“Eu te amo, Elika”.

Alucinação

Lembro-me de que já não acreditava mais no amor. Não falo amor entre os seres humanos, mas no amor romantizado dos filmes. Depois de 25 anos com a mesma pessoa e de um casamento muito feliz com 19 bodas, alguns anos separada, um flerte forte com a depressão e de recentemente ter experimentado um breve relacionamento calmo, verde, altruísta em sua essência por não querer e muito menos exigir exclusividade nenhuma, achei que tivesse, enfim, evoluído – o amor é uma construção social e eu não cairei mais nessa.

Quando conheci Pipo estava, como dizem, inteira. Naquele dia, saí de casa, porém, com a clara e estranha sensação de que ia conhecer um grande amigo. O convite para nos encontrarmos partiu dele, muito tempo depois de eu tê-lo pedido em casamento em uma primeira troca de mensagens pelo twitter, mas isso já é uma outra história. O que me traz aqui nessa página em branco desse editor de textos é a vontade de tentar me recordar do que senti ao ouvir dele, pela primeira vez, que eu estava sendo amada depois de ter me desapegado por completo dessa ideia maluca.

Tenho a mania de dizer que as experiências dos outros não servem para mim de nada. Por tabela, as coisas que eu vivi não deveriam significar e nem serem usadas como exemplo para ninguém. O que foi bom para mim, pode ser horrível para você. Por isso, não suporto ouvir casos pessoais quando estou passando por problemas e evito falar qualquer coisa de mim para dar suporte à conduta de um filho, por exemplo. O passado de um terceiro jamais vai se repetir tal como aconteceu e não temos garantia de nada, portanto, não me serve como uma variável para eu colocar na  equação que vai resolver a minha questão ou me fazer ponderar sobre os próximos passos a serem dados por mim.

O que não contava era descobrir que o meu próprio pretérito completamente imperfeito também não poderia me servir como guia. Se assim fizesse, hoje, não experimentaria uma das coisas mais indescritíveis que insisto, paradoxalmente, em usar palavras para descrevê-la.

Muita gente diz que escrevo muito sobre mim mesma. Não ouço isso como critica, entendo até como uma certa admiração, pois sei o quanto é difícil ficar nua perante uma multidão. Escrever sobre o que penso não é, de fato, um exercício simples. Mas não escrever é algo, para mim, inalcançável.

Iludem-se, porém, aqueles que pensam que sabem muito ou tudo sobre a minha vida. Narrar minhas histórias é a melhor forma de me tornar uma completa desconhecida.

Vamos ao momento:

Até pouco tempo antes de conhecer Pipo, eu andava com um papo para lá de furado de que não precisamos dar nome para as coisas. Para que dizer “eu te amo”, por exemplo? As palavras nos escravizam, eu proferia outrora. Para que dizer que “estamos namorando” se não para dar uma satisfação para a sociedade? Questionava me sentindo uma monge budista.

Qual o quê.

A primeira vez que o trouxe para a minha casa, que foi um pouco depois de termos nos conhecido, na certeza do que estava sentindo era algo que beirava o assustador, avisei-lhe que o amava. Mas não assim diretamente. Fiz pior. Disse-lhe olhando fixamente para Pipo que ele não precisava me comunicar quando quisesse voltar. Era tudo extremamente recente em nossas vidas, eu sei. E se fosse refletir sobre todas as coisas que li e vivi, sequer aceitaria me encontrar com ele uma segunda vez. Falei, sublimando qualquer responsabilidade, que o lugar ao meu lado na cama era dele. E para sempre. Pois é. Desse jeito. Recordando disso agora nem eu acredito na ousadia do meu voar.

Nesse instante, já esperava, dentre tantas possibilidades, que ele catasse as roupas e saísse correndo daqui como muitos homens certamente fariam. Estava me lixando sobre o que Pipo pensaria a meu respeito e faria com essa informação. O tempo urge e é necessário falar o que se pensa quando estamos diante de uma certeza descomunal. Aceitei o risco como todo mundo que vive plenamente um segundo. Aceitei o risco não por uma escolha, pois sequer acredito em escolhas, mas por uma necessidade ontológica do meu ser. Meu instinto sempre precede a minha inteligência.

Pipo me olhava com os olhos arregalados com aquela pintinha que ele tem no canto do olho direito.

Após muitos beijinhos e carinhos sem ter fim, ele, no escuro, disse mais para ele do que para mim (assim pareceu-me): “Eu te amo, Elika”.

Eu, que já estava completamente drogada de tanta química diferente rolando em meu corpo e considerando o meu problema de audição, pensei que tivesse alucinado.

Levantei-me e disse secamente: vou beber água.

Desci enrolada na toalha. Cheguei à cozinha. Era de madrugada. Acendi a luz. Perguntei-me o que tinha vindo fazer na cozinha aquela hora. A toalha caiu. Não me importei, ainda que soubesse que a casa estava cheia de gente. Subi pelada. Entrei no quarto. Pipo estava no banheiro. Olhei para a minha cama vazia. Estava certa de que havia imaginado tudo e de que não havia ninguém ali comigo. Deu sede. Tornei a descer sem roupa nenhuma. Vi a toalha no chão da cozinha. Perguntei-me o que a minha toalha estava fazendo no meio da cozinha. Bebi muita água. Subi. Encontrei Pipo sentado com os olhos arregalados. Levei um susto por ele estar ali.

Será que havia eu escutado direito? Como poderia perguntar isso a ele? Você disse que me ama? E se ele dissesse não? Como lidar com isso? O que ele estava fazendo sentado na minha cama? Era ele? Meu amor?! Amor?! Um amor?!

Eram perguntas muito maiores do que eu e as respostas me levariam para um lugar que eu temia não querer e nem conseguir mais sair.

– Você está bem? Ele me perguntou já sabendo da resposta e sabe deus nosso senhor o que ele estava pensando. Porque convenhamos. Dizer eu te amo para alguém com tanto carinho e esse alguém ter a reação que eu tive deve desencadear uma série de devaneios suicidas.

Eu tenho vocação para amar. Não tive mais dúvidas disso assim que trocamos as primeiras mensagens. Por mais que tivesse repudiado a ideia e tentado me enganar para viver em paz, eu tenho sim vocação para amar. Mas vocação é diferente de ter jeito para a coisa. Fui chamada para o amor romântico – que jurava ser uma concepção social e inexistente na vida real -, mas não sabia como lidar com ele novamente.

– Pipo, não. Não sei o que aconteceu. Não sei se você está aqui ou estou sonhando.

– Vem cá, meu amor. Senta aqui e me conta tudo.

Não estava com dificuldade em me expressar e sim de conceber essa nova realidade. Refiro-me à realidade que vem da plena consciência de ser realmente incapaz de entender qualquer coisa. Nossa senhora gente que até eu me assustei com o quanto não estava acreditando. A burrice consciente tem a enorme vantagem de ser libertadora e, com toda as limitações que ela impõe à vida, faz-nos ganhar muito tempo.

Nem seis meses que nos conhecemos, sequer vivemos uma primavera juntos e cá estou eu presa numa tela de cinema. Inconformada com a distância, e inquieta de tanta saudade. Completamente fora da minha zona de conforto, esse local que se morre em vida.

O que é grande, por ser grande, desconcerta mesmo. E não sou dessas de me conformar com a mediocridade de existir.

5 comentários em ““Eu te amo, Elika”.

  1. Pelo que entendi, você estava no cinema sozinha. Isso quer dizer que não rolou? Fiquei curioso com esse final em aberto.

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