“Foi só uma piada.”

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Sou deficiente auditiva. Uso próteses há cinco anos, quer dizer, tenho próteses e uso quando é extremamente necessário. Meus alunos sabem disso e quando perguntam algo já impostam melhor a voz para que eu possa ouvir. Entrar em uma sala de aula com próteses é ter um helicóptero morando na cabeça. Quando todos falam, situação estimulada até em minhas aulas pelos debates que proponho, com meus ouvidos artificiais, entro em desespero.

Quem convive comigo já sabe que não adianta falar de costas, cochichando ou baixinho… preciso da leitura labial se estou sem as próteses. Não é necessário gritar. Aliás, quando gritam para que eu entenda, além de vergonha sinto uma tristeza profunda. Eu não tenho culpa em ter um problema degenerativo onde não há nada que se possa fazer para revertê-lo. Queria eu ter meus ouvidos naturais de volta porque as próteses passam longe de ter o mesmo efeito. Tudo fica microfonado e esquisito. E olha que as minhas são bem moderninhas.

Não é sem motivo que o deficiente auditivo é, de todos os deficientes, o que mais sofre de depressão. O convívio passa a ficar cada vez mais difícil porque ele irrita o interlocutor quando pede para repetir uma fala. Sabendo disso, ou finge que ouve ou se isola mesmo – o que é mais comum.

Piadas fazem parte do meu dia a dia. Até mesmo entre “amigos” já presenciei muita gente rindo de mim. Com esses, não convivo mais e não deve ser por outro motivo que tenho preferido ficar entre meus livros.

Pois então, ontem fui a um show de comédia. Comprei ingressos com meses de antecedência. Fã do grupo de carteirinha. Saí de Madureira para Copacabana num frio que deus me livre. Feliz por saber que ia rir e me distrair.

Mal o primeiro integrante do grupo entra no palco, piada sobre qual tema que ouço com as minhas próteses? De deficientes auditivos.

A plateia toda se esbaldou de dar risada. Eu olhava para os lados, para trás, para a frente sem acreditar que estavam rindo de algo que é o meu inferno e que causa a depressão e o isolamento de N pessoas. E não pensem que são somente os idosos. A deficiência auditiva é muito comum entre jovens também. Poucos são os que assumem por vergonha. Raros os que usam próteses porque é caro essa meleca.

Daí, pensei em escrever. Mas escrever o quê? Pedir para não fazerem mais piadas com deficientes só porque eu fui a única que fiquei arrasada naquela plateia lotada e quis sair correndo dali?

Fiquei, para variar, a refletir.

Piadas preconceituosas contra negros, mulheres, gays são engraçadas? Eu já ri de muitas delas. Hoje, não consigo. Me ofendo. Reclamo. Sou a chata integrante da patrulha do politicamente correto.

O que é ser engraçado e o que é ser um humorista, afinal? Por que piadas que diminuem o outro provocam o riso? Quem ri é cúmplice? O humorista apenas expressa os valores presentes na sociedade? O comediante deve dialogar necessariamente com o preconceito? Há formas de fazer isso chamando a plateia para refletir sobre o quanto o preconceito é nocivo e não reforçando estereótipos? E, se já sabendo de antemão que preconceitos e estereótipos estão presentes no perfil da plateia, falar o que a maioria quer ouvir isenta o humorista de responsabilidade social já que a graça está na cabeça de quem ri?

Não se trata de proibir nenhum tema. A questão é a forma que assume o discurso. O comediante não é neutro, ele precisa saber de que lado está. As piadas podem, inclusive, levar a pensar sobre as minorias, o racismo, o sexismo, as nossas deficiências… Ou não?

O humor pode ser usado para resgatar uma pessoa da dor ou da repressão ou só funciona se ofender?

Seria eu a patrulha e estou me esquecendo que há liberdade de expressão? Mas liberdade de expressão não significa eu poder reclamar de uma piada que considerei ofensiva? Ou liberdade de expressão significa ofender quem quiser e não poder ser criticado por isso?

Sou contra qualquer lei que regule o discurso e o pensamento. Mas entendo que liberdade de expressão dá a cada cidadão o direito de falar o que quiser, mas também o dever de responder por suas atitudes. E grazadeus que essa tal liberdade existe porque é através dela que identifico os verdadeiros idiotas em nossa sociedade.

Longe de ser o caso do grupo de comédia que fui ver ontem. Ao longo do espetáculo, outras piadas surgiram. Nada que se assemelhasse a malfadada sobre deficientes auditivos. Amém. Piadas muito mais criativas e inteligentes que em nada remetiam a nenhum tipo de preconceito, diga-se de passagem, foram o forte da noite. O saldo foi positivo.

Fico só me perguntando se pelo fato de eu ter sido a única a ter ficado arrasada quando ouvi a tal “piada” logo de início, tudo isso que falei pode ser enquadrado no famoso mimimi e devo aceitar o velho argumento: “foi só uma brincadeira”.

(Mas brincadeira não é quando todos se divertem? Se um se sente ofendido ainda assim é brincadeira? Não teria outro nome nesse caso?)

Ou… se eu falando o quanto sofri e o quanto são nocivas para mim essas piadas, isso pode ajudar a outras pessoas a refletirem sobre a graça de proposições que zombam de uma deficiência e, quem sabe, entender que falar em inclusão perpassa toda essa discussão.

Sei lá. Apenas pensando aqui…

 

5 comentários em ““Foi só uma piada.”

  1. Oi. Fazer rir é uma arte, poucos conseguem na dramaturgia. No nosso momento contemporâneo, se faz rir a custa do preconceito, da pobreza de quem fala é de quem ri.
    Você não está só, ou pelo menos penso que não estamos sós, mas o negócio é brabo.

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  2. Oi Elika.
    Li seu texto e ele me remeteu a uma coisa que eu sempre falo para muitos e poucos entendem: liberdade não é um direito absoluto! Como todo direito, ele pressupõe deveres e se você não cumpre esses deveres, o direito pode ser “cortado”… Sou totalmente a favor da liberdade de expressão sim, mas falta a muitos (em especial a muitos “comediantes” famozinhos porraí – não preciso citar nomes) o senso de que a liberdade de expressão pressupõe responsabilidade sobre aquilo que se expressa! Se o expressado for uma ofensa, quem expressou deve responder por isso de alguma forma.
    O politicamente correto está tornando muitas relações muito chatas sim, mas há certas coisas que são sim ofensivas e devem ser no mínimo discutidas!
    Grande abraço!

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  3. Oi, Elika! Você não é a única, tamu junto! ❤ E expor o que te afeta faz parte da convivência e da melhoria do ambiente em que vivemos. ❤ ❤ ❤

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  4. Elika, faço do seu texto uma oração pra mim, pois sou palhaço, e entre outras coisas visito hospitais, visito dores e sofrimentos… Peço a Deus levar humor respeitando essas leis da Graça, cuja primeira diz: “nunca ria se absolutamente todos não estiverem rindo.” (criei agora, graças a vc)
    Bj e muuuuita graça pra vc!

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