2020: Um Odisséia na Terra

No momento em que havia guerras pelo mundo, a Amazônia ardia em chamas, o aquecimento global nos assustava, a polarização política gritava, a fome seguia, o sarampo voltava, o fascismo avançava, e mais outras desgraças aconteciam, um novo medo apareceu e tudo que era enorme ficou menor. Um vírus nos atingiu. Tenhamos ou não contraído covid 19, sentimos algum efeito dele sobre nós. Ficamos todos atônitos não porque algo grande e ruim começou a acontecer, mas porque foi algo algo muito ruim que não sabemos como lidar.

A comparação entre os países é natural, mas há muitos detalhes sendo esquecidos quando o paralelo é feito porque… não há paralelos.

A realidade não é matemática.

Os números sozinhos não são suficientes para descrever o que, de fato, se passa aqui ou acolá. Precisamos contextualizá-los.

Aqueles que nos disseram que o vírus era fatal “somente” para pessoas com doenças pré-existentes ou idosos tomaram como base uma realidade que não é a nossa. Na Itália, um exemplo sempre citado dado o número de mortos que não para de crescer até o momento em que escrevo esse texto, ainda que encontremos pessoas pobres, está longe de ter comunidades abandonadas pelo setor público como vemos aqui. Isso significa que podemos contribuir para uma nova e triste verdade: descobrir, por exemplo, que a covid 19 mata muitos jovens se estes não estiverem bem alimentados e viverem em condições precárias e em lugares insalubres sem saneamento básico. Ainda que não tenham nenhuma doença, pode ser que pessoas jovens sejam vítimas fatais desse vírus. Existe a possibilidade de rejuvenescer esse quadro mórbido.

Li muito sobre a China e a forma que foi usada para o controle do coronavírus. O que a China fez certamente não é passível de ser copiado pelo resto do mundo. Mas pode ser pensado, melhorado, adaptado ou mesmo descartado por uma ideia diferente mas que tenha o mesmo potencial de controle da doença. Não há mais privacidade por lá. Se alguém sai, celulares são avisados. Existe um controle em grande escala da população sobre o que cada um compra e os locais que frequenta. Dentro de casa e nas ruas, sua vida é vigiada. Há questionamentos sobre quais são os princípios humanos e éticos que foram violados para se conter o vírus e o que seria aceitável em outras regiões do planeta.

Ouvi que os japoneses seguem trabalhando normalmente e que devemos fazer o mesmo. Comparar Brasil ao Japão é um erro. No comportamento social do japonês, a prática de isolamento de pessoas doentes já faz parte da cultura. Quem está gripado, por exemplo, evita sair de casa e, nas ruas, o uso de máscaras é comum antes da “moda” pegar. A situação sanitária do país também é melhor que a nossa: lá 100% do esgoto é tratado, enquanto no Brasil quase metade da população não tem acesso à rede de tratamento.

Enfim, precisamos olhar para todos os lugares para tentar aprender alguma coisa, mas somos complexos demais para ser medidos por uma só régua.

Minha cabeça segue observando…

Não vou me estender aqui sobre a necessidade do isolamento e da perversidade que é a ideia de um isolamento vertical. Nem na classe média conseguimos isolar os idosos. Sem contar a falta de amor que é isso “você, velho, fica aí trancado nesse quarto. Eu, que produzo, vou sair”. Qual seria o impacto psicológico dessa conduta nessa camada da população que já sofre de solidão, medo e depressão?

Há algumas outras verdades sendo escancaradas pelo mundo e que tenho observado. Uma delas é que a indústria farmacêutica, uma das que mais lucram no mundo, sempre teve pouco ou nenhum interesse na pesquisa sem fins lucrativos sobre doenças infecciosas. Vale lembrar que o coronavírus é uma classe de vírus que não surgiu agora. Prevenir doenças nunca foi o objetivo dessa indústria e muito do seu lucro se dá por conta dos remédios que precisamos tomar para aguentar as cobranças que somos submetidos nesse mundo moderno e perverso.

