Eu não professo nenhuma religião. No entanto, sinto dor quando leio notícias sobre casos de intolerância religiosa no Brasil. Tenho lido muita coisa sobre o assunto e hoje de manhã, no Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, acompanhei os debates do III Seminário de Liberdade Religiosa e Direitos Humanos, promovido pelo CEAP no Centro Cultural da Justiça Federal.
Gostaria de compartilhar algumas coisas que ando aprendendo e outras que já sabia e que acho que sejam interessantes colocá-las aqui neste dia.
O Brasil é um dos países com maior diversidade religiosa no mundo. São muitas manifestações e cultos praticados no Brasil que perdemos de vista, embora o censo tenha como base apenas os grupos principais.
Não gosto de citar números, mas acho que vale mencioná-los aqui para a gente ter uma melhor noção sobre o tema. Estima-se que 60% da nossa população seja católica e 30% evangélica. Os outros 10% seriam divididos entre demais religiões e indivíduos sem religião ou sistema de crença.
Foco agora:
As religiões de matriz africana e afro-brasileiras representam menos de 1% da população, no entanto, este grupo é vítima de 59% dos crimes de intolerância religiosa, registrados no país.
Sempre bom saber o porquê do dia 21 de janeiro ter sido o escolhido como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. O motivo da escolha da data se deu por um grave ataque de intolerância ocorrido na Bahia em 1999 quando a Folha Universal, periódico de alcance nacional, com distribuição em massa promovida pela Igreja Universal do Reino de Deus, publicou uma matéria mentirosa com a foto de Mãe Gilda de Ogum na primeira capa com o título: “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”.
Mãe Gilda era Yalorixá, cargo popularmente conhecido como “Mãe de Santo” de um terreiro de candomblé na Bahia. Após a veiculação da notícia caluniosa, Mãe Gilda teve seu terreiro invadido e depredado por fundamentalistas influenciados pela matéria da Folha Universal.
O caminho judicial não foi fácil e só em 2009 a justiça condenou em definitivo a Igreja Universal a pagar indenização e publicar uma matéria de desagravo à Mãe Gilda que a esta altura não estava mais viva.
Mãe Gilda veio a falecer no dia 21 de janeiro de 2000 vítima de um infarto provocado pela série de transtornos e desgostos causados pela calúnia que sofrera.
Gosto de lembrar que foi Lula que em 2007 sancionou a Lei 11.635 que estabelece o dia 21 de janeiro como Dia Nacional de combate à intolerância religiosa.
Nos governos do PT, as políticas de combate à intolerância foram fortalecidas através da Fundação Palmares e do desenvolvimento do Plano Nacional do Desenvolvimento Sustentável dos Povos Tradicionais de Matriz Africana.
Discurso um pouco diferente dos atuais governantes, não?
Outra vitória importante dos movimentos sociais foi a criação do Disque 100 como canal de denúncia contra crimes de intolerância religiosa que, desde 2011, vem recebendo notícias de todo Brasil com relação a ataques de intolerância contra qualquer manifestação religiosa.
Os números, neste caso, não necessariamente representam a realidade dos fatos, uma vez que a sociedade é complexa. No caso dos terreiros, muitos casos não são denunciados por falta de informação sobre direitos ou mesmo por conta do silenciamento das vítimas, sobretudo quando o ataque parte de setores do tráfico.
Para se ter uma noção, em 2011, quando o serviço começou, o número de denúncias foi de apenas 15, saltando para 109 no ano seguinte e 231 em 2013. No ano passado, 2019, este número ultrapassou de 500 e sempre, em sua ampla maioria, as vítimas são as mesmas: as religiões de matriz africana.
Não basta que o Estado seja laico em aparência ou na forma da lei. O direito à liberdade religiosa está estabelecido em nossa Constituição. Mas, na prática, como temos visto, isso não tem acontecido.
A garantia da liberdade religiosa em um país tão diverso como o Brasil deveria ser um dos marcos fundamentais de política pública, pois a intolerância religiosa no Brasil tem endereço certo e está profundamente ligada ao racismo estrutural de nossa sociedade.
O Estado Brasileiro já perseguiu as religiões de matriz africanas por considerá-las inferiores, assim como a Igreja Católica em determinado momento de nossa História também o fez. Hoje os algozes são as igrejas neopentecostais fundamentalistas.
No Rio de Janeiro, especificamente, o quadro é a ainda pior. O fenômeno de igrejas neopentecostais fundamentalistas enraizadas em comunidades e os discursos de ódio promovidos em presídios na forma de assistência espiritual produziu um elemento peculiar conhecido como o “tráfico de Jesus”.
Obviamente o movimento acima citado não condiz com o comportamento da maioria de evangélicos e nem mesmo com a filosofia pregada por Jesus. A questão é que o discurso fundamentalista entre os mais pobres têm feito com que o poder paralelo se volte contra os terreiros estabelecidos nas comunidades e com isso a perseguição ganha contornos ainda mais sérios, de modo que em 2018 foi fundada no Rio a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância Religiosa.
A Intolerância Religiosa no Brasil está longe de acabar. E, aqui, cabe uma obervação: precisamos afirmar que não queremos que as minorias religiosas, em especial as de matriz africana, sejam somente “toleradas”.
Almejamos muito mais do que isso.
Elas têm o direito de serem respeitadas e coexistirem em harmonia com todo e qualquer sistema de crença ou não crença neste país.
“A questão é que o discurso fundamentalista entre os mais pobres têm feito com que o poder paralelo se volte contra…”
Penso que já deixou de ser paralelo há muito tempo e agora chegou ao Planalto.
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