Mudanças…

josé

Preciso lhes contar que me mudei no sentido físico e literal. Ou seja, mudei a mim mesma e de endereço. Não sei explicar como consegui. Mas quero tentar.

Há 45 anos morei em Madureira. Quando não na casa de minha mãe e do meu pai, ao lado deles. Ao ver vendendo um cafofo numa vila na mesma rua em que meus pais moram, tratei de comprá-lo quando me casei. Várias coisas me ocorreram, mas a verdade é que quis oferecer para meus filhos o que tive de melhor em minha vida: a convivência com meus pais.

Os três cresceram com a vovó ajudando nos estudos e nas pequisas chatéééérrimas que a escola sempre pede e com vovô levando-os para cima e para baixo. Todos meus filhos têm em meus pais uma referência. E eu sempre tive meus melhores amigos incentivando meus maiores vôos. Se fiz tudo o que fiz, foi porque, acima de qualquer coisa, sou uma privilegiada.  Bato no peito falando que fiz doutorado, mestrado, curso de italiano e tudo o mais sendo mãe de três. Mas nada seria possível se meu CEP não tivesse sido, por tanto tempo, igual ao dos meus pais.

O outro lado dessa história é que não havia um dia em que não reclamasse do trânsito, da distância e por ter perdido vários encontros e eventos – porque em Madureira não se brinca chegando sozinha de noite. Meu trabalho, reuniões politicas, livrarias e bibliotecas que frequento… infelizmente, nada estavam perto de mim.

O fim de um casamento de quase vinte anos me deu desespero. Nelson saiu de casa e tudo ali me fazia lembrar dele. A casa havia ficado vazia e, embora eu não me arrependesse da decisão, não estava encontrando em mim forças para manter o que havíamos deliberado. Rico quando passa por isso faz uma viagem, reforma no banheiro, compra móveis novos… meu dinheiro deu para trocar o estofado do sofá e comprar uma cortina para a sala. Eu que me virasse com tanto barulho na minha cabeça. Mais do que nunca, precisei dos meus pais. Era só eu e as crianças.

Estava cada vez mais distante a possibilidade de modificar meu endereço.

Aprendi a fazer a gestão de uma casa com muitos seres vivos circulando nela. Hideo tem amigos e, agora, a doce Sara. Nara tem Daniel e a Marie Curie, nossa vira-lata. Eu tenho a Lucimar que trabalha e mora comigo há mais de vinte anos e Yuki tem a Tina, a gata mais temperamental que já conheci.  Tornei-me a provedora e rainha desse castelo. A despeito de ter trabalhado duro para fazer de nossa casa o lugar preferido de todos eles e ter ficado bem feliz e satisfeita por conseguir isso com louvor, confesso, estava exausta com aquelas paredes, com o mesmo caminho, com engarrafamento, com o trem e, preciso admitir, estava desajeitada com tanta gente. Lia e escrevia cada vez menos – sintomas  graves de que eu não estava nada bem.

Mas era impossível qualquer outra configuração. Mãe é mãe e estamos aqui para carregar o mundo nas costas e anular nossos sonhos em prol da estabilidade emocional dos filhos e…

Quando vi, quatro anos se passaram. Nara de adolescente virou uma mocinha cheia de ideias que me surpreendem e achou Daniel. Hideo se formou e Yuki começou a ter cecê. Pipo apareceu na minha vida para me mostrar que tenho um mar de amor e um tesão infinito dentro de mim – coisas que cheguei a pensar não ser mais capaz de sentir.

(Estava a ponto de tomar hormônios sugeridos pelo médico. Que surpresa boa foi descobrir que não estava seca e sim deserta).

As exigências da minha vida – emocionais e financeiras – não permitiam que eu realizasse meu sonho de tantas mudanças. Estava presa na história em que havia escrito, nos quadros que havia pintado, nos retratos que havia tirado. Foi quando vivi uma experiência reveladora:

Estava eu no metrô lotado indo para o centro da cidade. Lembro-me de que queria pegar meu celular na bolsa e não tinha espaço para movimentar meus braços. Até que algo aconteceu e demos uma freada brusca. Teve gente que chegou a cair. Depois de um tempo, nos rearrumamos e o metrô desatou a andar. Surpreendentemente, aquela repentina desaceleração fez com que ficássemos muito mais confortáveis. Sobrou até espaço e consegui não só pegar o celular como também os fones de ouvido sem encostar em ninguém. Não mudou a quantidade de pessoas. Mas uma força inesperada – que a princípio assustou e causou gritaria – trouxe, logo após, a sensação de paz e aconchego. Olhei tudo ao redor e entendi o funcionamento do mundo e das minhas prisões.

Como disse, as exigências da minha vida não permitiam que eu realizasse meu sonho de mudanças. Depois que o metrô freou, resolvi modificar as exigências para tornar meu sonho possível.

