Pipo, eu não confio em você!

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Amo Pipo e, por amá-lo, jamais falaria para ele: “eu confio em você”. Penso que essa é uma das frases mais egoístas e ingênuas que uma pessoa pode proferir para a outra pela qual se diz apaixonada.

Para que entendam o que quero dizer, preciso antes explicar que tenho ojeriza a ideia de que “somos resultado daquilo que escolhemos”. Há várias frases como essas compartilhadas ou ditas diariamente por alguém. A despeito de isso parecer algo óbvio e até sábio, esse papo motivacional, a meu ver, é uma grande ilusão. Há grandes possibilidades de que as “nossas escolhas” não sejam exatamente nossas, mesmo quando temos total certeza de que as tenhamos tomado de forma consciente.

Nós, como seres humanos, gostamos muito dessa “ideia de liberdade”. Mas será que nós somos completamente autônomos como pensamos ser? No cotidiano, temos a faculdade de realizar ações que, em tese, poderíamos não realizar caso quiséssemos. O que defendo é que esta noção é muito mais complexa quanto parece e que pode ser tão real quanto uma miragem no deserto. Será que temos realmente a faculdade plena de escolher entre esse ou aquele caminho? Estamos inteiramente livres para escolher entre fazer ou não fazer certas coisas? Ouvir que somos livres para escolher isso ou aquilo sempre me incomodou profundamente porque jamais me senti livre e escolhendo nada. Nem profissão, nem marido, nem ter ou não filhos, nem a separação, nem amar novamente foram me dados como alternativas.

Pergunto-vos: Como fundamentar o livre arbítrio, a vontade que causa algo mas não é causada, numa mente inserida num mundo físico onde nada quebra a regra da causa e efeito? Será que a razão pela qual a intuição nos diz que temos um livre-arbítrio não seria porque a nossa mente altamente limitada não consegue identificar todos os fatores que afetam a nossa “escolha”?

Se acreditarmos nas ideias levantadas por Freud, veremos que não agimos de forma livre mas sim conforme nossos impulsos e desejos inconscientes, como se fossemos reféns do mesmos. Se um objeto lançado por nós tivesse consciência do seu movimento não poderia ele se julgar livre para perseverar nesse movimento na medida em que ignorasse por completo o impulso que demos a ele? Em que medida aquele que crê ser livre não é tal e qual uma pedra lançada ao vento que ignora a força que a impeliu?

Sentir pavor de insetos não me parece uma escolha. Sentir-me mal em um determinado ambiente não me parece uma escolha. Sentir-me atraída pelo Pipo não me parece uma escolha. Sentir saudade dele não me parece uma escolha. Sentir-me sozinha não me parece uma escolha. Sentir-me triste não me parece uma escolha. Sentir seja lá o que for não me parece uma escolha. Os hormônios aparecem e desaparecem sem que eu lhes dê ordens. Apenas sinto.

“O que, então, determina a minha vontade?”, perguntaria você. Eu não sei ao certo, mas se você acha que é você mesmo ou nada, perceba o quanto isso é incoerente: se é você que determina a vontade, isso significa pressupor um “você” de certa natureza que determina necessariamente a vontade. Dizer que “você” determinou sua vontade só faz algum sentido na defesa do livre arbítrio se “você” não é determinado por nada. Porém, o que seria algo que não é determinado por nada? Há sentido nisso?!

Somos o que somos porque, acredito eu, temos uma essência que não controlamos. Talvez, se houver liberdade de fato, esta deva ser compreendida como a proximidade máxima do conhecimento dessa nossa essência (que é ímpar para cada ser), do que nos torna tristes ou mais felizes.

Vocês que acham que existe liberdade de escolha perdem o tempo pensando que tudo poderia ter sido diferente e ficam se culpando por caminhos (que não existem de fato) que poderiam ter tomado. É para isso que o livre-arbítrio nos serve. Para condenar e nos culpar.

Mas, então, perguntaria você, se eu não posso escolher como posso ser julgado? Justamente. Estamos chegando ao tema de hoje. Eu acho que essa ideia de ‘escolha’ leva diretamente a outras como de julgamento e moral que eu não aceito como objetivas e universais.

Mas, continuaria você, se não há certo nem errado, matar, por exemplo, seria lícito? Se estou criticando a escolha, estou dizendo exatamente que quem mata não teve outra alternativa; o que não quer dizer que um assassino não deva ser condenado porque entendo que o ‘mal’ pode ser considerado como aquilo que prejudica o outro.

Perceba o que quero dizer: ainda que eu acredite que não exista o bem e o mal nesse mundo isso não significa que dispenso qualquer valor. Não existir o bem e o mal não quer dizer que não exista o bom e o ruim. Tenho meus valores. O ponto é que penso no ser em si, no que o movimenta, no que o engrandece e o diminui e dispenso um critério exterior e moral para julgar as coisas.

Refugiamo-nos naquilo que nos limita. Nossa moral nos protege, concordo. Mas quando eu nego essa ordem moral do mundo abro as portas para os devires: permito-me tornar o que sou e a aceitar o outro como ele é. Sem julgamentos.

