O que nos resta é o desabafo.

 

Houve uma reportagem que andou viralizando sobre a Livraria Cultura mostrando o quanto os empregados são coagidos pelo patrão. Quem leu ficou chocado. Gostaria de dizer hoje, 28 de Abril, no Dia da Educação, que isso é a realidade de muitas empresas e que escola particular, em muitos casos, funciona como tal.

Trago histórias pessoais já que leciono há 26 anos e trabalhei por mais de uma década em uma escola particular.

Com três anos de casa, fiquei grávida. Quando fui comunicar ao diretor, ouvi dele:

“Uma excelente maneira de acabar com uma excelente carreira é casando e tendo filhos. Você está acabando com a sua vida.”

Eu era muito nova mas havia entendido já muito coisa e, por isso, chorei. Não por acreditar naquela baboseira, mas por compreender o poder opressor do capital.

O diretor ela centralizador e arrumou uma maneira de descobrir quando errávamos na correção das provas, coisa absolutamente comum entre nós, professores e professoras, que corrigimos centenas de prova mensalmente. Erramos em contagem, em critério de correção, em não ter visto a resposta que o aluno colocou bem no canto da questão e por aí vai. Entregávamos a pauta com o nome e as notas dos alunos para o diretor antes de entregarmos as provas corrigidas para a turma.

Cada vez que um aluno vinha reclamar da correção e mudávamos o conceito dado, tínhamos que preencher um documento para que a nota fosse alternada “no sistema”.

Isso gerou um acúmulo de papel na mesa do diretor.

Na hora do recreio, enquanto conversávamos e lanchávamos na sala dos professores, o diretor entrou e jogou todos aqueles papéis com alteração de nota na mesa e começou a nos xingar de incompetentes para baixo.

Quando um professor foi falar que aquilo era normal dado nossa carga de trabalho, ele ouviu que “normal é o professor ser pago para trabalhar direito” e que se ele continuasse se equivocando na correção das provas que fosse ser “normal” em outro lugar.

Nunca tinha visto aquilo na vida. Uma humilhação sem tamanho. Teve professor que deixou o lanche pela metade não porque a fome tinha passado mas porque a tristeza tem dessas coisas de fazer com que abandonemos o que nos alimenta.

Um dia eu estava passando mal.

Muito mal.

Dor de cabeça e tonta pela manhã.

Encontrei o diretor no corredor e disse a ele que não estava bem. Pedi para ser liberada das aulas da tarde porque não estava conseguindo ficar em pé direito. Ele me disse que eu havia avisado em cima da hora e que não teria ninguém para me substituir. Ofereceu o sofá em sua sala com ar condicionado para eu deitar um pouco numa “janelinha” que tinha no final da manhã. Mesmo tímida, eu aceitei.

Apaguei no sofá.

A secretária veio me acordar às 13h para eu dar aula. Trabalhei a tarde toda. Cheguei em casa, minha mãe estava com meus filhos. Olhou para mim e se assustou.

Eu estava com 39,5 de febre.

Mas o pior não foi isso. Lembro-me que fomos convocados para uma reunião. Todos nós tínhamos carteira assinada e a reunião era para nos oferecer uma proposta: que déssemos baixa na nossa carteira e que a quantia paga de encargos trabalhistas seria acrescentada no nosso salário. Tudo bem que não teríamos mais o décimo terceiro, o diretor explicou. Mas se juntarmos o que ganharíamos de “aumento”, daria até mais no final. Havia professores que tinham um plano de carreira ali dentro. Os mais antigos ganhavam mais por isso.

Ele disse que essa “vantagem” seria mantida.

Muitos acreditaram e a festa do caixa dois aconteceu de comum acordo entre vários colegas e a direção. Era “opcional”, mas a pressão foi tanta que dava para contar nos dedos de uma mão quantos resistiram.