Tanto no Brasil quanto em outros lugares do mundo que estavam sofrendo com essa onda fascista, anti-ciência e conservadora, vimos o financiamento das pesquisas ser cortado, a mudança climática e as vacinas serem desacreditadas. Quanta verdade apareceu no meio dessa catástrofe, não? Quanta “balbúrdia” está sendo feita nas Universidades e que pode livrar milhares da morte…

Bem da verdade, a gente já estava bem doente. A maneira como consumíamos estava detonando o planeta. Tudo parecia descartável em pouco tempo – até mesmo seres humanos. Para “manter a economia” (sabe deus do que se trata quando dizem isso), o planeta estava sendo detonado. Ela era alimentada por crescentes e diferentes formas de consumo com modas cada vez mais voláteis. Até mesmo o turismo, se formos pensar bem, estava bastante esquisito. A necessidade de mostrar que estava em Paris, por exemplo, era muito maior do que a vontade de interagir com a cidade das luzes. Não importa se pegou fila, se ficou em pé por horas, se sofreu e se aborreceu se, ao final, conseguiu mostrar uma foto sorrindo com uma torre famosa ao fundo.

Somente diante de uma morte cuja cura é desconhecida, muitos conseguiram enxergar como somos frágeis e que o mundo que criamos não estava muito bom de se viver. De um lado, a miséria. Do outro, depressão, ansiedade, pressão alta, diabetes e a necessidade de consumo desenfreado.

Creio que outra forma de troca há de surgir. O tal “deus mercado” terá que ser reinventado. A economia, que parece ser até um ser vivo com sentimentos sujeito a mudanças de humor como narram os jornais, vai conhecer um tipo de socialização porque a recuperação do mundo se dará somente por meio de um processo colaborativo, assim acredito. O militarismo, o nacionalismo e o corporativismo precisarão ficar em segundo plano dando lugar a projetos progressistas que estejam comprometidos com um mundo mais seguro e solidário.

Dizem que estou sendo otimista. É necessário que sejamos. Deixemos para ser pessimistas em dias melhores do que esses que estamos vivendo.

Saúde e educação públicas de qualidade e de acesso para todos se tornaram, para além de necessárias, urgentes porque vimos que sem elas somos muito mais frágeis. Se as outras mortes não falaram alto o suficiente, o coronavírus gritou para que todas as pessoas ouvissem: a saúde é um bem não negociável.

Estamos pagando um preço por esse descaso por conta das políticas neoliberais de saúde implementadas em vários lugares do mundo. Mas agora estamos muito mais conscientes e aproveitando esse isolamento para denunciar a irresponsabilidade de todos os governantes que conduziram esse tipo de política que nos deixou nessa situação atual e observando quem, de fato, cuida de nós.

Não somente a doença se propaga. Conhecimento também contagia. Estamos sendo bombardeados de soluções. A despeito de cada país ter uma particularidade, as melhores ideias vistas nesse cenário passam por uma sociedade que se mantém somente sob a forma de cooperação global. Percebo com muita dor que foi necessária uma catástrofe para que muitas pessoas começassem a repensar sobre solidariedade. E não basta refletir e propor saídas para o problema delimitados por fronteiras.

De nada adianta termos uma saúde pública de qualidade se o resto do mundo não tem.

A saúde é um bem universal. Não pode se limitar a uma bandeira.

Não queremos mais derrubar os ideais neoliberais. O coronavírus já se encarregou isso. Os níveis de desemprego subirão na ausência de intervenções estatais maciças que terão de ir contra o neoliberalismo. Não há outro caminho a não ser na direção de algo que seja politicamente e economicamente “inovador”.

