Ela. A anã. Eu. A pequena.

Eu vi uma anã andando no centro da cidade. Não era uma anã comum. Era tão pequena que jamais me dei ao trabalho de imaginá-la por supor a sua inexistência. Sabia que se contasse sobre sua metragem ninguém acreditaria em mim. Sua presença, entretanto, foi tão perturbadora que não consigo deixar de falar o quanto eu vi.

Ela entrou no prédio e observei que seus olhos ficavam na altura do joelho do guarda que a cumprimentou e levou-a até o elevador. Seus pés eram minúsculos e suas mãos menores que meu dedo mindinho.

Não sonhei. Não estou exagerando. Talvez seja uma das menores anãs do mundo.

O ponto é o que ocorria em mim minutos antes de eu ver essa anã.

Estava esperando uns amigos para o almoço. Não mexia no celular com medo de ser assaltada. Olhava o cosmos sem esforço porque me avisaram que chegariam em quinze minutos. Em uma das esquinas da Almirante Barroso eu era um ser livre que observava tudo, sem peso e sem compromisso. Respirava apenas por estar viva e à toa.

Não pensava no Brasil. Não pensava nas injustiças. Não pensava nos boletos. Não pensava nos filhos, na minha mãe, no meu pai e no Pipo. Estava satisfeita com o ar poluído que inspirava. Desfrutava a dádiva de ignorar o mundo e todo o meu amor por ele.

Isso era novo para mim. Apenas esperava sem ansiedade, sem ler notícia, sem esperança mas também sem desespero. Liberdade parece ser algo parecido com esse estado no qual me encontrava observando sei lá meu deus. Estava em silêncio como aqueles que sentem uma flor brotando em um rim. Era finalmente feliz a despeito da fome no universo. Levitava ao desconectar-me da Terra.

Foi quando ela, minúscula, apareceu.

Ela. Que não consegue pegar ônibus, que não consegue ir a um banheiro público, que não consegue beber água nem mesmo em bebedouros feitos para anões por ser uma anã entre os seus. Que não consegue abrir nenhuma porta. Que não alcança as janelas. Ela em um mundo que não foi feito para recebê-la. Andava sorrindo dando boa tarde para o porteiro.

Eu a reverenciei com meu amor solene e meu pré-conceito julgando-a infeliz por nascer numa sociedade inadequada. Sua alegria me confundia em muitos níveis e fiquei irritada por estar refletindo sobre o conceito de perfeição vendo intensamente uma anã anã.

Eu. Com sete graus de miopia. Eu. Deficiente auditiva. Eu. Cercada de moradores de rua. Eu. Plena de limites. Eu que não vou ao cinema sozinha. Eu que vivo isolada. Eu. Ateia duvidei novamente de Deus quando vi uma anã.

Porque o tamanho do que realmente somos se mede na interação com o outro. E a pequena ali era eu. Porque sempre fui de me indignar muito. Indignar-me é meu ato principal. E os mendigos que dividiam a calçada comigo não impediram que eu sentisse a liberdade plena. Porque foi a anã que me fez tornar íntima da realidade, ela que era tão vista por ser quase invisível. Porque me achei primorosa demais por não ser percebida.

Não era uma anã andando no centro da cidade e sim um ser humano perfeito caminhando alegremente em um mundo inapropriado.

 

 

 


Não consegui descobrir quem ilustrou a figura para dar os créditos.

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