Me julguem

De uns tempos para cá, tenho frequentado mais lugares na zona sul do Rio. Ter sido moradora de Madureira há 45 anos e do Flamengo há 10 meses fez com que eu observasse tudo com atenção e me movimentasse pelos lugares novos de forma cuidadosa para me socializar bonitinha.

A risada altíssima permanece seja lá em que lado estiver do túnel Rebouças, mas o que falo tem passado por um crivo do meu superego pela necessidade da sobrevivência.

Ouvi, numa reuniãozinha em Copacabana, uma mulher dizendo que ia para Miami renovar o guarda roupa porque lá tem tudo muito barato e de qualidade. Quem sou eu para julgar a economia e os valores de cada um, mas as pessoas que estavam em volta olharam de cara feia.

Observei tudo.

Eu, a atenta. A safa. Eu.

Precisava me enturmar e mandei na lata com a naturalidade daqueles que não olham preço no cardápio, enfim, falei que tenho planos de ir para o centro histórico de Bérgamo, uma cidade na Itália, ver umas roupas artesanais em uma feirinha de coisas usadas que ocorre sempre na Primavera. Detalhei porque sou dessas.

Pronto.

Me amaram.

Esquerda Cult tem dessas coisas. Disseram que a feirinha é ótima e enquanto eu ouvia elogios tentava adivinhar de qual região do meu cérebro eu inventei aquilo. Começaram a me dar dicas de brechós pelo mundo. Beleza.

Réchi tégui enturmada.

Lá pelas tantas, quando serviram bolinhas de mussarela de búfala com damasco, eu falei que estou planejando uma viagenzinha pela CVC há tempos e vendo quantos filhos o orçamento permite que eu leve.

Bola fora, Elika, bola fora.

Jamais falem em CVC aqui. Meu alarme bullying disparou e tive que recuar na conversa.

Para essa galera que faz festinha sem ter panelão na mesa com prato fundo descartável e que curte queijo muito mofado com taça de vinho francês, viagem em excursão e caravana para ir ao programa do Silvio Santos são coisas semelhantes em essência.

Eu que precisava avançar nas relações respirei fundo para não perder o pouco que havia construído em termos de contatos. Busquei segurança nos confins dos porões dos museus abandonados do meu Bacurau particular e disse que estava também pensando em ir fazer um Brit Movie Tours na Europa.

Dei um gole longo daquela bebida esquisita numa taça que tinha o diâmetro de uma moeda e mantive a postura.

Bingo.

Recebi várias dicas de caminhadas cults com temas de arquitetura, artes de rua, espionagem e outros motes que eu nem sonhava que existia. Me mandaram na hora roteiro pronto pelo whatsapp que farei um dia quem sabe quando tiver dinheiros e a paz de espírito necessária para passear em Paquetá.

Empolguei-me com a receptividade deste grupo específico. Verdade seja dita. Estava indo bem.

Havia a necessidade de dar um passo além para aprofundar a intimidade.

– Gente, amei visitar a exposição permanente do Pierre Choinier em Paris. – falei com a segurança daqueles que tem o mapa do mercadão de Madureira decorado na cabeça.

Paris. Nunca fui também.

Não vou dizer que é meu sonho porque sonhar a gente sonha com o resgate da autonomia do CEFET, com a diminuição da desigualdade social, com a liberdade de Lula e que o Uber tenha bala 7 belo. Paris a gente deseja com o sorriso nos olhos daqueles que vêem um sorvete ser bem servido pela moça do outro lado do balcão.

Quanto ao Pierre Choinier, para quem não sabe, é um grande artista renascentista francês inventado por mim na década de 80 em uma apresentação da escola quando o professor pediu para eu citar o nome de um pintor famoso e contar um pouco sobre ele em um trabalho oral. Não havia estudado nada mas não podia tirar zero. Mandei essa e, pasmem, ganhei um 10. Desde então, compreendi como me comportar no mundo.

Mas quase coloquei tudo a perder, gente.

Dei uma rateada e disse empolgada, super sem querer, que fui passar Lua de Mel em Cancun.

Jamais, eu disse jamais, façam isso quando estiver no meio dessa tribo específica porque eles vão achar que você também nunca experimentou palmito pupunha assado e isso pode ser fatal no julgamento de sua inteligência.

Se foi a Cancun, diga calmamente que foi para um lugar onde pode ver as antigas civilizações maias, astecas e toltecas, que esteve no Complexo de las Monjas e que a astronomia, a geometria, a matemática, a engenharia e as artes plásticas dos Maias são obras de arte.

Não satisfeita, falei que Guillermo del Toro faria a festa com aquele cenário. Não tenho a menor noção do sentido dessa frase mas isso é o que menos importa. Saber proferir expressões como está na página 1 do livro 1 do manual de sobrevivência que escrevi somente na minha cabeça.

Consegui corrigir tudo no tempo certo.

Vi orgasmos múltiplos e fui respeitada por ser burguesia-cultural-nível-hard.

Me acharam hiper cool.

Réchi tégui amigos de infância.

Se souber se comportar direitinho, você tem o mundo em suas mãos. Vai por mim.

Hoje, depois de votar no Conselho Tutelar, visitei a vila que morei em Madureira.

Encontrei meu vizinho lavando o carro na calçada e dei um berro de longe:

– Fala, corno! Teu time, hein! Vou te contar!

Ele me mostrou o dedo do meio, largou a mangueira na rua e veio me receber com um abraço. Não faço ideia para quem ele torce e do campeonato que está rolando.

Assim sigo caminhando, gente. Me julguem.

10 comentários em “Me julguem

    1. Hahahahahaha
      Maravilhosaaaa!
      Falávamos no sábado sobre como você estourou no “ mundo dos famosos “
      Que bom ter alguém representando a gente pelos caminhos onde a futilidade percorre, sem perder a tua essência e sendo de justiça.
      Beijo no coração ♥️

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  1. Sensacional! Rsss. Seu estilo lembra muito o da Anna Stephenbeuer, que criou o conceito de realidade abstrata-helicoidal. Vcs duas são iguais! E sou fã da duas! Apesar de só uma existir. bjssssss

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  2. Delícia, Erika, delícia, e ponto. Me fez um bem danado ler esta tua crônica (??? de verdade ou inventada???) de hoje, de verdade. Quase engasguei ao me imaginar nesse tal party de gente high, ufa! Me lembrei de Victor Jara cantando “las casitas del barrio alto, con rejas y antejardin…” dos meus tempos idos de Chile de Allende. E tomei nota das dicas. Obrigada e grande abraço.

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  3. Adorooo. Você me faz pensar naquelas pessoas que conseguem caminhar sobre brasas sem queimar os pés. Vivamos com inteligência, leveza e alegria.

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