Aponta-dor

jacare

– Yuki, não vou comprar mais mochila de super herói, de carrinho, turma da Mônica não.Você já está bem grandinho no auge de seus dez anos e não preciso mais pagar uma fortuna para que você tenha uma mochila decorada. Você já é um rapazinho, ok? – disse eu super firme.

– Ué, eu nunca pedi para você comprar nada. Você que sempre me perguntou que tema eu queria e eu dizia. Mas nunca fiz questão de nada de estampa não. – respondeu ele giga consciente.

– Mas e se outros amiguinhos chegarem lá com mochilas super estilizadas? Você não vai ficar triste com uma toda preta e sem graça? – falei eu hiper balançada.

– Mãe, eu sou um rapaizinho já. Não vou me importar com isso. – explicou ele como se tivesse trinta anos.

Não gostei daquele tom. Afinal, ele deveria estar esperneando como uma criança. De onde surgiu aquela calma toda?

Como uma mãe normal, com aquele papo, perdi a bússola, saí do eixo, respirei fundo virada para Meca, dei umas voltas imitando chinês para pensar melhor e mandei:

– Nada disso. Você é meu bebê e eu vou comprar mochila do Cebolinha com merendeira combinando porque você é uma criança! Está me entendendo? Criançona. Bebezão. Meu bebezão. Esquece isso de rapaizinho. Você só tem dez anos cacete. Vai ter mochila de homem aranha sim.

– Ok. Faça o que você achar melhor. – manteve ele aquela maturidade irritante. E continuou. – Eu não vou me sentir mal por causa de uma mochila. Fala sério.

Saí para comprar o material escolar dele completamente desnorteada com aquela conversa. Como assim ele não fez uma birra danada? A verdade é que nunca fez mesmo, mas como assim tanta frieza com uma notícia daquelas de que o tempo voou e que meu caçulinha já virou gente grande? Como ele lida com essa transformação repentina, com a ideia de que a vida é um sopro e que a gente não pode nem piscar que tudo muda? Só falta agora querer cortar o bife sozinho…

Comprei tudo sem tema infantil porque sou dessas. Mega segura de minhas decisões.

Ao entrar em casa, totalmente desatenta e ainda sem entender nada com mó medo de encontrar Yuki e ele virar para mim e me dizer que vai ali sair com os amigos e que não tem hora para voltar, pisei em um carrinho esquecido no chão da sala e, logo depois, tive que pular um skate. Acho que nunca fiquei tão feliz em tropeçar na infância.

Percebi que a bagunça que eles fazem na minha casa é o que organiza a minha vida.

– Mãe, que apontador de jacaré é esse?

Ah gente…

Moana. Um filme necessário.

moana

Ontem, eu, mulher de mais de 40 anos, que fui educada para casar virgem, que fui mãe solteira com 20 anos e fui chamada de puta por muitos da própria família, que tive que lidar com o sofrimento de minha mãe por acreditar que mais nenhum homem iria querer se casar comigo porque eu era uma “mulher usada”, que ouvi várias vezes de minha ex-sogra que deveria parar de estudar se não iria perder meu marido, que fui escrava de um modelo de felicidade que só seria possível com a vinda de um príncipe, que passei minha infância assistindo N vezes desenhos de princesas que eram presenteadas por fadas com a beleza e, quando desobedeciam, eram castigadas até serem salvas por um homem rico e bonito e que, até hoje, a despeito de minha independência financeira, sinto-me insegura em vários momentos da minha vida sendo provedora de uma casa com três filhos e, não raro, caio em desespero de tanto medo do mundo, eu, essa mulher tão comum, vi ontem Moana no cinema, o novo desenho da Disney.

Entrei sem saber o que me esperava na tela. Fui para me divertir com Yuki, Nara e Hideo. Mal o filme começou, fiquei na expectativa do príncipe aparecer. Metade do desenho e nada de macho representando a força e/ou o objetivo da protagonista. Cochichei com a Nara:

– Cadê o príncipe? Tem príncipe nessa bodega não?
– SHHHHHHH. – Nara, que estava assistindo pela terceira vez, fez para mim. – Apenas veja, mãe loka.

Continuei com os olhos arregalados e os óculos na fuça para ver tudo em 3D.

