Como Aprendi a Voar

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Quando eu era criança, morava em uma casa com quintal enorme onde havia duas árvores: um coqueiro e uma mangueira. Já tem tempo que ambas foram cortadas por motivo de doenças, mas as lembranças estão aí para impedir que esses vegetais imponentes sejam mortos.

Houve um episódio inesquecível. Na mangueira, havia muitos ninhos de passarinhos e às vezes, por descuido de Deus – a despeito de sua onipresença e perfeição -, eles caíam com ovinhos e tudo. Lembro-me de ficar bastante perplexa com aquele pequeno “berço” feito pelas aves com palhas, penas, fios, etc, para botarem seus ovos, chocarem e alimentarem os filhotes recém nascidos… Como podem fazer aquilo? Eu com duas mãos não conseguiria e eles com um biquinho constroem uma encubadora perfeita?!

Infelizmente acidentes terríveis aconteciam. O mundo, no entanto, é tão literário que faz até mesmo das desgraças poesia. Era uma tarde bastante chuvosa. Estávamos todos na sala (eu e meus dois irmãos mais mamãe) vendo sessão da tarde e um barulho começou a nos incomodar. Era uma piação danada. Os passarinhos estavam eufóricos e nem era a primavera. Mamãe não se aguentou e foi ver o que estava acontecendo. Lá no quintal chegando, gritou:

– Corram! Venham ver!

Saímos em disparada deixando o filme do Elvis falando sozinho na sala. A cena que vimos ao vivo foi muito mais antológica que a do Rei cantando no Havaí. Nós tínhamos uma cadela da raça collie que pegava no ar os passarinhos que teimavam em voar baixo. Por conta da chuva, um filhotinho havia caído do ninho e estava amuado no muro com a Laica ameaçando a comê-lo. Em cima daquela parede alta que nos separava do vizinho, estavam vááários passarinhos que piavam estericamente toda vez que a Laica se aproximava um pouco mais do filhotinho caído. A mãe dele estava em desespero total. Batia as asas, abria o bico como quem quer fazer um furacão usando leques e enfrentava o dragão canino com a fúria de Teseu, o deus grego que matou o Minotauro (deus me livre que coragem…). Um pardal freando os impulsos de um cachorro, foi o que eu vi com esses olhos que ficaram muito míopes depois que cheguei na adolescência.

Calma. A história não acaba aqui. Apenas começa.

Mamãe foi rápida. Pegou o bichinho todo molhado e frágil e o trouxe para dentro de casa. Dona Ruth, sempre agindo de forma certeira, secou a avezinha e depois tratou de alimentá-la. Forrou bem uma caixa de sapato e fez um novo ninho para o pardalzinho. Colocou-o pra dormir no quarto dos fundos que dava para o quintal. Se abríssemos a janela do quartinho (forma como chamávamos esse cômodo dado o tamanho dele muito menor que os nossos), dávamos de cara com a sombra de nossas árvores.

Qual foi a nossa surpresa quando percebemos que a mãe-pardal ia sempre visitar o seu filhote. Parecia que estava conferindo se mamãe estava cuidando bem de sua cria…

Até que houve uma manhã pra lá de especial.

A passarinha ensinou seu filhinho a voar. Da janela, ela o fazia dar vôos curtos inicialmente. Depois foram aumentando a distância, até que o filhotinho, cada vez mais dono de si pelo estímulo de sua mamãe, conseguiu subir à copa da mangueira e não precisou mais dormir sozinho no quartinho longe de sua família. Lembro da euforia e da torcida de mamãe para que a pardalzinha conseguisse levar seu filhotinho.

Eu tenho muitas recordações da minha saudosa mangueira que foi uma das minhas melhores amigas na infância. Mas essa é por demais especial. Ter acompanhado tudo isso e testemunhado a força da maternidade foi essencial para o que me tornei hoje. Quanto mais alto eles iam, ao contrário do que deveria ser, maiores os passarinhos me pareciam…

Aprendi, com esses versos, que vale muito mais ter dois passarinhos voando do que um na mão.

Um comentário em “Como Aprendi a Voar

  1. “Houve um episódio inesquecível. Na mangueira, havia muitos ninhos de passarinhos e às vezes, por descuido de Deus – a despeito de sua onipresença e perfeição -, eles caíam com ovinhos e tudo.”
    Venho de família católica, mas não rezo e há muitos anos não ponho os pés numa igreja. Até acredito em Deus, mas sinceramente acho que ele não tem nada de humano. Na verdade, Ele me assusta…

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