Se entendo que agi mal em uma situação é pelo fato de ter feito uma coisa de uma determinada maneira e ter tido um resultado ruim. Neste caso, tentarei mudar, digamos, a química de meu corpo ou o meu modo de pensar para que eu seja capaz de agir de uma forma diferente quando submetida a uma situação similar.

Isso posto, vamos ao papo da confiança. Confiar é acreditar na probidade moral, na sinceridade afetiva que torna incompatível imaginar um deslize. É a crença de que algo não falhará porque é bem-feito ou forte o suficiente para cumprir sua função. É alimentar a expectativa sobre as futuras atitudes de outra pessoa e sentir-se calma e segura porque a ela vai agir conforme o prometido.

Como já falei, a metáfora dos caminhos que a vida oferece simbolizando nossas futuras escolhas é um grande desserviço. Não há caminhos. O futuro consiste de infinitos cenários possíveis e apenas um se tornará real conforme a solução de uma equação que tem inúmeras variáveis que fogem ao nosso controle.

Se eu disser “eu confio em você” reduzirei esse sistema complexo, matematicamente falando, a um mundo simplório onde apenas um futuro que está de acordo com a minha vontade ocorrerá. Quanta ingenuidade sobre a possibilidade disso, não?

Não faz sentido amar o Pipo e dizer que confio nele quando entendo que para isso tenho que traçar um plano para que ele, quem eu amo imensamente, aja de acordo com a minha moral e minha vontade. No mais, se fosse possível conhecê-lo em sua plenitude (nem a mim mesma conheço), ele seria previsível e para quê então eu precisaria “confiar”? Por outro ângulo, se eu não tenho o conhecimento total de tudo, resta-me o diabo da esperança de que ele agirá segundo minhas expectativas. Deus me livre.

A loucura é tanta que ainda há quem se irrite quando o outro não honra a confiança que alguém deposita nele. Quero distância desse hospício.

Gosto da ideia de que Pipo também não confia em mim porque me remete ao mundo em que existe coisas sobre as quais não temos acesso, ou seja, à realidade. Se formos adiante com os nossos caprichos a ponto de ter necessidade de dizer que confiamos um no outro, o mundo inteiro terá que se transformar para que as nossas vontades caibam nele.

Observem: o fato de dizer que não confio no Pipo não significa dizer que desconfio dele. “Não confiar” não é suspeitar e sim não alimentar a esperança de que ele ande de acordo com os muros que construo em sua volta. Hoje, a despeito de todas as porteiras estarem abertas, tenho certeza de que sou a sua prioridade e de que não há, digamos, motivos para eu me sentir insegura. Traída não me sentirei jamais, pois a traição existe somente para quem confia.

Moramos a mais de mil quilômetros de distância e, mesmo que quisesse, não conseguiria vigiá-lo. Incrivelmente, não estou preocupada com o que ele vai fazer da vida dele. A única coisa que peço é que Pipo me conte o que sente por mim e que seja sempre sincero.

Não sinto ciúmes a despeito de tanto amor. No que pese essa saudade infinita, não tenho a menor necessidade de controlá-lo a ponto de dizer-lhe: “Pipo, eu confio em você”.

Para finalizar (ainda que o tema não tenha se esgotado), percebo que não há o que eu sinto e o que Pipo sente. Há o que nós sentimos. Se eu deixar de ser a prioridade dele, Pipo não mais será quem ele é hoje para mim. Não escolhi sentir as coisas assim. Apenas aprendi rápido que coleira que prende cachorro só serve para ser usada no animal que quer fugir. E sinto que não estamos nesse mundo para mendigar carinho.

Como disse o poeta, se gosta de borboletas, não corra atrás delas. Cuida do jardim para que elas venham até você. Acrescento: não seja ingênuo em confiar que elas voam daquele jeitinho desajeitado por uma escolha delas.

4 comentários em “Pipo, eu não confio em você!

  1. Gostaria de comentar 2 questões diferentes:
    1) Tudo que vc descreveu sobre o imponderável e o incontrolável na realidade das pessoas e das coisas, levando à conclusão de que vc e Pipo não devem prestar confiança um ao outro, me lembrou uma reflexão de um psicólogo e psicanalista no YouTube da Casa do Saber. O vídeo é curto, mas muito interessante sobre esse aspecto: https://www.youtube.com/watch?v=7rRYPr9zDrg

    2) O q considerei um problema, mas vc pode desenvolver mais pq o ponto desse texto foi outro, é dizer q não há o q vc sente ou o q Pipo sente, mas sim o q ambos sentem em conjunto. Me incomodou pq essa é base da ilusão do amor romântico, o “nós”, como se os dois lados da moeda se fundissem. Esse “nós” na prática não existe. Enquanto vc sentir algo q corresponda (não necessariamente com exatidão, mas q promova encaixes) ao q o Pipo sente, tudo tende a funcionar. A relação desanda exatamente pq as pessoas q a compõem começam a sentir sensações/sentimentos q não se correspondem, por motivos os mais variados possíveis, nem sempre controláveis inclusive.

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