Há um parceiro de aventura, mas nada de ela fazer charme para ele. Moana segue seu foco que é de salvar sua ilha e seu povo da destruição. A jovem polinésia de Motu Nui não está preocupada com casamentos.

Quando me dei conta, entrei em choque e em choro convulsivo.

Moana se basta.

Impressionante…

E ainda. Moana questiona tudo que lhe foi ensinado, procura descobrir quem realmente é e se orgulha do que encontra nessa busca.

Quando terminou o filme, Nara me perguntou:

– E então, o que achou, mãe?

– Altamente necessário. Para todas essas menininhas que estão aqui, mas para as mulheres de minha idade que viram tanto aquela burra da Branca de Neve que só acorda com o beijo de um homem, aquela lerda da Cinderela que só sai daquela vida quando um homem lhe calça um sapato, aquela frágil da Bela Adormecida que não podia fazer nada se não quebrava e só acorda pra vida depois que tem contato com homem, aquela aquela e aquela… aquele inferno todo que vivi! – respondi.

Respondi em prantos sob emoção esquecendo por completo da sororidade. Chorava não pelo desenho em si, mas por viver e conviver com tanto sofrimento desnecessário por conta dessa cultura que nos aprisiona e por ter acabado de ver Moana.

Moana.

A princesa sem príncipe, leve e solta, toda empoderada e feminista por natureza como todos somos ao nascer, até que…

Enfim, gente, amei Moana.

Literatura Africana

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Outro dia, tive contato com a literatura africana. Fiquei chocada com o primor dos textos. Desconhecia-os por completo e – que horror, que vergonha de dizer isso – mas, me peguei surpresa dizendo: caraca, eles fazem literatura nível Saramago! Perdoe, meu pai… eu pequei.

Vale observar, tive dificuldade em adquirir os livros. Foi um trabalho de garimpo da minha parte. E fiquei pensando: por que diabos não falam sobre isso? Em que eles diferem em genialidade dos escritores portugueses, franceses, alemães…? Respondo agora: em nada.

Daí, peguei-me refletindo (impulsionada por Jessé Souza) que todas as vezes que ouço o termo “cultura africana” só o vejo fazendo conexão com dança, batuques, macumba, comida e isso não deixa de ser também uma “discriminação”. Claro que tudo isso são saberes, mas que diferem dos outros ditos europeus. Estes últimos estão sempre ligados a algo intelectual como música clássica, artes plásticas, livros, ciência…

A velha dicotomia corpo e mente… sendo que associar a cultura africana somente ao corpo não deixa de reforçar a superioridade da outra cultura, pois o que se faz com o intelecto tem (não sei por qual razão) um status maior sobre o que se faz com o corpo.

Assim como na literatura, acreditei que se há muitas formas de se fazer ciência, pensar sobre o mundo, filosofar, lidar com a natureza, os africanos devem ter muitas coisas escritas, mas simplesmente não são divulgadas.

Hoje, graças aos meus garimpos, quando ouço “cultura africana” o conceito dentro de mim se modificou. Está muito mais ampliado.

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Em termos de filosofia, não há quase nada em português dos grandes filósofos africanos como Kwame Anthony Appiah, Kwasi Wiredu, Léonce Ndikumana e Séverine Kodjo-Grandvaux.

Já na literatura, encontramos alguns livros traduzidos de Wole Soyinka, Nadine Gordimer, Naguib Mahfuz, Ngugi Wa Thiong’o e Okot p’Bitek, entre outros. Alguns são vencedores do Nobel. Achar escritoras é outro garimpo, mas encontrei livros de Amma Darko, Flora Nwapa, Buchi Emecheta e Mariama Ba. Fácil de encontrar temos Mia Couto, José Eduardo Agualusa e José Luandino Vieira.

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Segue o link, caso queiram ler alguns textos que achei interessante:

http://filosofia-africana.weebly.com/

Perguntas que farão qualquer um se apaixonar. Ou não.

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Há um estudo feito por não sei quem que foi publicado em várias revistas que dá uma fórmula de como podemos fazer uma pessoa se apaixonar por nós. Basta fazer algumas perguntas e ouvir atentamente a resposta, digamos em uma linguagem moderna, do crush.

