Prazer, meu nome é Elika Takimoto e não faço ideia de quem eu seja.

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Por Sergio Ricciuto Conte especialmente para ser tatuado em mim.

Fico sempre incomodada quando sou apresentada a alguém que quer saber mais sobre mim e a pessoa pergunta o que eu faço. Posso responder da forma mais completa possível dizendo que sou professora de física do Cefet, separada depois de 20 anos de casamento, mãe de três criaturas doidas, que gosto de escrever e que sou moradora do subúrbio carioca, viciada em ler, que recolho lixos pelo caminho, que plantei duas jabuticabeiras e que amo o cheiro da dama da noite, que uso a mesma lapiseira e o mesmo perfume há mais de duas décadas, que virei vegetariana há dois anos e que não sinto a menor falta de comer carne, que falo todo santo dia com a minha mãe e que estou tremendamente apaixonada pelo Pipo, um rapaz lindo que conheci no Twitter. Posso acrescentar mais milhões de detalhes e dados reais da minha vida prática, dissecar-me de forma minuciosa nesta tal de realidade concreta. Ainda assim, a pessoa nem de longe vai ter ideia de quem eu seja.

Cometemos esse equívoco quando queremos conhecer alguém. Procuramos saber o que a pessoa “faz da vida” e com isso criamos a ilusão de que sabemos como ela se comporta. Ledo engano. Somos uma fonte inesgotável de possibilidades e nem a nós mesmos somos acessíveis ou previsíveis em muitos níveis. Não temos noção de como reagiremos a um assalto, por exemplo. A primeira vez que dormi sozinha em um hotel, na verdade, não dormi. Já era mãe de três, tinha mais de 30 anos, ateia por parte de pai, cética até o último fio de cabelo, mas fui tomada por um medo que não sei de onde veio. Chorei em posição fetal rodeada de fantasmas.

Quando engravidei do Hideo, meu primeiro filho, tinha 19 anos. Minha mãe foi freira e nos educou segundo os dogmas da Igreja sendo um deles a virgindade antes do casamento. Naquela época, praticamente fui obrigada a casar com o pai, um rapaz que conheci na faculdade e pelo qual não estava nem um pouco apaixonada. Para piorar, comunicaram-me que eu, para entrar para a família, teria que colocar o sobrenome de todos que moravam naquela casa. Sem muita opção, aceitei. Chegamos a ir no cartório e os documentos começaram a correr para que o casamento se consumasse no civil. Isso demorou alguns dias e lembro-me de como os vivi. Ter meu nome modificado em vida gerou, sem que eu esperasse, um sentimento, assim supus, pior do que minha sentença de morte (ou era a própria encarnada em papel). Estava inconformada em, literalmente, perder a minha identidade. Pedi a minha mãe que, a despeito de toda a vergonha que ela estava sentindo por minha causa, se eu morresse antes dela que, na minha lápide, escrevessem somente: Elika Takimoto porque assim nasci e desse jeito morreria. Pensava em suicídio não pelo fato de estar grávida mas por estar refém de uma sociedade. Não tinha para onde correr e fui ao inferno pedir ao Diabo forças e asas já que Deus havia me empurrado para o precipício.

Não casei. Amém. Mas com três meses de gravidez tive um diagnóstico de toxoplasmose e fui comunicada de que teria que interromper a gravidez com urgência já que corria um alto risco de ficar cega e que o bebê, se nascesse, viria todo deformado. Muitos para os quais eu contei essa história na época disseram-me que essa era a melhor notícia que eu poderia receber já que um aborto resolveria todos os meus problemas e evitaria mais infinitos outros. Desde a primeira vez que ouvi o risco que correria, jamais, em hipótese alguma, pensei em interromper a vida que se formava dentro de mim. Não estou aqui romantizando a maternidade e muito menos julgando quem agiria de maneira diferente de mim. Apenas quero dizer que fui acometida por um sentimento estranho totalmente avesso ao instinto da autopreservação. Não senti a menor dose de medo e nem por um segundo tive dúvidas. Iria até o fim dos meus dias com seja lá o que fosse que estivesse crescendo em mim. Não se tratava de religião e sim de algo muito maior do que isso. Nessa altura, já havia trocado de mal com Deus e pouco me lixava com o Seu julgamento.

Desde que me casei, tentei fazer do meu entorno o melhor lugar para o meu (ex) marido estar. Sonhava em ter uma casa tal como nas novelas, a dizer, um casal, filhos, cachorro e todos convivendo de forma harmoniosa. E tive tudo isso até que uma vontade louca de estudar me acometeu. Logo depois, a de escrever tomou conta do resto. Comecei a me isolar cada vez mais, a viver outras realidades que não são apresentadas nos filmes de comédia romântica. Um sentimento de culpa competia com o de libertação. Comecei a fazer terapia na grande ilusão de que teria uma resposta para as perguntas: quem sou eu? O que quero a vida? Não estava, mesmo dentro do que sempre havia desejado, encontrando-me com a tal da felicidade e muito menos conseguindo assimilar algo sobre o mundo, pois, não havia absolutamente nada de errado, nada que justificasse eu ter me tornado tão insuportavelmente inquieta. Estava me apurando invisível, noturna, pteridófita.

Esses e mais tantos outros momentos nos quais peguei-me surpresa comigo mesma fizeram-me perceber que ninguém se conhece e muito menos é capaz de se definir plenamente porque somos, ao fim e ao cabo, obrigados a conviver com o que inesperadamente emerge da gente quando submetidos as mais diversas experiências e provocações. Se você não é um estranho para si próprio é porque está vivendo, penso eu, há muito tempo na zona de conforto, esse lugar que se morre em vida.

Entendi que o que efetivamente conta para explicarmos quem somos não são as coisas que fazemos. Mas, sobretudo, como vamos reagir quando estivermos de frente a inúmeras experiências. Ou seja, somos tão inatingíveis e inexplicáveis quanto todo o resto do Universo, nossos pensamentos ou uma pedra.

Prazer, meu nome é Elika Takimoto e não faço ideia de quem eu seja.

4 comentários em “Prazer, meu nome é Elika Takimoto e não faço ideia de quem eu seja.

  1. Elika, penso nisso sempre que preciso me apresentar dizendo o que faço também!
    Você já leu Um, Nenhum e Cem Mil, de Luigi Pirandello? Eu tô com esse livro na cabeça há meses, porque ele fala exatamente disso, de como podemos, ao mesmo tempo, ser tantos e, na verdade, ser nenhum.
    Lendo seu texto, lembrei – e muito – desse livro!
    E que a gente continue sem ter a menor ideia de quem “a gente realmente é”, né? Muito mais legal do que dizer que o que fazemos pode, de alguma forma, nos definir. Bobagem.
    =)

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  2. Agora entendi porque quando meu filho de três anos aborda alguém na rua perguntando quem é você a resposta varia…
    Na média, um responde que é o caixa do mercado, outro responde perguntando quem é vc, um ignora a pergunta e somente um responde o nome, que era o que queria saber… Mas duvido que sejam com essa profundidade de pensamentos por uma simples pergunta de criança…

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