Inútil evolução

Arte de Sérgio Ricciuto Conte

Estava olhando o mar ali aos arredores do aeroporto Santos Dumont. O Morro do Pão de Açúcar era meu horizonte. Fui de bicicleta e sem celular. Precisava não ser encontrada pelas notícias e aquele cenário já foi mais do que fotografado por mim.

Havia uma paz delicada ocupando aquele espaço com mais intensidade que o campo gravitacional. Eu praticava um relaxamento subversivo e me apoiava numa certeza risível de que já tinha visto de tudo nesta vida.

De repente, Pipo me cutucou e apontou uma ave franzina que estava boiando como um pato no mar. Mas não era só isso. A danada mergulhava. Sumia e reaparecia um pouco mais ali na frente. Ela que adejava pelas nuvens também sabia prender a respiração e se permitia molhar por inteira.

Como se tudo já não bastasse, o pássaro voltou do mergulho com algo preso em seu bico. Demorei a entender. Parecia que ele havia resgatado um amigo já que eu estava vendo um outro ser com duas asas.

Qual o quê.

A ave que mergulhava havia abocanhado um peixe que voava.

A luta não foi fácil. Os dois eram quase do mesmo tamanho. O peixe com as asas abertas não passaria fácil por aquela garganta fina do pássaro que submergia no mar.

Fiquei olhando apreensiva aquela cena. Não era apenas um bicho comendo outro – ordem natural das coisas.

Uma ave mergulha para buscar seu alimento. Um peixe voa para fugir de seus predadores comuns do mar. Neste sentido, era a fome de um contra anos de metamorfose do outro.

A fome tem suas urgências e o pássaro, depois de muito custo, conseguiu colocar a cabeça toda do peixe em sua boca e foi ajeitando seu pescoço esticando-o como um elástico para que todo o resto de uma história de adaptação entrasse.

De que adiantou desenvolver enormes barbatanas, planar como uma gaivota por onde tubarões jamais conseguem alcançar para ser capturado – enquanto dorme sossegado – por uma espécie de pato esmilinguido que mergulha?

Um ser com fome, ainda que seja um ser livre e tenha um tipo raro de sabedoria daqueles que voam, é capaz de depreciar a paz, rir de Deus e desprezar Darwin.

Um ser com fome é capaz de ignorar conceitos como densidades e empuxos para enfrentar sozinho esta gravidade.

De tão pesado, depois de ter ingerido algo do seu tamanho, o pássaro não se aventurou a voar. Acomodou-se fora da água com a tranquilidade aparente de alguém que abre um livro.

Eu, sem estar com meu celular, comecei ali mesmo a escrever – pois um texto é uma espécie de fotografia.

Nunca pensei que veria, ali parado numa pedra e com um olhar de deboche para os aviões que pousavam na pista, um pássaro digerindo anos de uma inútil evolução.

A volta do exílio

Quando criança, nunca tive vestido. Como gostava de jogar bola, subir em árvore, andar de bicicleta e coisas afins, um short me parecia muito mais seguro e agradável.

Quando criança, nunca usei brinco. Minha mãe não furou as minhas orelhas na maternidade e eu achava que incomodava por demais qualquer penduricalho no meu corpo.

Quando criança, nunca tive cabelos compridos. Cabelo curto me dava mais liberdade e praticidade. Andar de patins de cabelo curto é um tipo de liberdade que usufrui muito quando criança.

Quando criança, não usava roupa rosa. Gostava de cores mais neutras e a minha cor preferida sempre foi azul. A colcha da minha cama era azul. Meu estojo era azul. Minha mochila azul.

Quando criança, também não tive sandálias com lacinhos porque meodeos. Como correr com aquilo? Usava tênis e calçados que achava confortáveis.

Quando criança, brinquei de carrinho, trem, joguei bola, queimado e tive bonecas cujas casas eu adorava fazer com o que tivesse de sucata em casa.

Fui aprendendo a “ser feminina” conforme fiquei adulta. Adolescente, ainda usava blusas largas, tênis e calças e bermudas. Saias jamais. As unhas sempre eram roídas pela ansiedade que fez parte de mim desde quando soube o que eram as mãos e comecei a sonhar com lugares onde meus pés pisariam.

Aprendi a “ser mulher” com o tempo.

A menstruação para mim era um problema como é até hoje. Não me entendia com absorventes e em nada me sentia feminina com um bolo de algodão se encharcando de sangue entre as minhas pernas. Nunca senti nojo de mim mas repugnei as dores que tive por ter um útero. Não seria um órgão assim como minhas roupas que me definiam como mulher.

Quando comecei a dar aula, tive vergonha das minhas mãos sem cor, das roupas largas, da falta de maquiagem. Procurei seguir os padrões que me eram impostos e conheci vários tipos de prisão, algumas formas de lesão por andar de salto alto com a mente um tanto perdida e a dor da depilação senti depois dos quarenta. Estive com homens que não leram nada do que escrevi mas me elogiaram quando estava com uma porcaria de uma calcinha combinando com uma titica de sutiã.

Seguir padrões é um exílio da infância.

Dentre tantos sentimentos bonitos que me fizeram voltar a dormir com uma mesma pessoa, a gratidão está presente. Não consigo ser extremamente feliz sem ser grata.

Andava exausta. Vazia. E meu vazio era imenso porque sempre tive muita interioridade.

Obrigada, Pipo, por povoar um lugar em mim onde o silêncio fazia ecos.

Quando você está, me reconheço. Na sua presença, sempre saúdo uma liberdade que só senti quando fui criança.