Conclusão: com o tempo, vários professores foram demitidos e outros tiveram o salário reduzido já que ganhamos em cima de tempo de aula dado e as turmas a nós oferecidas foram sendo dadas para professores mais novos “sem plano de carreira”. Na época, eu não tinha nem 30 anos mas havia professor que tinha quase isso de casa e foi substituído por um outro “mais barato”.

Quando resolvi fazer mestrado, fui avisar ao diretor que precisava reduzir a minha carga para estudar. Ele riu. Disse que eu não ganharia mais nada por isso na escola dele e que a hora que eu abrisse mão das minhas turmas teria uma fila de professores para pegar o meu lugar. E que, no dia que eu quisesse voltar, ele não poderia me garantir que eu teria as minhas turmas de volta.

Eu disse ok.

E ele ficou puto comigo e me xingou de burra. Perguntou como eu sendo professora de Física não sabia fazer conta. Era a época da crise. Lula estava na televisão dizendo que o Brasil não iria ser atingido. Lembro desse fato porque ele o citou:

“Você acredita no que esse presidente está falando? O desemprego vai chegar aqui sim e você abrindo mão de dinheiro?! Pensa bem, dona Elika!”.

Pensei.

E resolvi estudar.

No meio do mestrado, engravidei do Yuki, meu terceiro filho. Fui lá avisar ao diretor (havia 8 anos que ele havia me falado que a minha carreira iria acabar porque eu estava grávida).

Eu já era outra pessoa. Cheguei avisando e perguntando se ele ainda achava que isso significava meu fim. Ele não se lembrava de nada. Expliquei a ele que o cavalo que dá o coice não sente dor nenhuma mesmo.

Ao final do mestrado, abriu concurso para o CEFET. Fiz. Passei. Uma vaga só. Era minha, pensei. Eu quero ser professora de uma escola pública federal. Estava focada. Já tinha duas matrículas no Estado mas não estava feliz com as condições de trabalho também na rede estadual. Eu quero ter liberdade de lecionar. Quero ser tratada com dignidade e respeitada pelo que aprendi e ainda quero aprender na troca com meus alunos feita da maneira que eu achar mais bacana.

No dia em que fui pedir demissão, eu me arrumei. Mas não para sair de casa. Me arrumei como se fosse receber o Oscar. Não fui com roupa de gala.

Eu era a gala.

Fui de cara limpa. Sem maquiagem alguma como nesta foto e ainda assim estava reluzente como aqueles que não carregam saudade.

A fartura de alegria em forma de educadora deste país entrou sorrindo naquela sala em que tantas vezes fui humilhada.

“Estou com três filhos, sou mestre e, agora, professora do CEFET. Ganharei muito mais que ganho aqui e terei tempo livre para estudar e preparar as aulas que tanto sonhei. Pretendo escrever vários livros e já tenho um projeto delineado para meu doutorado”.

Assim foi feito.

Hoje sou doutora, tenho 12 livros escritos. Sete publicados e um deles foi vencedor do Prêmio Saraiva Literatura.

O diretor faleceu já tem algum tempo. Assumiu a direção outra pessoa muito pior. Conversei com colegas de lá outro dia (ficaram naquela bosta até hoje). Estão procurando bicos para complementar o salário e me contaram mais outros casos horríveis de humilhação. Eles têm que trabalhar de jaleco e as salas de aula todas têm câmeras. Não há cadeira para o professor sentar.

Há escolas particulares boas? Sim. Há. Mas são raríssimas e para poucos.

Hoje, com a experiência que tive e dos relatos que ouço, afirmo com convicção que a educação pela qual devemos lutar é a pública. Educação jamais pode ser fonte de lucro para ninguém. Não faz sentido, em essência.

Quem acredita em bondade do empregador deveria ser abraçado com muito carinho pois trata-se de uma criança num corpo de adulto. A ingenuidade faz com que muitas crianças indo atrás de uma bala caiam na mão de estupradores.