Carente que sou, pensei logo em ler essas perguntas para alguém. Mas, depois, bem mais equilibrada, refleti: se o entrevistado me devolvesse o questionário, o que eu responderia? E cheguei a conclusão que, se ele estivesse enamorado pelo interrogatório que fiz, iria se desapegar na hora voltando pela mesma via.

Hoje, particularmente, seria desastroso. Não estou em um dia bom. De segunda a sexta costumo ser assim. Sábado geralmente piora. Mas hoje, especificamente, está mais difícil que o domingo.

Amanhã meus três filhos vão viajar com o meu ex-marido e eu estou fora dessa farra sentindo-me altamente desnecessária para o universo. Sei que não é nada disso que bababá bububú que todo mundo me ama mas, a verdade é que fiquei de fora da festa quer eu mereça quer não. E tenho que lidar com isso.

Isso posto, vejamos a cara do lindo enfeitiçado por mim me fazendo as mesmas perguntas querendo que eu me encante por ele também:

– Se pudesse escolher qualquer pessoa no mundo, quem convidaria para jantar?

Hideo, Nara ou Yuki. Qualquer um dos três.

– Gostaria de ser famoso? De que forma?

Sim. Com Hideo, Nara e Yuki ao meu lado.

– Antes de fazer uma ligação telefônica, você ensaia o que vai falar? Por quê?

Pergunta para Nara. Ela sabe bem…

– Para você, como seria um dia perfeito?

Com Hideo, Nara e Yuki.

– Quando foi a última vez que cantou sozinho? E para outra pessoa?

Eu nunca estou só. Sempre tenho, ao menos, um dos três comigo. Ontem mesmo cantei para Hideo, Nara e Yuki.

– Se pudesse viver até os 90 anos e ter o corpo ou a mente de alguém de 30 durante os últimos 60 anos de sua vida, qual das duas opções escolheria?

Não entendi a pergunta. Não consigo responder usando Hideo, Nara e Yuki.

– Tem uma intuição secreta de como vai morrer?

Não. Sei que Hideo, Nara e Yuki não podem ficar sem mãe. Ou podem? Podem…

– Diga três coisas que acredita ter em comum com seu interlocutor.

Hideo, Nara e Yuki.

– Por quais aspectos de sua vida você se sente mais agradecido?

Hideo, Nara e Yuki.

– Use quatro minutos para contar a seu companheiro a história de sua vida com todo o detalhe possível.

Nasci. Cresci e fiz Hideo, Nara e Yuki. Eles vão viajar juntos e sem mim.

– Se amanhã pudesse se levantar desfrutando de uma habilidade ou qualidade nova, qual seria?

Poder passar a próxima semana com Hideo, Nara e Yuki.

– Se uma bola de cristal pudesse contar a verdade sobre você, sua vida, o futuro ou qualquer outra coisa, o que lhe perguntaria?

Tenho medo de fazer perguntas sobre o futuro.

– Há algo que há muito tempo deseja fazer? Por que ainda não fez?

Viajar com Hideo, Nara e Yuki. Dinheiro.

– Qual é a maior conquista que conseguiu em sua vida?

Hideo, Nara e Yuki.

– O que mais valoriza em um amigo?

Gostarem do Hideo, da Nara e do Yuki.

– Qual é sua lembrança mais valiosa?

Hideo, Nara e Yuki.

– Qual é sua lembrança mais dolorosa?

Amanhã poderei responder.

– Se você soubesse que vai morrer daqui a um ano de maneira repentina, mudaria algo em sua maneira de viver? Por quê?

Ficaria mais com Hideo, Nara e Yuki. Porque amo Hideo, Nara e Yuki.

– O que significa a amizade para você?

Entender que amo Hideo, Nara e Yuki.

– Que importância tem o amor e o afeto em sua vida?

Me fazerem sofrer. Vide agora.

– Complete esta frase: “Gostaria de ter alguém com quem compartilhar…”.

Hideo, Nara e Yuki.

-S e fosse terminar sendo amigo íntimo de seu companheiro, divida com ele ou com ela algo que seria importante que ela soubesse.

Sou dependente de Hideo, Nara e Yuki.

