Mergulho

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Muita gente pensa que as mudanças importantes que realizamos na vida são fruto de grandes resoluções como entrar para um doutorado, emagrecer vinte quilos, parar de fumar ou roubar um beijo. Pode ser. Mas às vezes, são as atitudes aparentemente pequenas que nos transmutam por completo. Neste fim de semana, por exemplo, pela primeira vez, usei uma roupa de mergulho que comprei há três anos em uma viagem que fiz para São Paulo quando participei de um Congresso de História e Filosofia da Ciência em que apresentei um trabalho sobre a metafísica implícita na elaboração de muitas equações de D´Alembert.

Voltando da USP, quase chegando no hotel no início da noite, passei por uma loja de roupas de mergulho. Como o dia foi tenso pensei: “por que não? Não tenho roupa de mergulho e mergulhar deve ser bom. Vai que Nelson (na ocasião, ele era meu marido) resolva comprar a lancha que tanto quer? Eu odeio água gelada e não vai ser legal eu não ser parceira dele só porque não tenho uma roupa de borracha térmica”. Num átimo de loucura desses que nos acometem quando estamos bêbados (no meu caso, de cansaço) ou diante da foto do Padre Fábio de Melo mostrando seus bíceps, eu, sem pensar (claro), comprei pelos olhos da cara aquele artigo de primeira necessidade dos sobrinhos de João Dória.

Nelson não acreditou quando cheguei em casa com aquilo. Sou dessas de fazer pedaços de sonhos (somente pedaços) se materializarem. A lancha que venha no seu tempo, pensei satisfeita. Fiz a minha parte tal como aqueles que compram um chaveiro para usar no dia em que tiverem uma BMW. Estava bem feliz porque tinha dado meu primeiro passo e aquele recado de esposa fofa que quer ser companheira em todas as horas – principalmente se o marido estiver ostentando por aí em um barco com motor potente.

A roupa, como muitos já devem supor, ficou pendurada em uma despensa de uma casa de vila em Madureira: a minha. Nesse tempo, Nelson não somente não comprou a lancha como se separou de mim. Falei assim como se a culpa fosse somente dele. Perdoem-me o português ruim. Deve ser o inconsciente que quer sempre jogar para o outro a responsabilidade de tudo de ruim que nos acontece. Quando um casal se separa ou briga, há sempre, no mínimo, duas pessoas envolvidas que protagonizam no mesmo grau de importância toda a cena.

Fato foi que aquela goma elástica em forma de macacão adquirida com um sentimento tão romântico ganhou outra conotação depois que Nelson saiu de casa. Cada hora que olhava para ela tinha vontade de pegar a tesoura e picar aquilo tudo como aqueles que rasgam uma foto de casamento na intenção de que esse gesto funcione tal e qual uma lobotomia. Superior e inteligente que sou, claro que não rasguei nada. Apenas embrulhei em um papel para não ver nunca mais aquilo e joguei nos confins do último andar do meu armário que só se chega com aquelas escadas de bombeiro.

Pronto.

Problema resolvido.

Qual o quê, minha gente, qual o quê…

Um amigo meu (que é todo dado a aventuras no meio da natureza) me ligou perguntando se eu queria ir até Ilha Grande porque o amigo do amigo dele tinha direito a 10% de uma lancha de doze lugares e estavam sobrando duas vagas. Bora, Elika? E, tomando uma atitude aparentemente pequena, respondi: bora.

– Pena que você não tem roupa de mergulho, né? – lamentou-se todo.

– É. Pena. – respondi cheia de amnésia da boa. – Não. Pera. Eu tenho sim.- lembrei daquele bando de látex embrulhado em três sacos de lixo, preso e amarrado em nome de Jesus para que não saísse nunca mais daquela passagem para Nárnia.

– Ah que legal! Você já mergulhou, então? – concluiu muito previamente meu amigo que me conhece há dois meses.

– Nunca mergulhei. – respondi olhando para o horizonte como os que olham para a última cena do Cinema Paradiso.

– Tem há pouco tempo, então? – tentava o amigo entender.

– Uns três anos mais ou menos. – e adiantei: – Já escrevi sobre. A crônica até saiu no meu livro.

– Aquilo foi verdade?! Eu jurava que você tinha inventado toda aquela história! – assustou-se ele certamente se dando conta com o que ele estava lidando.

– Não invento nada não. Tudo verdade. Tenho a roupa para provar. Bora mergulhar em Ilha Grande. Leva pé de pato para mim.

Adiantando bem a história, pulando crises de choro, eu sendo apresentada à alcachofra, vendo um vinagre sendo vendido por uma bagatela de 79 reais no mercadinho da Marina e vários arco-íris nas gotas que eram espalhadas pela lancha e mais outros detalhes que não servem nem ilustram o propósito desse texto (que não tenho a menor noção de qual realmente seja), a embarcação parou em uma praia para que a tripulação mergulhasse, as mulheres pegassem Sol no convés ou lesse Antonio Prata, como eu prontamente fiz na sombra.

