Viajando na Volta para Casa.

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Sexta passada, encontrei um amigo que está com uma viagem marcada para Paris. Da penúltima vez que nos vimos, ele havia acabado de comprar as passagens e estava empolgado escolhendo um apartamento que iria alugar por lá. Ele é desses que não fica em hotel e gosta de algo mais pessoal. Vai sozinho para trabalhar e ter alguns dias de rotina diferente na Cidade das Luzes. Ah quem me dera…

Isso posto, ao vê-lo, quis saber:

– E aí, empolgado com a viagem? Já escolheu o cafofo? – perguntei feliz como ficamos diante daqueles que representam um sonho.

– Acredita que não? – respondeu-me sério como aqueles diante da escuridão.

– Ué. O que houve? – sondei como faço sempre com qualquer um que se apresenta diante de mim com os olhos enevoados.

– Tô com medo. Tô apavorado! – confessou.

– De quê, exatamente?

– De viajar sozinho. Nunca fiz isso. Não consigo escolher o apartamento de jeinehum. Freud explica… – explicou ele mesmo olhando com seus olhos azuis (ou verdes?) para o horizonte em plena cafeteria em que estávamos.

Meu amigo é adulto já. Tem em torno de 50 anos e tem medo de ir sozinho para Paris. Eu, mãe de três, com mais de 40 não consigo ir até São Paulo sem ter uns três ataques de pânico e insônia uma semana antes, durante e depois de tanta adrenalina que corre em minhas veias. Compreendi imediatamente aquele olhar. Já o vi no espelho N vezes…

– Eu no seu lugar estaria desesperada. Quando você me falou, morri de inveja. Não por Paris, mas pela sua independência. Te achei o super macho alfa das galáxias. Viajar sozinha sem ser dominada por receio, apreensão, ansiedade, preocupação, incerteza e tudo o mais é algo que para acontecer comigo eu precisaria reencarnar umas três vezes, pelo menos.

– Você não está me ajudando, Elika…

Mas não tinha mesmo como ajudar. Muito pelo contrário.

Há dois tipos de problemas. Um corresponde aos problemas, diria, mundanos: um chuveiro queimado, louça suja, governo interino, pedra nos rins, carro enguiçado e coisas afins. Esses se resolvem rápido ou nem tanto, mas a solução é clara e quase universal. Quando um amigo chega com esse tipo de coisa na sua frente, não adianta falar muito se quisermos mesmo ajudá-lo. Temos que agir com ele de forma direta. Mas há um outro tipo de problema: os sem solução ou sem fórmulas para serem resolvidos: amores não correspondidos, falta de ânimo para viver ou, vá lá, fazer exercício físico, medo de seja lá o que for… Nestes casos, não adianta consolo ou relatos de experiências individuais porque as experiências são próprias de cada ser e o que serve para um, definitivamente, pode não servir para outro. As pessoas que ficam contando casos pessoais e como superaram suas fobias são gente de boa vontade, tolas porém, que acham sempre que suas palavras ditas em um referencial exclusivo e muito particular, serão capazes de encher o vazio do sofrimento do outro, tão ímpar e especial quanto.

Qualquer coisa que eu falasse só iria piorar porque eu tenho meus medos e não tenho a menor ideia de como enfrentá-los ainda que lide com eles diariamente. Faço de meu jeito desengonçado. Muita gente diz que eu sou inteligente e se isso for verdade, posso lhes garantir: inteligência nada tem a ver com felicidade e desenvoltura para superar obstáculos. Como disse Guimarães Rosa, “felicidade só em raros momentos de distração”… Pensar, no entanto, pode me ajudar a sofrer sem desespero, com tranquilidade – como ao fazer uma tatuagem que sangra ao nascer, mas que tem como destino um e pelo menos um olhar de aprovação.

No mais, só os que sonham têm muito medo e, portanto, não vi razão para ajudar o meu amigo porque entendi que seu receio era algo bom, não paralisante, pelo contrário. Ele está ansioso de ir até Paris porque, possivelmente, faz das Cidades das Luzes o que qualquer mortal faria: uma utopia. O que nos remete a Eduardo Galeano. Para que serve uma Utopia? “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” E para levar meu amigo até Paris, completaria.

Além de eu não ter ajudado em nada aquele homem angustiado, a conversa mexeu muito comigo e, depois que me despedi dele, do Leblon até Madureira tive tempo suficiente para refletir sobre mim mesma. Qual seria a raiz do meu pânico? Cheguei a conclusão que o meu temor de sair pelo mundo afora sem um conhecido por perto pode ter outras raízes – fincadas em solos cobertos por outras substâncias bem diferentes das que estamos acostumados a pisar. E isso independe do destino. Seja Paris seja Paquetá, um fantasma me assusta.

O caso dele, de todas as possibilidades que cogitei é, no meu referencial, o mais assustador. Paris para mim representa tanta primavera que se um dia eu fosse para lá sozinha seria equivalente a eu jogar um livro lindo de poesia na fogueira. De Pablo Neruda, para ser bem exata. Espero que meu amigo adoravelmente louco não me leia porque daqui para a frente tudo o que pensei sobre o tema só piora.