– Divida com seu interlocutor um momento embaraçoso de sua vida.

Hoje. Hideo, Nara e Yuki vão viajar e eu não.

– Há algo que seja muito sério e que não se deve fazer piadas a respeito?

Hideo, Nara e Yuki.

– Se fosse morrer esta noite sem possibilidade de falar com ninguém, o que lamentaria não ter dito a uma pessoa? Por que não disse até agora?

Hideo, Nara e Yuki, não vão pelamordedeos. Porque é maluquice isso. Sou louca, mas sou consciente da minha doença.

– Sua casa está pegando fogo com todas suas coisas dentro. Depois de salvar seus entes queridos e seus bichos de estimação, sobra tempo para fazer uma última incursão e salvar um único objeto. Qual escolheria? Por quê?

Minha lapiseira. Porque escrevo e desenho com ela há vinte anos sobre Hideo, Nara e Yuki.

– Quando foi a última vez que chorou na frente de alguém? E sozinho?

Hoje. Agora. Na sua frente. Quando você sair da minha frente.

Enfim, essas são algumas perguntas. Mas nem precisaria terminar o questionário porque nessa altura do campeonato já estaria falando sozinha há tempos.

Como sempre fiquei.

Lugar de Fala. Lugar de Silêncio.

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Não faz muito sentido essa história de que só mulher pode falar sobre o machismo (depende do momento, vale observar), só LGBTs podem falar de LGBTfobia, só negros sobre racismo e por aí vai. Como já observado, precisamos trabalhar na coletividade para poder discutir também, numa outra perspectiva, sobre assuntos que tocam a todos como reforma política, cortes de gastos na Educação e Saúde e reforma da previdência, por exemplo.

Se começo o meu discurso falando sobre a necessidade de ser empático com os negros, mulheres, LGBTTs, deficientes físicos, pobres… devo dar o exemplo e compreender a revolta de pagar pelos pecados de outros e do homem branco em querer falar e ser impedido de se manifestar.

De fato, ninguém pode ser culpado pelo que os tataravós fizeram. Mas somos todos responsáveis pelos demais. Então, se alguém não se posiciona frente a uma atitude opressora e preconceituosa – seja ela de qual espécie for – ou silencia a voz do oprimido na sua vez de falar, esse alguém está corroborando para que a hierarquia permaneça entre nós.

O fato de alguém ser “macho” e tudo o mais que lhe enche de privilégios não pode ser sinônimo de “inimigo”. Ao fim e ao cabo, percebo  que “machos  bonzinhos” e “fêmeas revoltosas” falam da mesma coisa, querendo o mesmo mundo melhor, possuem um consenso na pauta mas, por estarmos em “lugares” diferentes, há momentos em que eu vejo, claramente, que é muito melhor um homem ouvir do que falar sobre feminismo, por exemplo. É extremamente difícil fazer com que muitos  entendam isso. No entanto, se pensarmos com calma, não é tão complicado entender o porquê eles não entendem. Basta mudar um pouco o ângulo de ver a coisa.

Explico-me a seguir.

Há vários tipos de conhecimento. Por exemplo, é possível que, em certo sentido, eu conheça muito mais a Itália – sem nunca ter pisado na Europa – do que alguém que tenha feito turismo por lá. Posso afirmar várias coisas sobre a terra de Galileu que não são do conhecimento dos próprios italianos. Quero dizer com isso que o acesso a um assunto (tema, conhecimento, informação…) é livre e qualquer um – independente de gênero, religião, cor da pele, preferência  sexual – pode conseguir.

Porém, quando falamos de dor e, se quisermos entendê-la, para ajudar a curar é bom que se ouça os feridos. Posso falar muito sobre a Itália, mas jamais proferir com propriedade sobre o que sentem os que lá nasceram.  Indo direto ao nosso assunto e deixando de lado os paralelos e as analogias, em determinadas situações, a problematização trazida pela reivindicação do “lugar de fala” faz todo sentido. Se quero conquistar a minha emancipação e mostrar que tenho (o mesmo) valor independente da autorização e da aprovação de um ser considerado socialmente superior (homem branco, heterossexual, cis e rico), ninguém melhor do que eu, portadora da experiência da opressão e do preconceito, para fazer isso. É preciso descentralizar o fazer pensar. Mas, mais do que isso, é preciso, em muitos contextos, que a fala seja em primeira pessoa e não em terceira. Isso tem muito significado para quem (dependendo de quem) ouve.

