Até breve, meu amigo.

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Ontem enterrei um amigo. Ricardo Santos, chamado carinhosamente por nós de Rico tinha a minha idade e muitos mais sonhos do que eu. Perdemos Rico para essa doença impiedosa que não escolhe casa. Quem nos dera se doçura nos tornasse imunes ao câncer. Rico estaria ainda aqui entre nós.

Cheguei no velório meio perdida tal como aqueles que perdem um amigo. Sabia que encontraria dores fortes e que aumentariam a cada abraço porque junto com o contato físico são potencializadas as boas lembranças, a saudade e a indignação com o propósito dessa dádiva que damos o nome de vida.

Rita e Léo enterraram um filho.

Preciso confessar. Eu estava com medo de abraçar Rita. Queria dar todo meu apoio mas quando um filho morre, todas as mães murcham. Não sabia se tinha estrutura para abraçar uma mãe em um velório. Sou ateia mas pedi a Deus perdão pela minha fraqueza.

Rita me viu com o olhar embaçado de tanta umidade. Somos amigas de anos e minha amizade precisava levar força para ela.

Mas cadê que eu a encontrava?

Como sou desajeitada com minha descrença…

Fiquei parada e ela veio até mim.

Eu chorava querendo ficar firme para passar calma para Rita. Só queria ser algo bom para ela e eu estava me perdendo.

Rita, então, serena, firme no olhar, me perguntou:

– Quer ver o Rico, minha filha?

Eu não sabia. Já fui a vários velórios mas nunca nem cheguei perto do caixão e também jamais vi alguém que eu tivesse amado sem vida. Balancei a cabeça esboçando um respeitoso não.

– Quero te mostrar meu filho. Rita me disse. Não precisa ter medo nem receio algum. Você precisa vê-lo. Não haverá problema. Vem comigo.

Pegou a minha mão e me levou até ele.

– Ele agora está em paz, calmo, sem dor. Assim quero que você olhe para ele. Não antes com meu filho sofrendo, gemendo e tendo alucinação. Não queria que você o visse daquele jeito porque ele não mereceu o sofrimento que teve. Era muito dolorido para nós que estávamos com Rico. Agora não – e acariciava o seu rosto – agora ele está bem. O que você está vendo é só uma casca. Ele não é só corpo e está livre da dor em boas mãos agora.

Uma paz foi se apossando de mim. Não que a dor diminuísse. Mas a mão da Rita, que sempre me transmitiu muita coisa boa, superou o Universo.

– Eu só tenho a agradecer por ele ter me escolhido para ser sua mãe. Foi uma honra todo o momento que passamos juntos. Só nos deu alegria e me fez um ser especial.

Eu tenho essa mania de não acreditar em nada e não dar espaço para as certezas que muitos pregam. Já visitei vários templos, já frequentei Igrejas, já fui a centros, conversei com padres, mestres, pastores e pais de santo.

Mas não fui imune a Rita.

Ali percebi que há algo maior do que o segredo do universo: o amor de uma mãe.

Havia dor, mas também havia alegria, honra, satisfação, orgulho e um cordão umbilical feito de um tempo que me pareceu muito mais do que 46 anos de história. Talvez um tempo que não se conte por sua natureza incomensurável. Mas era tempo.

É possível que eu tenha me equivocado até agora na minha percepção de tudo e a realidade seja uma parte daquilo que senti nos dois.

Não sei se devo me entregar à dúvida.

Mas talvez não sejamos só corpo.

Estou refletindo sobre isso porque já vi Rita acariciando Rico muitas vezes. Já vi vários abraços entre os dois. Mas ontem, percebi um enlace.

Não dormi. Acredito que a noite tenha sido difícil para muitas pessoas que conheceram e conviveram com o Rico.

Está sendo muito difícil lidar com tantas interrogações, medos, aprendizados e a sensação de que não estamos valorizando os segundos devidamente (tão comum a todas as pessoas que sobrevivem a essa dor da despedida).

Muito mais complicado, porém, para mim, é agora lidar com o que senti ali com a Rita segurando a minha mão enquanto acariava Rico cercado de flores: a presença de algo grandioso como a eternidade.

Não sei o que é isso exatamente. E não tenho pressa em descobrir. O fato de ter percebido já me basta por ora, pois ontem fui pronta para dizer adeus.

Na minha noite insone, enfim, sussurrei:

– Até breve, meu amigo.

4 comentários em “Até breve, meu amigo.

  1. Tenho um filho que é espírita, psicólogo e estudioso da Saúde Mental. Ele sempre me diz: “ o espírito é eterno, a vida apenas um momento nesta eternidade…” solidarizo-me com sua dor e a da mãe de Rico. Mães não deviam enterrar os filhos…

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  2. Minha mãe desencarnou a um ano, vítima do câncer. É muito doido, mas eu acredito que só morre a matéria, o espírito é eterno. Apesar de não frequentar nenhuma religião, porém acredito em um poder superior que é DEUS!

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  3. Elika, você sempre escreve coisas lindas, mas hoje, não sei explicar, transcendeu a tudo. Me sinto tocada, sentindo a sua dor e seu amor. Chorei muito e não me senti sozinha. Obrigada por compartilhar.
    Sinta-se abraçada, com todo o carinho de uma também mãe.

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