Por que tenho que morar com todos eles para sempre? Por que esperar que todos fiquem independentes para eu ir embora? Desde quando eu sou independente de alguém? Onde está escrito que são os filhos que têm que sair de casa e não eu? Onde está escrito que eu sair de casa deixando dois adultos configura abandono? Onde está a garantia de que se eu morar na mesma casa que meus filhos o resto da vida eles não terão problemas de cabeça? Há pessoas que, por morar na mesma casa que o pai e a mãe, são equilibrados emocionalmente? Quem disse que meu dinheiro não vai dar? Que tipo de comodidade precisamos para viver?

Não queria mais ser a escrava da minha identidade. As raízes pediam outro solo. Sentia em mim uma necessidade de mudanças, estava inquieta, infeliz e decidi, não sem dor, partir. Sabia que Hideo não viria comigo, surpreendi com a Nara preferindo ficar para ter mais privacidade, Lucimar poderia ficar com eles ou na casa de minha mãe. Comigo, trouxe somente Yuki, minhas roupas e uma tonelada de livros. Deixei tudo para eles e continuo dando toda a assistência até que eles consigam tocar aquele castelo sozinhos. Pela primeira vez, pago aluguel. Tudo bem que estamos na mesma cidade e que tem gente que se muda para outro país, mas cada um sabe o tamanho do muro que construiu e o tipo de material usado nessa obra.

Nunca havia me mudado e não sabia como começar. “Não sei me mudar”, falei várias vezes desesperada para o Pipo com o coração espantado. Me assombro com minha insegurança e com o hábito de fazer as coisas morrendo de medo. Sou o que faço, mas sou, principalmente, o que sinto para fazer o que faço. Noites acordadas, dias com enxaqueca, estômago inquieto, pressão vacilante, olhar disperso. Orando sendo ateia. Não encarar a travessia – pelo fato do rio estar demasiado turbulento – seria uma violência com a minha vida. Eu precisava saber o que tinha na outra margem me esperando. Fosse o que fosse, cada braçada era possível porque não construí barreiras ao ver o nível da água subir. Fiz um moinho com meus braços.

Tudo de errado aconteceu. Como disse, não sei me mudar. Incrivelmente, da mesma maneria de quando terminei o casamento, ainda que o universo parecesse conspirar contra mim, estava, que deus me perdoe, cheia de culpa mas extremamente feliz. Acho que essa tal de felicidade tem a ver com a nossa capacidade de se adaptar em sobreviver a tudo de ruim. Fiquei num apartamento dormindo no chão, sem geladeira, com pias vazando e o chuveiro com defeito, cuidando do Yuki e dando assistência aos que ficaram na outra margem. Ainda assim, continuei nadando.

Pipo está comigo como pode. Ele vive pelo mundo e exatamente agora passará mais de dez dias em Brasília, onde sempre morou.

Para vocês terem ideia como as coisas estão comigo, comprei um armário baratinho na internet. Ontem ele chegou. Desmontado. Resolvi montar sozinha pensando em todo o empoderamento que recebi nessa vida (macho para quê?). Das 109 peças, dei a montagem por terminada deixando de usar mais da metade dos parafusos e de outras coisas que não sei o nome. Passei o dia inteiro montando esse móvel. As gavetas não correm, as portas não fecham e não entendi como colocam os puxadores. Nunca fiz nada tão torto na minha vida. Ele tem rodas mas, se empurrar, o móvel entorta mais ainda. Óbvio que chorei e encarei tudo como a metáfora do meu presente. E talvez seja. Está tudo imperfeito, tudo meio nhé. Mas o armário está no lugar certinho, feito para ele. Só uma questão de tempo para Pipo chegar e eu conseguir colocar algumas coisas dentro dele sem que ele venha ao chão. Estou falando do armário. Mas pode ser também do Pipo.

Enfim, estou morando no Largo do Machado. De meu apê, vejo as costas das estátua de José de Alencar sentado numa cadeira gigante.  Quando saio de casa, ouço a sua voz, ainda que a boca dele não esteja de frente para mim: “O sucesso nasce do querer, da determinação e persistência em se chegar a um objetivo. Mesmo não atingindo o alvo, quem busca e vence obstáculos, no mínimo fará coisas admiráveis”.

Estou longe de ter terminado a travessia e pode ser, pela quantidade de água que já bebi, que me afogue antes de terminar. Se me vir sorrindo por aí, saiba que é pelo risco que estou correndo, sem o qual nenhuma vida vale a pena.

9 comentários em “Mudanças…

  1. Parabéns Elika! Viver é isso … ter coragem para mudar o que é preciso e resignação para aceitar o que não é.. somos e estamos em constante movimento… o novo nos assusta no primeiro momento, mas com coragem e determinação… o céu é o limite! Te desejo sucesso! Um forte abraço da sua fã, Bárbara Louise

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  2. Ói, estamos pertinho agora. Sei como é isso, minha cara. Qdo optei por sair de Realengo e vir para a Glória, depois de quase meio século morando na zona oeste, bateu desespero tb. A vida meio que revira mesmo. Mas era o que eu precisava fazer. Coragem, minha querida!

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