Quando voltarmos, não voltaremos os mesmos. O mundo que deixamos lá fora, quando fomos orientados a nos afastar dele, já não existe mais. Veremos muitos lugares mais bonitos. Em Veneza, as águas estão claras e disseram que há cisnes por lá. As trilhas estarão cobertas e as praias, limpas. A imprudência dessa forma de viver altamente consumista contribuiu muito para a degradação ambiental.

A interação com a natureza deve prosseguir porque, afinal, fazemos parte dela. No entanto, muitos saberão que foi por conta desse diálogo agressivo que chegamos até aqui. Um sistema viciado em lucro e a promessa de riqueza a curto prazo nos trouxe até esse ponto: pessoas e a natureza sendo tratados como se os recursos a serem explorados fossem infinitos.

Mudanças que o mundo levaria décadas para passar, se é que aconteceriam, estão tendo que ocorrer de forma emergencial. A taxação das grandes fortunas e a criação de uma renda básica universal e de abrigos para pessoas que não têm onde morar são apenas alguns exemplos. Nos Estados Unidos, estamos vendo Trump aceitar que é necessário dar um suporte financeiro grande para seus cidadãos e distribuindo, de certa forma, dinheiro. A quantidade de carros nas ruas assim como a lotação dos transportes públicos já estão sendo repensadas pelo mundo, mesmo porque fábricas de carros estão falindo e o contágio de doenças virou algo além de uma ameaça “somente” individual. Ficou nítido que trabalhos informais sem carteira assinada e sem direito algum foi bom somente para quem emprega.

Estamos começando a entender que o que possuímos não é o que nos protege. A nossa segurança vem dos nossos laços e não do que podemos vender.

Agora, estamos tendo tempo de refletir sobre tudo e analisar.

Esse não é o futuro.

Esse é o nosso presente.

Exigimos um futuro melhor porque a história não acabará aqui.

Quaresma e quarentena

Participo de um grupo de família do qual a maioria é de Minas e predominantemente católica. Há rezas no grupo, momentos de oração, vídeos de missas juntamente com fotos da gente quando era criança, lembranças dos meus avós, memes e receitas de pé de moleque.

Hoje, em pleno final de quaresma, como me sinalizou o grupo, uma prima querida comemorou a “saída da quarentena” repetindo o mantra “O Brasil não pode parar”. Deu uma cutucada no meu pai que é japonês dizendo que lá no Japão as pessoas seguem trabalhando (o que não é totalmente verdade mas, também, nenhuma mentira). “Né, tio Takimoto?”.

Antes que meu pai respondesse, elaborei uma resposta que compartilho com vocês.

Vale observar que há muitas pessoas que pensam da mesma forma que ela e é necessário conseguir conversar com quem acredita na dicotomia saúde e economia porque nem sempre agem por maldade. Segue o que escrevi caso queiram ler:

“Sair para trabalhar não respeitando as recomendações dos maiores infectologistas e especialistas na área é falta de amor ao próximo porque você se torna um transmissor consciente e minimiza a vida de quem deveria proteger.

É sabido que a imensa maioria desses casos vai ser leve. Mas, pelo grande número de acometidos em curto espaço de tempo, podemos ter superlotação do sistema de saúde, com indisponibilidade de leitos para tratar outras doenças, que não deixarão de ocorrer. Pessoas não morrem só de covid-19. Morrem de enfarto, por exemplo, porque o hospital não teve leito para socorrer. E isso não aconteceu no Brasil não. Isso já é fato na Europa. Lugar onde há países com garantias sociais e saúde pública, ok?

No comportamento social do japonês, a prática de isolamento de pessoas doentes já faz parte da cultura. Quem está gripado, por exemplo, evita sair de casa e, nas ruas, o uso de máscaras é comum antes da “moda” pegar. A situação sanitária do país também é melhor que a nossa: lá 100% do esgoto é tratado, enquanto no Brasil quase metade da população não tem acesso à rede de tratamento.