Sei que existem mais milhões de histórias parecidas com essas que contei seja de outros colegas professores ou de engenheiros, psicólogos, vendedores…

Se quiserem, podem compartilhar nos comentários.

O que nos resta é o desabafo. Obrigada por ler até aqui.

 

Sobre as endrôminas que tanto faltam nos meus versos.

img_20171114_220902_228965368851.jpg

Estávamos, em Brasília, deitados enroscados um no outro como sempre fizemos desde o dia que nos conhecemos. Pipo é o único lugar em que me esqueço de todas as mazelas do mundo.

– Você é a minha paz, falei.

Ele sempre retribui falando coisas como “nunca tive isso na minha vida” que me fazem sentir a presidenta do Brasil.

(Isso é uma forma de dizer, é claro. Quero deixar claro que nunca pensei na Dilma quando estou pelada com o Pipo. Não que eu não goste da Dilma. Bem… vocês me entenderam… Foco na história.)

– Eu quero ver você feliz sempre, meu amor. Minha vida é fazer você feliz, disse toda pteridófita como dizem os poetas que sofrem de hipérboles.

Continuei falando olhando para ele bem pertinho enquanto acariciava seu rosto lindo:

– Quero te ver sorrindo sempre quando estivermos perto e long..

Daí, me lembrei que voltaria para o Rio logo depois e que não saberia quando nos veríamos novamente.

– Quando estivermos longe, meu amor, eu quero que você…

Percebi que não podia mais parar. Havia começado e tinha que terminar a frase. Prometemos um para o outro nunca mentir… Meus neurônios estavam dando um twist carpado no modus rewind acelerado.

Agora já era termina essa frase que quero ver se você é louca o suficiente para falar isso na fuça dele mas você não pode jamais deixar de falar o que pensa caceta custava ter calado a boca antes quero ver você sair dessa rua sem saída. – Pensei assim num átimo de milissegundos porque quando pensamos não usamos vírgula mesmo.

– Quando eu estiver longe de você, meu amor…

E ele ali me olhando com os olhinhos brilhando.

– …eu quero que você sofra, mas sofra muito. Quero você chorando em posição fetal com saudade de mim. – falei sem deixar de fazer carinho.

Dito isso, achei tudo muito engraçado e ri alto com os olhos esbugalhados como sempre faço.

Pipo continuava me olhando. Mas percebi que o amor da minha vida estava agora sem piscar engolindo a seco.

Ele falou algo que não ouvi porque eu estava gargalhando com a boca aberta.

Depois, só lembro que ele demorou para apagar a luz. Dormi com ele me abraçando muito forte segurando meus braços com a mesma firmeza que um policial coloca algemas num infrator. Fofo fofo fofo.

Espero que ele esteja sofrendo de verdade sem sequer dormir direito porque se não for para desgraçar a cabeça de tanta saudade nem quero viver ao lado dele para o resto da minha vida.

Benditas sejam as endrôminas que tanto faltam nos meus versos.

Ah, gente…

Isabel e o Brasil

Fui almoçar em um self service baratinho no Flamengo. Na entrada, uma menininha linda de uns sete anos me interceptou:

– Tia, me paga um prato de comida. Eu quero comida. Tô com fome.

Quem vai negar um prato de comida para uma criança?

– Claro. Vamos, falei. Qual seu nome?

– Isabel, tia.

– Vamos lá, Isabel.

Assim que entramos ela começou:

– Pode ser quentinha? É que eu preciso levar para meus irmãos também, tia.

– Quantos são?, perguntei.

– Muitos, tia. Respondeu ela olhando para as opções. Pode ser quentinha, tia?

– Claro. O que você quer que eu coloque aqui?

– Arroz, tia. Coloca muito arroz. Agora feijão, tia. Purê de batata. Mais purê. Macarrão, tia.

– Não quer legumes? Uma salada também? Não quer?, insisti como faço com meus filhos.