No caso dos movimentos feministas, por exemplo, estar entre mulheres e ouvir somente vozes femininas nesses debates nos ajudam a proferir palavras sem medo e criar mais segurança. É o famoso e necessário empoderamento. Precisamos nos sentir confiantes e aprender que podemos nos expressar. Isso ainda é muito difícil para muitas de nós que tivemos uma educação castradora e vivemos em uma sociedade machista. Então, quando uma de nós mais segura fala, outras começam a se inspirar. Se um homem nos tira esses importantíssimos minutos que sejam, pode resultar, naquele ambiente, em menos mulheres fortalecidas. O que seria um desserviço e não uma ajuda à causa por mais interessante que seja a sua fala.

Voltando ao paralelo com o saber de um italiano e o de quem pesquisou muito sobre a cultura da terra de Caravaggio, ainda que o estudioso queira falar sobre tudo o que leu e sua vivência intelectual (que não deixa de ser também um conhecimento verdadeiro), há momentos, se quisermos entender sobre sentimentos genuínos de quem vivenciou uma opressão, que a sabedoria do pesquisador pode ser prejudicial se significar o silêncio de quem precisa gritar.

Ainda não entendeu? Tentemos mais um pouco: se um homem branco endinheirado resolve falar sobre a condição subalterna da mulher para várias mulheres negras, por exemplo, ele reforça a hierarquia e anula, na prática, o conteúdo do seu discurso, dependendo do local e do momento em que isso seja realizado. Dito de outro modo, o lugar de fala pode auxiliar pessoas a compreenderem como o que proferimos e como o fazemos reforça as relações de poder e reproduz, ainda que sem querer, os preconceitos de classe, de gênero e  religiosos.

Se o discurso e o movimento são emancipatórios eles devem ser proferidos pelos oprimidos para lhes dar legitimidade. É necessário dar espaço para as pessoas contarem como é a vida delas a partir das suas experiência. Caso as silenciemos, a “experiência” contada e a visão proferida será sempre a do homem branco, que é o privilegiado da sociedade.

No entanto, vale observar, em outros contextos, é necessário que haja o diálogo entre os dois extremos (homem, branco, hetero, classe média/alta, sem deficiências versus mulher, negra, transexual, classe baixa, com deficiência, por exemplo) porque o aspecto relacional é importantíssimo na desconstrução social das diferenças.  As experiências individuais são muito importantes e bem vindas para uma reflexão sobre como construir um denominador comum para a coletividade.

A agressividade que emerge nos movimentos gritando um “cala boca, macho branco” quando o ideal seria “dá licença, deixa eu falar pelamordedeos” é compreensível porque todos estamos muito cansados e somos muito emotivos nessas horas. Não aguentamos mais ouvir que a nossa dor é mimimi, que estamos problematizando tudo, que tudo está muito exagerado sendo que mal começamos.  É muita opressão em cima de um tiquinho de luta. Entenda que não é pessoal, tente reconhecer seu lugar de fala e seus privilégios. Procure enxergar que, dependendo do local, o seu silêncio contribuirá de forma muito mais eficiente para o empoderamento dos oprimidos. É necessário romper com os regimes de invisibilidade impostos sobre esses segmentos fragilizados.

Mas, em se tratando de ser humano, nada é tão simples. Podemos ter casos como Fernando Holliday, um jovem político liberal, negro, gay e periférico, que tem utilizado o seu lugar social para defender pautas contrárias dos movimentos liderados pode negros, gays e periféricos. De onde concluímos que a voz do oprimido não é sinônimo de verdade objetiva (ela existe?). Sabemos que há mulheres que falam mal do feminismo mesmo sofrendo com o machismo diariamente.