Vários começaram a cair na água. Alguns voltavam rápido reclamando do frio. O piloto da lancha, um sujeito de 50 anos que parecia ter saído da série Armação Ilimitada (aquela com Kadu Moliterno, André de Biase e Andrea Beltrão), veio até mim e, com uma atitude aparentemente pequena, perguntou-me se aquela roupa ali não era minha e se eu não ia mergulhar. Respondi que sim. A roupa é minha. E depois respondi não sei, sem saber, de fato, como lidar com tanta simbologia em forma de látex.

– A verdade é que nem sei vestir esse troço. Nunca usei. – confessei.

– Eu te ajudo. É uma excelente oportunidade de você experimentar. – falou ele fofamente com todo o respeito.

– Tá fria a água. Tão dizendo… – ponderei.

– Mas por isso você tem essa roupa. Ela não deixa o frio passar por ela. Vai. Levanta daí que eu te ajudo.

Guardei meu livro em um local bem seguro, tirei meu short e comecei o trabalho de enfiar aquela vestimenta que ia me espremendo conforme ia entrando. O rapaz foi dez e sem ele e sua experiência – conferida pelo coro manchado de Sol e os lábios brancos de protetor – eu não conseguiria fazer todas as manobras com a escápula que o momento exigia.

Pronto. Eu estava dentro.

Fui para a escadinha da lancha, andando como um astronauta sem conseguir dobrar direito os joelhos e os cotovelos. As poucas pessoas que estavam ainda por ali se afastaram recolhendo as pernas para que eu passasse. Um pai gritou para o filho: deixa a moça passar!, ela vai mergulhar!.

Alertei ao pai que aquele processo seria lento e que poderia durar mais uns três anos. Ele não entendeu o que eu disse, pensou que fosse uma metáfora ou algo que o valha.

Sentei na popa da lancha e fiquei, se o tempo fosse medido pela densidade de meus pensamentos, o equivalente a alguns anos olhando para a água. Questionava se Deus sabia quando me viu comprando aquele bando de borracha (que eu sentia, naquele momento que estava fundido no meu corpo) que eu só ia usá-lo nesse dia – e não juntamente com meus filhos, após meu marido jogar a âncora no mar para que víssemos todos juntos tudo o que tem dentro de um oceano. E, depois, comeríamos sanduíches que eu, mãe e esposa perfeita, teria preparado na noite anterior com queijo branco e um pouco de salada no pão integral. E, se Ele tem essa onisciência toda, por que não me poupou desse sofrimento? (Sim. Não estava pensando nas crianças que morrem de fome na África, estava em uma praia que só se chega de barco em Ilha Grande com os pés em uma água transparente revoltada com Deus por me fazer passar por aquilo. Sou dessas.)

Estava apavorada de molhar aquela roupa e sentir toda a frieza não da água, mas do Universo. Ok. Estava com medo da água fria também, confesso. Vou sentir gelidez nos pés e, na cabeça, tudo pode acontecer quando os cabelos se encharcarem com essa salmoura… Enquanto divagava sobre a finitude de tudo – inclusive do amor – e da resistência daquela bagaça de borracha que estava em perfeito estado como se eu tivesse comprado ontem, ouvi uma voz que vinha de lugar nenhum e, paradoxalmente, de todos os lugares. Olhei para o céu, as nuvens se afastaram lentamente. Percebi que eu estava escutando Mufasa como geralmente acontece em momentos assim: “O passado pode machucar, mas você pode fugir dele ou aprender com ele”.

Nesse instante, meu amigo emergiu perto dos meus pés e me disse empolgadaço:

– Ali tá cheio de peixinho! Tem uma parte que dá pé e está dando para filmar bem com minha câmera! Vem!

E, numa dessas atitudes aparentemente pequenas, pulei na água.

Coloquei a máscara, o snorkel e fui. O primeiro susto foi perceber que estava quentinha como se estivesse enrolada em um cobertor. O outro foi constatar que não fui para o fundo (do poço). A roupa me fazia boiar mesmo se eu abraçasse meus joelhos, coisa que fiz por alguns minutos de olhos fechados em posição fetal quando embaixo de mim tinham corais coloridos. Tive a sensação de que estava para nascer de novo. Depois fingi que era um urubu planando e fiquei como uma estrela do mar com as pernas e os braços abertos deixando uma leve corrente me levar.

-Fica assim que vou tirar uma foto sua! – ouvi de meu amigo que estava mega eufórico fotografando até, sei lá, eu (e a minha superação).

Depois, ele pegou em minha mão e começou a me apontar bichinhos esquisitos, plantinhas coloridas, peixinhos que pareciam de desenho animado. Só saímos da água quando todos já estavam embarcados e gritando para irmos embora.

Ao final do passeio, o piloto veio falar comigo me orientando de como devo fazer para guardar a roupa de forma que ela dure anos. Aproveitou e me parabenizou pela estréia. Olhei fixamente em seus olhos desconfiada se não era Rafiki, o amigo conselheiro de Simba, disfarçado. Fiquei sem saber.

Muita gente pensa que as mudanças importantes que realizamos na vida são fruto de grandes resoluções como entrar para um doutorado, emagrecer vinte quilos, parar de fumar ou deixar que lhe roubem um beijo. Pode ser. Mas algumas vezes, são as atitudes aparentemente pequenas – como dar um simples mergulho com uma roupa de borracha – que nos transformam por completo.

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Foto de Marcello Teixeira, a quem dedico esse texto.

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