilo que sentimos quando a saudade não acaba ao vermos a pessoa? O que é isso que me faz querer urgentemente uma unificação inteira que faz a presença do outro ser muito pouco para matar uma necessidade?
Precisa-se de alguém paciente. Pode ser sem experiência porque o meu amor é tanto que perdoa tudo. Menos querer me inutilizar.
Darei folga. Muita folga. Mas sempre depois de passar o horror de uma sexta a noite que dilacera. Idem com as tardes de domingo…
Há nesse anúncio sério uma festa de sambista em forma de espírito para dar. É que alegria verdadeira é assim mesmo. Não tem a menor possibilidade de ser compreendida e lembra muito uma perdição sem fundo.
Precisa-se ser encontrada.
Pelas ruas de Copacabana
Estou fazendo hora pelas ruas de Copacabana enquanto Nara e Hideo, meus filhos artistas, passavam o som antes do espetáculo.
Parei na rua para olhar uma coisa estranha tipo um homem moreno muito alto com um corpo lindo, uma sunga bem cavada e um cabelo bem grande quase até o joelho. Enquanto estou terminado meu sorvete e pensando na petulância do cavalo, ouço um mendigo falando no celular:
– Cara, isso aqui é ótimo. Hoje teve bloco na rua. Me distraí a beça. E para dormir na rua é melhor também. Super seguro. Tenho dormido sempre em frente à Pacheco na Nossa Senhora de Copacabana. Não. Não. Isso não. A galera daí é mais ser humana. Aqui os morador trata mal nóis. Tem sim. Viado a dar com o pau. Mas deixa eles. Eles não fazem mal a ninguém não. Vem pra cá, cara…
Ah gente… Eu não meu aguentei.
– Oi. Não pude evitar e ouvi sua conversa… O seu amigo dorme na rua igual a você?
– Dorme sim senhora. Lá em Madureira. A senhora conhece?
– Durmo lá também… Mas meu sonho é dormir por aqui…
– Só chegar, dona. – ele me falou sorrindo desdentadamente.
– Seu amigo estava falando do celular? – continuei a conversa.
– É.
– Onde vocês carregam a bateria?
– Na padaria. Sempre na padaria… onde nóis toma café.
E ficamos um tempo batendo um papo interessante.
Enfim, enquanto espero, as coisas vão acontecendo e eu escrevendo… aff… perdi o moreno excêntrico de vista…
Suponhamos que…
Suponhamos que eu seja uma pessoa calma, o que não é verdade. Suponhamos que eu durma bem, o que não é verdade. Suponhamos que eu tenha certeza que fiz a coisa certa, o que não é verdade. Suponhamos que eu tenha poucos defeitos, o que não é verdade. Suponhamos que eu fale de mim com facilidade, o que não é verdade. Suponhamos que eu conte tudo, o que não é verdade. Suponhamos que basta uma conversa com um mendigo para eu ficar feliz, o que não é verdade. Suponhamos que eu seja uma boa mãe, o que não é verdade. Suponhamos que eu faça sempre o meu melhor, o que não é verdade. Suponhamos que eu goste de correr, o que não é verdade. Suponhamos que lide com alegria e leveza com meus problemas, o que não é verdade. Suponhamos que eu escreva sem dificuldades, o que não é verdade. Suponhamos que eu me baste, o que não é verdade. Suponhamos que eu esteja satisfeita, o que não é verdade. Suponhamos que eu não me arrepende de nada, o que não é verdade.
Quem me dera ser a metade do que supõem de mim…
Agora… suponhamos que eu seja uma pessoa impulsiva, o que é verdade. Suponhamos que eu não reflita muito sobre meus sentimentos, o que é verdade. Suponhamos que ajo sob uma intuição dessas que não falham, o que é verdade. Suponhamos que eu me estabaque muito, o que é verdade. Suponhamos que é porque não se trata de intuição e sim extrema infantilidade, o que é verdade. Suponhamos que o resultado tem sido meio a meio, o que é verdade. Suponhamos que vivo num impasse, o que é verdade. Suponhamos que eu queira melhorar mas não sei, o que é verdade. Suponhamos que ser impulsiva me machuca muito, o que é verdade. Suponhamos que nem sempre os meus impulsos tenham uma boa origem, o que é verdade. Suponhamos que tenho medo de me tornar adulta demais, o que é verdade. Suponhamos que eu seja uma pessoa muito ocupada, o que é verdade. Suponhamos que a minha ocupação seja tomar conta do mundo, o que é verdade. Suponhamos que sofro muito por conta de tanto amor, o que é verdade. Suponhamos que sofra muito mais por tanto desamor, o que é verdade. Suponhamos que eu não me importe que me julguem, o que é verdade. Suponhamos que eu não queira enumerar quantas vidas vivo, o que é verdade.
Suponhamos que eu tome conta há anos de uma fileira de formigas e que não encontrei ainda a quem prestar contas…
Suponhamos que eu esteja falando de algo tão delicado como a própria vida.
E teremos uma ideia de que são feitos e de que altura são os muros do meu castelo. Suponhamos que eu more em um…