Para conhecer não é suficiente viver (ainda que seja necessário dependendo da pauta). O conhecimento se dá através de outros meios e não há fórmulas certas para que isso ocorra. Pode vir no trabalho, na conversa com um desconhecido, na leitura de um livro, ao ver uma maçã cair… Sei que a cultura nos cega por demais e a nossa é estruturada em uma sociedade, por essência, excludente. Não é nada fácil sermos empáticos dependendo da miopia causada pela nossa educação.

O caso de mulheres que repudiam o feminismo e dos Fernandos Hollidays na vida mostra que o protagonismo deve ser dado ao oprimido, mas isso não pode significar um privilégio epistêmico, ou seja, que determinado tipo de pessoa teria acesso privilegiado de uma verdade universal (se é que ela existe…). O conhecimento advindo pela vivência deve ser sempre considerado, mas está longe de ser suficiente para melhorar o coletivo. É necessário o diálogo e o respeito entre todos os envolvidos.

Se quisermos avançar, penso eu, devemos ser se não empáticos (o que é  muito difícil), ao menos, mais esforçados em entender. Entrar em um debate procurando algo para atacar, rebater ou simplesmente sair se defendendo e falar e não para ouvir e, depois, debater e aprofundar só contribui para aumentar nossas diferenças e enfraquecer a luta dos oprimidos.

A Solução

garfo

 

Uma chamava-se Almira e a outra, Alice. Em ambas, a beleza – tal como muitos a consideram -era parca. O criador, se existe, não teve a menor paciência em esculpi-las. Para Almira, digamos, Ele colocou barro demais de modo que ela tenha ficado com um formato extremamente côncavo vista de alguns ângulos e planos em outros. Não satisfeito, aplicou-lhe poucos cabelos. Em Alice, a firmeza nas mãos terminou justamente quando se modelava o rosto. Míope de oito graus, bem dizer, Ele foi justo com o nariz que de tão grande sustentava de forma satisfatória os óculos. Os dentes eram tortos e Alice, somente depois de adulta, teve dinheiro para tentar amenizar aquele descuido da natureza e começou a usar aparelho. E era com ele que estava quando foi morar com Almira que adorava todas as comidas que brilham muito.

Almira e Alice, suburbanas de berço, se conheciam desde os tempos de escola e resolveram dividir o aluguel de um apartamento em Botafogo. Almira trabalhava no banco. Era gerente. Conversava muito com os colegas e invejava os problemas que eles traziam de seus relacionamentos. A que trabalhava no caixa, por exemplo, vivia reclamando que o marido isso o marido aquilo. Almira ouvia cada reclamação desejando que um dia proferisse algo parecido. Seu companheiro de sala, outro gerente, queixava-se da adolescência dos filhos e da instabilidade emocional da sua cônjuge. Almira, cheia de carnes, gorduras e potencialidades para ser esposa, mãe, casada, enfim, plena de desejos de não lhe pertencer por completa, cobiçava cada analgésico tomado pelo seu vizinho de mesa pela desobediência dos seus meninos e pela bipolaridade, chamemos assim, de sua mulher. A cada desabafo dessa natureza vindo de seus amigos, Almira comia chocolate para tentar aliviar um pouco o vazio que sentia por não ter de quem reclamar.

Alice era bibliotecária. Foi moradora de Realengo por anos de sua vida em uma casa com mangueiras no quintal. Seu pai e sua mãe, que vivem lá até hoje, além dela, tiveram mais dois filhos. Todos batizados. Os outros já eram casados e tanto o pai quanto a mãe de Alice não concordaram com ela sair de casa sem passar pelo matrimônio. Pela distância do seu trabalho que lhe cansava não a beleza que não tinha, mas sim o corpo frágil e o rosto torto, Alice resolveu encarar as críticas de toda a família e foi morar com Almira que exagerava no rímel e no perfume todas as manhãs.

Já se iam dois anos morando naquele apartamento. Se antes nunca foram vistas namorando, durante esse tempo morando juntas, não foi diferente. Não eram de sair em companhia uma da outra. Cada uma tinha seu grupo de amigos e Almira gostava de ficar em casa enquanto Alice era dessas que não perdia um filme bem avaliado pela crítica internacional. Não raro, as ruas de Botafogo testemunhavam os suspiros de Alice após as sessões de cinema.