Comparar Brasil ao Japão é um erro. Os dois países têm processo de formação cultural completamente diferentes e lá não tem a nossa desigualdade social. Aqui temos lugares sem saneamento básico e não temos testes para todo mundo. E, ainda que o Japão seja muito eficiente em testar pessoas em busca do vírus, identificar grupos de contágio e isolá-los, saiba que o país não tem realizado a quantidade de testes que deveria. E isso pode levar a um aumento drástico no número de pessoas infectadas. Pode ser que exista um grupo de pessoas infectadas, sem sintomas, que não foram detectadas, além de casos importados de outros países. E, se isso estiver acontecendo, pode haver uma mudança na conduta. Vale lembrar, prima, que as escolas no Japão seguem fechadas.

Eu tenho muito medo do estrago que esse vírus pode fazer ao se alastrar ainda mais nas nossas populações mais carentes, nas favelas, nas comunidades que são aglomerados por essência, nas pessoas que têm feito parte das calçadas de colchão. Isso você não vai ver no Japão, minha prima.

Visitei ocupações e favelas no Rio. Tenho um comprometimento com um trabalho sério que cuida das pessoas que não têm onde morar (passou no jornal da Globo ontem). O isolamento horizontal já era difícil. O vertical é impossível. Nem na classe média conseguimos isolar os idosos. Sem contar a falta de amor que é isso “você, velho, fica aí trancado nesse quarto. Eu, que produzo, vou sair”. Qual seria o impacto psicológico dessa conduta nessa camada da população que já sofre de solidão, medo e depressão?

Embora o isolamento social traga consequências econômicas ruins – que podem muito bem ser revertidas com medidas humanitárias, estratégicas e eficientes -, temos que lembrar que outros países que não o fizeram de forma adequada hoje têm cenários TRÁGICOS. Na Itália, hoje, temos um novo recorde diário: quase MIL mortos em um ÚNICO dia.

Um dos governos que mais resistiu e criticou medidas de isolamento, o Reino Unido tinha, há dois dias, cerca de 8 mil infectados e mais de 430 mortes. O primeiro-ministro conservador, Boris Johnson, defendia que, para chegar à imunização, era preciso deixar que o maior número de pessoas se infectasse rapidamente. Hoje, está com covid-19 em estado não muito estável.

Enfim, não existe a dicotomia saúde e economia. Isso está fora de discussão, minha prima. Primeiro, precisamos salvar vidas. Cuidar do próximo. Amar o próximo passa por tomar esse cuidado numa hora dessa. A economia se ajeita. A história nos mostra que países se recuperaram economicamente depois de passarem por guerras. Uns mais rápidos. Outros nem tanto. Mas as vidas que foram perdidas não voltam jamais.

Eu não professo nenhuma religião. Mas seguindo e respeitando a do grupo, pergunto a vocês: o que Cristo orientaria? Se formos ouvir o Papa que desde que a epidemia de coronavírus eclodiu na Europa se pronunciou em várias ocasiões, a orientação é ficar em casa para que vidas sejam salvas.”

Saudade

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Saudade de pessoas queridas

e até das desconhecidas

Saudade de ver gente.

De ouvir risada e discussão ao fundo.

Saudade de não querer ver parente

Até de buzina de carro me deu saudade.

Éramos tão apressados…

Saudade da sala de aula cheia

De aluno desinteressado

Saudade da gritaria da feira.

Saudade das reuniões tediosas

em que ficava pensando

como a mesa entrou nessa sala?

Saudade de aeroporto e rodoviária.

Deu saudade até do Detran.

Ônibus cheio não deu saudade não

nem de corrigir prova

mas estou sentindo que vai dar

a qualquer momento.

Saudade de fazer planejamento.

Saudade de coisa boa nem me fale

Pai, mãe, filho, namorado

Beijo na boca demorado

Cinema, teatro, dar palestra

saudade de ir a uma festa

saudade de roda de samba

carnaval, praia, botequim,

saudade de fazer tim tim

igreja, culto, terreiro

Saudade de fevereiro

De abraço mais saudade

até do que de beijo

Hoje acordei assim

Com saudade de pegar fila.

