Ovo em Espada de São Jorge

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Moro em Madureira e ando por esse Rio de Janeiro todo. Não pertenço a grupo nenhum e frequento os mais diversos tipos de ambientes. Vai da vontade do dia. Posso sair de uma sessão de um cinema mega cult em Botafogo direto para uma sessão espírita em Cavalcante (para quem não sabe, Cavalcante é um bairro inexplicável no subúrbio do Rio). Subo o Pão de Açúcar a pé e volto de BRT para casa. Sou dessas.

O fato de não estar com meu bode amarrado permite-me algumas observações que só quem está de fora da situação consegue enxergar. Outro dia, por exemplo, estava na Praça São Salvador em Laranjeiras. Lá é um reduto, digamos, de comunistas, esquerda-holics, que gostam de samba, chorinho, Marx, Engels, Bakunin e de beber e fumar alucinadamente. A despeito de não poder beber e jamais ter fumado nada na vida, adoro estar por ali, pois todo o resto me agrada e nada me incomoda. Pelo contrário, me diverte por demais como vocês verão.

Houve um fato curioso. Fui apresentada como sempre para novas pessoas e não sei por quê alguém me perguntou onde morava.

– Madureira. – respondi.

Para quê. Me senti um ET.

– Ela mora em Madureira! – um gritou.

E, em segundos, eu estava no centro da roda me sentindo em uma sala escura sentada em uma cadeira com uma luz somente no meu rosto.

– Você mora no berço do samba? Terra de Cartola!?? – perguntou um com chapéu panamá.

– Cartola é da Mangueira. Moro em Madureira…

– Terra do Arlindo Cruz?! – gritou a outra empolgada segurando na mesma mão uma garrafinha long neck e seu cigarro aromatizado.

– Arlindo mora na Barra. Só fez aquela música. Nunca o vi por lá.

– Mora perto da Portela? Que sonho! – disse outro com boina-Tchê,

– Realizo fácil seu sonho. Você vai morar lá em casa e eu venho morar na sua.

Todos riram.

Eu havia virado atração turística nível Cristo Redentor para aquele bando de hipster que me cercava. Eu era uma pobre para eles, mas não pobre-empregada-doméstica, era a pobre que eles queriam para interagir. A pobre idílica. Não sou do tipo miserável, tenho todos os dentes, fico bem na foto. Mas sou aquela que mora onde tem “casas simples com cadeiras na calçada”, gente humilde que Chico Buarque já exaltou em sua canção. A pobre perfeita para encher qualquer morador da zona Sul de cultura.

– Sou da terra do jongo. Antes do samba nascer e se popularizar, o  Jongo chegou à comunidade da Serrinha, quando famílias vindas de áreas rurais onde se praticava a dança oriunda de regiões africanas  ocuparam o morro de Madureira. Hoje, o morro da Serrinha é o único do Rio que conseguiu preservar e transmitir a tradição jongueira.

– Você mora perto do Morro da Serrinha? Você frequenta o morro??? – perguntou um com barba de lenhador.

– Não. Se for lá levo tiro. Vejo uma parte dele lá de casa e ouço sempre o tiroteio quando tem invasão de facção rival. Sei disso porque frequento o Trapiche Gamboa, na Praça Mauá, onde toca o grupo Jongo da Serrinha e entre uma música e outra, eles explicam coisas sobre o jongo.

– Óóóóóóóó… – exclamaram todos ao meu redor.

Eu era definitivamente a pobre que todos procuravam. Não sou do funk e nem do rap, coisas da classe D ou E. Sou classe C para cima, meu bem. Não sou evangélica nem sequer cristã e ainda por cima moro perto de um Guanabara que vive lotado.

– Guanabara, galera, bem… Guanabara é uma loja-conceito onde tem um rapaz que grita de megafone as ofertas e daí, meu irmão, as velhinhas se transformam. Largam a bengala longe e saem correndo te empurrando quando a promoção é de filé de merluza. No subúrbio, fazemos iguarias com Fubá Granfino e lá colocam a casca de ovo quase inteira nas pontas daquela planta Espada de São Jorge para enfeitar. Fica um troço de doido. Parece até Natal em Maricá, gente.

 Os hipsters estavam tendo orgasmos me vendo falar.

– Mas minha casa não fica perto nem do Império, nem da Portela. Eu moro do ouuuutro lado de Madureira. O lado mais residencial, em uma vila, mais especificamente falando.

– Posso fazer umas fotos lá? – perguntou uma fotógrafa.

– Pode. Madureira é público.

– Não. Digo. De sua casa. De sua vila.

Pronto. Era só o que me faltava. Fazer parte do programa do Esquenta-Caviar. Que diabos essa galera queria ver? Se minha cozinha tem filtro de barro? Se tomo banho de balde? Como é a churrasqueira na minha laje? Vão querer buscar tendências de moda no meu guarda-roupa e inspiração de vida nas sábias palavras de Janete?

Por outro lado, pensava enquanto ouvia mais perguntas inusitadas, posso tirar uns dinheiros desses comunistas. Fazer um tour guiado pelo baixo-subúrbio vendendo Guaraná Jesus ou Dolly por cinquenta reais a latinha e, de petisco, ovos rosas cozidos ou sardinha frita  no mesmo óleo usado desde o século 20.

Sou rápida. Quando vi já estava colocando meu projeto-guia-turístico-do-caminho-de-Ogum-e-Iansã em prática:

– Por fim,  vamos todos parar na Feira das Yabás, uma feira que oferece gastronomia e roda de samba, na Praça Paulo Portela. O nome Yabá significa Mãe Rainha e define todos os orixás femininos. As mulheres são as principais figuras do evento, e nas 16 barracas espalhadas pela praça, elas preparam deliciosos pratos da cozinha brasileira, mas que levam uma pitada da culinária africana.

– Óóóóóóóó…

– Mas como é esse negócio do ovo na Espada de São Jorge? – perguntou um com a blusa fora, Temer.

– Só indo lá patuvê… bora?

Todos se animaram.

É isso, galera, agora mais um rótulo para mim. Sou pobreza-premium ao dispor do turista-esquerda-holics-caviar.

5 comentários em “Ovo em Espada de São Jorge

  1. Gosto muito de ler suas inspiradas crônicas. Vivi em Pilares até os 22 anos e isso já faz 38… conheço bem esse universo a que você se refere. Lembro das cascas de ovo nas planta pontiagudas, mas esta da foto não é exatamente uma “Espada de S. Jorge”. Ambas devem ser da família extensa dos Agaves. Abraço

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  2. Elika, assim como vc, estudei no Pentágono (81 a 87) e por isso conheci seu blog. Nossa, tô chorando de rir com esse post porque ontem mesmo conversava sobre isso. Sobre essa loucura de um povo “muderno” da Zona Sul que acha o “máaaximo” Madureira, como se a gente vivesse numa eterna feijoada da Portela ou passasse o dia numa roda de samba na casa da tia Surica. Morar lá que é bom ninguém quer, né? Adorei seus textos. Um beijo!

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  3. Ah que delícia ler esse texto nesse domingo de tarde preguiçosa aqui em Guaianases!!! subúrbio lado leste de São Paulo!! me identifiquei !!

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