Almira e Alice ardiam em sua solidão como aqueles que moram no inferno devido a seus tantos pecados. Ao trancar as portas dos quartos, as duas, secretamente, mexiam em si mesmas. Alice colocava seus óculos na cabeceira já que eles sempre embaçavam e Almira, o chocolate em lugares onde não dava para sentir o gosto, somente percebia sua textura que mudava com o calor vindo de suas fendas e cavidades.

Até que aconteceu.

Foi exatamente enquanto espetava uma batata que se deu o fato.

Não se sabe exatamente o que se passou na cabeça rala de Almira enquanto fazia a janta e olhava para aquele garfo mas, ao ver Alice sair do banho, chamou a amiga.

– Sente-se aqui que preciso lhe mostrar uma coisa – disse com a firmeza de quem viu uma solução.

Alice, que não tinha pressa naquela noite de quarta-feira, atendeu-lhe prontamente ainda que com pouquíssima curiosidade. Ao sentar-se, Almira com o garfo em riste olhou Alice de uma forma que toda a miopia parecia ter desaparecido. Alice, assustada, enxergou a gravidade. Tentou se levantar, mas Almira a segurou.

– Fica quieta. – ordenou de forma ríspida mas delicada porque, nesses momentos, a lógica vai passear e os paradoxos fazem a festa.

Alice tentou mais uma vez se desvencilhar de Almira que se mantinha determinada em sua ação.

– Fica quieta! Me obedece! – falou com mais secura enquanto arrancava a toalha que cobria o corpo de Alice usando (de forma precisa) aquele talher com pontas.

– Almira, para, por favor… – pediu Alice desesperada por estar vivendo algo que seus pais não aprovariam.

Almira, surda à voz de Alice mas atenta a outros sons, pegou os braços dela com firmeza depois de jogar o garfo longe, deitou aquelas peles murchas no sofá, sentou-se em cima de Alice sem pesar e foi com sua boca de forma suave direto aos mamilos de Alice.

– Para, Almira, para! – lutava Alice sabe deus contra o quê meu deus.

Almira era, em parte, bruta para poder domar Alice. Em outra, totalmente graciosa com sua língua que percorria os seus seios. Com uma mão, segurou firme as duas de Alice mantendo-as acima de sua cabeça. Com a outra, acariciou lugares onde Alice jamais tocara. Até que Almira percebeu que não mais precisaria usar força nenhuma e soltou Alice de cuja boca aberta reluzia o seu aparelho.

– Fica assim, Alice. – disse Almira enquanto abria-lhe as pernas e pegava um pedaço de chocolate fazendo um uso dele que, dessa vez, sentia diretamente o seu sabor misturado com a umidade que brotava de Alice.

Após aquela noite, outras tantas iguais ocorreram, mas com inúmeras variações (ah os paradoxos. Eles…) que poderiam ser descritas, a despeito de meus freios, caso eu não soubesse que todos conseguem muito bem imaginar.

Alice, no entanto, começou a ter pesadelos. Teve que iniciar terapia, visitava os pais com mais frequência pela necessidade vinda de um passado recheado de discursos onde a cultura patriarcal era passada como se fosse genética de família. Guiada pela culpa, afastava-se de Almira que tudo percebia e ria (como os margaridas) sabendo que Alice não a abandonaria porque por ela estava apaixonada.

Com todo o amor que lhe cabia, Almira conversava e tratava de desanuviar a visão de Alice quando ela voltava. E Alice entrava por aquela porta de várias formas diferentes. Por vezes, gritando, por outras, emburrada. Uma só vez, com os cabelos de uma cor que Almira sempre disse que não gostava (mas, amou em Alice). Inúmeras, sedenta.

Nunca na vida Almira teve tantos problemas sérios de convivência para enfrentar. Por ser segredo, não os dividia com ninguém em forma de reclamação. Todos no banco, porém, perceberam a leveza que irradiava de Almira em forma de felicidade.

 

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Esse texto foi inspirado em um homônimo de Clarice Lispector que dá um outro destino para o garfo.

Filho meu não recebe castigo.

cantinho

Todo ano, na hora de fazer a matrícula do Yuki, eu tenho que preencher um documento e entregar na secretaria: a famosa anamnese para que a escola conheça melhor quem a frequenta.

