O Muro Invisível

meritocracia

Muito se fala em diferenças de classes sociais. Quando abordamos o tema pensamos sempre em quantidade de dinheiro envolvido, na casa onde mora, nos carros que possuem (ou não), nos vinhos caros degustados e por aí vai.O ponto é que não se trata só disso. A diferença de classes ultrapassa a ideia de bens materiais. Ela invade o campo do comportamento.

Há quatro anos, o CEFET está com metade de suas vagas reservadas para cotistas. Eu demorei a entender muita coisa, tipo essas que só assimilamos quando vivemos e convivemos. Há espaços como bibliotecas, salas de monitoria e coisas afins para todos os alunos mas, surpreendentemente, ela não é frequentada por aqueles de baixa renda. Comecei a pensar sobre a causa disso…

Percebam que há várias atividades gratuitas espalhadas pelo Brasil como museus, exposições, shows, bibliotecas e por aí vai. Até mesmo uma aula de Ioga pode entrar como exemplo. Muitos desses locais não são frequentados e usufruídos por pessoas pobres. Se perguntarem para eles, ouviremos, de uma forma geral, que eles não se sentem pertencedores e merecedores desses espaços ainda que não exista nada aparentemente que os proíba de usá-los.

Não é difícil entender. Eu, classe média, quando me vejo no meio de pessoas endinheiradas que conversam sobre vinhos caros e queijos mofados e fedorentos exaltando suas qualidades fico me perguntando o que estou fazendo ali. Não é o meu lugar. Não pertenço àquela cultura e acho difícil manter contato, amizade, namoro ou casamento com alguém dessa tribo.

Não estou, no entanto, na base da pirâmide. Sou dessas que tira férias. Não fui à Disney e nem passeei pela Europa, muito menos meus filhos, mas viajamos do nosso jeito pelo Brasil. Quando partimos, sentimos que merecemos o descanso. Eu por trabalhar e eles por estudar. Coisa tão simples e natural, não? Pois é. Não. A grande maioria do povo brasileiro incluindo muitos adolescentes não sabem o que é usufruir das férias.

Há uma herança invisível que é passada de pais para filhos que é um dos verdadeiros privilégios e da qual não nos damos conta que a recebemos. Na infância, meus pais sempre me estimularam a ler, levaram-me ao cinema, ao teatro, conversavam comigo, davam-me-me brinquedos que estimulavam a minha inteligência. Sem saber, eu estava a anos-luz de distância da maioria das crianças do Brasil. Os estímulos que recebemos na infância vão sendo incorporados de forma inconsciente. Se não pararmos para refletir, a impressão é que o natural seja assim e que todos nascem com isso.

Ledo engano.

O filho do pedreiro e da empregada doméstica, por exemplo, não recebeu todo esse estímulo porque sua miséria não se dá apenas pelo quanto que se carrega na carteira. Como não damos o que não temos, não se ensina aquilo que não se aprende. Ainda que na família pobre tenhamos um pai e uma mãe presentes, o que se transmite é a inadequação social (muito bem mostrado no filme “Que Horas Ela Volta?”) e uma carência de hábitos que estimulem à cognição.

Não raro, percebo alunos que me olham e me ouvem e que não estão enxergando e escutando nada porque não foram treinados para se concentrar. O pior, muitos desistem se sentindo culpados, burros e sendo causas de sua própria desfortuna. Esses são, de uma forma geral, os que vêm de famílias desestruturadas cuja renda é de um salário mínimo, se tanto. Claro que outros conseguem ascender ainda que de forma tímida e entender que não existe classe condenada. A despeito de um fracasso na socialização familiar, conseguimos ter sucesso na escolar e dar a esse aluno algo que pode ser vendido além de sua força muscular. Mas não é fácil levantar quem sempre se arrastou no limbo.

Só vendo tudo isso de perto entendi que eu não nasci educada, com capacidade de concentração, habituada a ler, preocupada em me alimentar bem e preparada para a concorrência. Tudo isso foi privilégios que recebi por ser filha de quem sou. Por isso, agora quando ouço o discurso de que o capitalismo é justo e que todos possuem chances iguais percebo que esse muro invisível que separa as classes sociais – mas que existe como todos podemos observar – é feito de algo mais resistente do que o aço. A igualdade formal existente nas leis não é suficiente para derrubar essa barreira.

Se muitos espaços públicos gratuitos não são usados por pessoas de baixa renda é porque, em certa medida, a maioria delas sofre o preconceito de ser pobre não somente economicamente falando, mas carente de cognição e, portanto, não se sentem seguros para frequentar determinados locais.

Com a política das cotas, começamos a ver vários desses espaços como universidades, por exemplo, serem frequentados por pessoas que não portavam Iphones. Não foi à toa que aqueles que sequer se davam conta que reproduziam um sistema injusto começaram a se sentir muito incomodados e falar em meritocracia como algo dado no mundo ou criado por Deus para se manifestarem contra qualquer política de inclusão social. A lei, formalmente igualitária, basta para aliviar a consciência de muitos que se acham superiores e que desprezam, ao chegarem em um determinado ambiente público a gratuito, o fato (e sua causa) de não ter crianças negras, por exemplo.

E antes que venham me acusar que estou diminuindo os títulos e o esforço que você fez para consegui-los, saiba que reconheço sua capacidade, mas não exija de mim que eu leve seu mérito  para outros limites que vão além de sua esfera pessoal. A minha grandeza não veio exclusivamente da minha eficiência ou pré-disposição. Muito devo a todo o aparato que me cerca.

Hoje compreendo que se um aluno de baixa renda não consegue tirar uma boa nota isso nada tem a ver, na maioria dos casos, com preguiça, desatenção ou falta de esforço pessoal. Não posso mais desprezar, depois de tudo o que observei sobre o muro invisível (porém sólido), a importância das demais variáveis como estrutura familiar, incentivo para aquisição de bens imateriais, encorajamento e o amor em suas mais diversas formas.

Esse é o grande mal desse sistema: a reprodução de privilégios com um ar aparente de ser justo e igualitário. E, a meu ver, esse golpe foi, dentre outras coisas, a tentativa de impedir que esse muro invisível fosse derrubado. Vide a PEC 55.

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