Já ouvi de muita gente que viajar sem companhia é, na verdade, um encontro consigo mesmo. Bah. Quem garante? E, cá para nós, grandes coisas esse papo de auto-conhecimento-a-nível-de-mim-mesmo-enquanto-ser quando estamos sós pelo mundo. E será que é mesmo? E se for e eu tiver medo de encontrar-me? Mais ainda: isso é possível? Encontrar-se? A beleza de descobrir nossa identidade é páreo para quem procura a todo custo a beleza nas coisas? No mais, quem sabe estamos querendo férias de nós mesmos?

Outra coisa: perder-se também não pode ser cogitado em uma situação como essa? O que seria pior? E,vamos combinar, não precisamos pegar o avião para que nos achemos ou escapemos de nós mesmos. E se isso acontecer, não é motivo de felicidade ou desespero e de sentimento de grandes realizações ou fracassos, pois, enquanto não morrermos, somos passíveis de grandes mudanças e pronto: já estamos nós a qualquer momento de novo sem saber o nosso propósito no mundo ou nos enganando acreditando que entendemos alguma coisa sobre todo o Universo ou, vá lá, sobre nós mesmos – o que é a mesma coisa dado o alcance de nossas mentes. Que Deus permita que jamais nos habituemos pelo maior tempo possível…

Não há medo de solidão no meu caso e acredito que do meu amigo também. Conhecemos um bando de gente, temos um ao outro, família e coisa e tal. Eu fico muito tempo sozinha, digo, sem pessoas de carne e osso na minha frente. Ando sempre com um livro aberto diante os meus olhos e isso, penso eu, pode ser considerado, em certa medida, como a presença de alguém. Mas sabemos que não é a mesma coisa. Ok. Antes que você diga que estar sozinho é diferente de sentir-se só, adianto: eu já senti muita solidão dentro de casa e no meio de um bando de gente e não me incomodaria em nada sentir-me um lixo em outro país. A questão não é essa. Não é receio de um isolamento e nem da incomunicação em tempos atuais.

Assim como é impossível provar a Primeira Lei de Newton já que não há a menor possibilidade de isolarmos um corpo de forças externas porque sempre este irá interagir com um segundo que é, no mínimo, o observador, penso que é impossível estarmos sozinhos com nós mesmos. Sempre seremos nós nos outros e nos outros nos refletiremos e estes, de alguma forma, refletirão em nós. Fazemos parte do Universo e não temos como fugir disso.

Não há um ou O Encontro comigo mesma, pois dentro de mim há milhões de unidades e, assim como não há uma pessoa igual a outra nesse mundo, não há dentro dessa carcaça uma correspondência entre todas as potências do meu ser. Sou uma geração de energia em suas mais diversas formas. Elétrica, definem-me alguns.

Confesso: buscando-me já encontrei tantas outras e alguns dos que me leem nem sequer encontram uma de mins. Há muitas palavras nunca ditas prestes a serem proferidas. Não sei o que a luz diferente somada a uma música, lembranças, saudades e um olhar de um estranho pode ocasionar aqui dentro. Talvez uma lágrima com um sabor diferente. A ausência tem um peso considerável. A mudança pode ser equiparada a uma massa plena de gravidade que pode beirar o insuportável em um determinando momento, mas por deus, como esse troço vicia. Morro de medo, portanto, quero. Tudo que eu amo, custa-me um grande descarte. Jogo a bússola longe e entrego-me à desorientação de viver o que não consigo entender. Viajar sozinho, escrever, ouvir música, correr, ler, caminhar, deitar-se em uma rede… tudo isso é um forma de se colocar no vazio. E é, nesse vazio, que emerge uma nova existência. Meu deus quanto perigo! Quero. Para isso, não precisamos ir para longe, ainda que concorde que certos translados facilitem as metamorfoses mesmo não sendo as causas necessárias para que elas ocorram.

Estou me contradizendo, parece. Meus pensamentos são sempre muito difusos e, às vezes, se apresentam com um incoerência que grita no papel. Voici ma plus grande préoccupation: a minha maior fobia, suspeito depois de trinta quilômetros de engarrafamento, é que eu volte como fui como tantos que viajaram sozinhos por aí que regressaram cheio de fotos, histórias e postagens em redes sociais, mas nada de radiografias…

Nenhum medo, porém, jamé foi tão grande a ponto de me impedir de voar. E não será, certamente, com meu amigo porque ele há de vencer essa resistência interna sem a minha ajuda e fazer como sempre fazemos, de um jeito ou de outro, tudo ter valido a pena. Porque pelo que entendi, somos como pássaros que amam o vôo e, a despeito de tanto pânico para alçar grandes altitudes, nos recusamos a buscar uma proteção em gaiolas.

Para Igor, com muito carinho e inveja boa.

Um comentário em “Viajando na Volta para Casa.

  1. Querida Elika, estava justamente escrevendo sobre a caixa de mistérios que são os outros e nós para nós mesmos. E que seria de nós e do mundo se não fossem os mistérios? A cada dia descubro algo sobre mim, mas no próximo dia, novo mistério aflora e tento viver abismada no meio deles. Como sempre, sua crônica divertida e sua crônica profunda me encantam.

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