Lá pelas tantas, surge a pergunta:

“Qual é o castigo aplicado ao seu filho?”

Minha resposta: “Castigo? Castigo?! Castigo??? Nenhum oras. Yuki não foi e nunca será castigado por mim ou pelo pai.”

Hoje, entendo a minha relação com meus filhos de uma forma muito diferente. Se eu tiver que usar a minha autoridade como mãe, foi porque falhei naquilo que considero “educação”. A experiência com Hideo e Nara me mostrou que quanto mais eu dependia de castigos para me fazer ouvir por eles, menos influência real eu tinha nas suas vidas.

Perguntei-me N vezes como essa tortura para ambos os lados (porque o castigo é uma experiência sofrida para todos) poderia ser algo positivo lá na frente para nós. Não falta senso comum para explicar essa: dizem que o castigo “deve facilitar à criança o caminho da honradez, da obediência, da aplicação, etc.”, Deus me livre…

Não quero que filho nenhum me obedeça. Não me sinto apta a comandar a minha vida quanto mais a dos meus filhos. Se eles tiverem que me obedecer é porque, de alguma forma, assim penso, eles foram podados ou castrados por mim e devem agir de acordo com os meus interesses. Eu passo ser autoridade se tiver que impor a minha vontade e fujo disso já que abomino qualquer tipo de autoritarismo. Filho meu não “tem que” me respeitar e muito menos me obedecer.

Quero que meus filhos tenham luz própria e não sejam sombras de outras pessoas muito menos de mim. Quero que eles sejam eles mesmos, reconheçam as suas vontades e tenham em mim um apoio para conseguir segui-las. As decisões são deles. “Mãe, posso…?” sempre busquei trocar por “Mãe, quero…”. Eu apenas pondero alguma coisa que acho relevante observar, mas as rédeas estão com eles. Quer matar aula, mata. Quer fumar, fuma. Quer fazer teatro, faça. Quer vender arte na praia, venda. Peço, porém, para saber, ao máximo e dentro do possível, tudo o que eles desejam e, assim, um diálogo sempre é desfrutado, não raro, de forma intensa, verdadeira, sem medos.

Yuki outro dia, a despeito de termos conversado, jogou videogame por várias horas seguidas perdendo o controle do tempo que, conforme concluímos em outra conversa, seria bom e saudável para ele. Poderia castigá-lo por ter me “desobedecido”, ou melhor, não seguido nosso acordo. Achei, no entanto, melhor propor um dia sem jogos eletrônicos e ver como a mente dele e o corpo reagiriam. Aproveitei e investi tudo para que ele tivesse a melhor experiência sensorial possível. Ao final, conversamos mais uma vez muito sobre tudo e ele mesmo pediu para que eu avisasse quando ele “esquecesse o tempo” em frente ao computador.

Eu não estou aqui para vigiá-lo. Não quero que ele tenha medo de mim. Quero ser para ele, barco à deriva como todos somos, sempre o seu porto seguro.

Esse foi apenas um exemplo. Yuki, como sabem, como toda criança, é uma fonte de aprendizado e ensinamento para qualquer um que converse com ele.

Não consigo me ver castigando minha criança. Vejo meus filhos como seres que precisam ser ajudados como eu mesma peço para que me ajudem a resolver N questões pessoais. Não consigo mais vê-los como seres que precisam ser domesticados.

Não podo a asa de ninguém, pelo contrário, aqui eu só encorajo o voo. Não quero que eles andem no trilho, quero que eles percebam sempre que podem ir para qualquer lugar – como um trem descarrilado – com o meu apoio.

Então, eu acho que pelo fato de permitir que eles sigam as suas próprias vontades e de criar um ambiente de condições favoráveis e saudáveis para que isso ocorra, acabo conquistando o tal do respeito sem, contudo, ser autoritária e, muito menos, fazer deles seres obedientes. Penso que o dia que meus filhos se comportarem bem por medo e não por vontade própria eu terei falhado como educadora.

Então, senhores pedagogos, psicólogos, orientadores dessa escola, saiba que filho meu não recebe castigo e, me digam vocês, depois de conviver com Yuki e observar o seu comportamento, se não é hora de rever o sentido dessa pergunta.