– Não, tia. Quero comida. Carne, tia. Pode colocar carne também?

A quentinha deu 40 reais de tanto peso. Geralmente pago menos que 15 no meu prato.

Entreguei para Isabel com uma garrafa de refrigerante que ela havia escolhido. Isabel pegou tudo e saiu correndo.

Fiz meu prato e sentei para almoçar com calma.

Em poucos minutos, vi Isabel mais uma vez com outra tia apontando o que queria colocar na quentinha.

Lá saiu Isabel apressada com outra marmita…

Logo depois, veio Isabel segurando a mão de um tio de novo. O tio olha para ela carinhosamente e coloca tudo o que Isabel quer.

Nessa hora eu estava pagando e resolvi seguir Isabel.

Ela foi ali para a praça do Largo do Machado. Havia várias pessoas com cobertores sujos, roupas rasgadas, sentadas no chão e deitadas em cima de papelão esperando por Isabel.

Isabel não mentiu. Ela dava comida para “seus irmãos”.

Tão pequena e já carrega a responsabilidade de um Estado e a pressa – daqueles que entendem a necessidade – de alimentar um Brasil.

Que pesadelo horrível…

 

screenshot_20190410-111641_pencil photo sketch5945744659764867171..jpg

 

Hoje eu tive um pesadelo horrível.

Sonhei que tínhamos um presidente que se dizia cristão mas era a favor de armar a população. Em entrevistas, ele dizia claramente que não se importava em matar inocentes desde que o crime fosse combatido.

Sonhei que esse presidente não era capaz de entender que o que causa a violência urbana é a desigualdade social. Ele não tinha nenhuma proposta para dar conta de tanta injustiça histórica.

Sonhei que esse presidente era burro de verdade. E tinha filhos. Todos iguais a ele que acreditavam que diminuir a maioridade penal significaria que os crimes seriam reduzidos. Agora vejam vocês: se a ameaça de ser preso evitasse atitudes criminosas, em nossos presídios sobrariam espaços…

Sonhei que era explicado para eles de várias formas diferentes que se um jovem entra com 16 anos na prisão e se ficar preso durante 10 anos ele sairá ainda novo e sem estar reabilitado porque nosso sistema carcerário não melhora ninguém. Muito menos essa pessoa sairia dando bom dia para o padeiro. A prisão no Brasil não ressocializa ninguém e sonhei que eles não enxergavam que unir jovens de 16 a 18 anos aos criminosos adultos certamente os qualificariam para mais crimes.

Sonhei que essa família inteira que estava do poder do nosso país não tinha capacidade para enxergar que matar quem mata não evita que mais criminosos brotem em cada esquina e que apostar na redução da maioridade penal como resolução da violência juvenil é investir na reprodução da violência como mostra a experiência em outros países. Meodeos como eles eram burros.

Mas o pesadelo não terminava…

Sonhei que, ao invés de cuidar dos professores, eles os pisoteavam. Sonhei que esse presidente via a escola como um lugar para se gerar uma mão de obra acrítica e barata – e não um local de crescimento intelectual em que questionamentos são estimulados em crianças e adolescentes.

Sonhei também com uns objetos estranhos como mamadeiras com o bico em formato de pênis e eles segurando esse objeto estranho e aos berros babando diziam que aquilo era coisa de comunista.

Sonhei que uma família inteira foi alvejada com 80 tiros e eles não sentiam nada além de desprezo. Diziam que era normal, que estamos em guerra civil e em toda guerra morrem inocentes.

Para piorar o pesadelo, sonhei que a pessoa que mais olhou para os pobres e fez por eles em nosso país estava presa, que era para ele ter sido nosso presidente de novo já que liderava todas as pesquisas, mas que o prenderam justamente por isso. E pior, contra ele, não havia nenhuma prova. A prisão era na verdade arbitrária e significava um sequestro da dignidade do povo brasileiro.

Que pesadelo horrível, gente. Que pesadelo horrível…