Com saudade de fazer poesia.

Sobre o coronavírus, nós e o capitalismo.

Gostaria de usar todo esse pânico sobre o coronavírus para trazer algumas reflexões.

A despeito de todo mundo saber que a taxa de letalidade é baixa comparada a outras doenças e que as principais vítimas são idosos ou pessoas já doentes, há uma insegurança fora do comum mesmo se estamos gozando de toda a saúde. Em primeiro lugar, porque temos em nosso meio de convivência pessoas que amamos que estão dentro do perfil mais vulnerável. Mesmo que a taxa de mortes seja baixa, a taxa de propagação é altíssima e, matematicamente, isso implica numa recontagem a todo momento sobre o número de mortes – o que estamos vendo na Itália, por exemplo.

Mas há muito mais a ser ponderado.

O período de incubação é de cinco dias, o número de casos cresce em exponencial e um percentual alto vai precisar ser hospitalizado ou isolado. Por consequência, como já estamos testemunhando, a transmissão do vírus já é comunitária, ou seja, a transmissão não é mais rastreável. Desta forma, qualquer um pode estar portando o vírus, se tornando, assim, um risco em potencial para os grupos mais vulneráveis. O efeito é em cadeia. Tudo se complica.

Para piorar, nada impede que a qualquer momento possamos ter um vírus similar, que se propaga com essa mesma ou maior velocidade, e com uma taxa de mortalidade muito mais alta. Não estamos livres de nenhuma outra intempérie, podem ter certeza. E, por isso, é sempre bom ver onde e como podemos melhorar.

Não é uma pandemia altamente letal, tecnicamente falando, como estamos cansados de ouvir de pessoas especializadas. Mas é nova e de origem ainda não totalmente conhecida. Não podemos prever sua evolução e isso gera uma grande incerteza. Em cada país está acontecendo de um jeito. Não há uma vacina eficaz. O vírus se espalhou rapidamente nos países mais ricos do planeta e, certamente, em todos os tipos de classes sociais. Ninguém está blindado.

É preciso também prestarmos atenção na dificuldade que países que usam a saúde como mercadoria estão tendo para conter o avanço do vírus. Nos EUA, Trump acabou de injetar 200 bilhões de dólares para socorrer as vítimas do Coronavírus. Será que este valor é tão eficaz quanto parece? O gasto poderia ser bem menor se o país possuísse um sistema público de saúde. Outro dado alarmante sobre os EUA é que para fazer o teste, gasta-se em média 3 mil reais. Caso dê positivo para o coronavírus, a pessoa, sem ter outra opção, vai precisar gastar em torno de 20 mil reais. Aliás, ela tem outra opção sim: não fazer sequer o teste. E daí, senhoras e senhores, avaliem a consequência disso nesse país que não tem uma saúde pública.

Em contrapartida, a China anunciou hoje, 12 e março, a superação da fase crítica da evolução do vírus. Não é o fim da transmissão em si, mas a redução considerável dos números de infectados demonstra a política efetiva que o Estado Chinês desenvolveu. Em doze dias foram construídos onze hospitais dedicados ao tratamento dos infectados pelo Coronavírus – além de outras ações integradas a diferentes áreas do governo.

Enfim, esse vírus tem me feito pensar sobre sistemas de saúde. Estamos vendo que países com sistema público de saúde eficaz e que aplicam medidas drásticas como isolamento efetivo (não somente em escolas, por exemplo, porque isso não adianta nada já que as crianças precisam ficar com alguém, sendo geralmente, seus avós) e que têm um Estado forte estão sendo capazes de conter a pandemia com mais sucesso. Não é o caso da Itália onde cada região tem uma autonomia e um modo de agir que não dialoga, em alguns casos, com as demais.

Ainda assim, vimos como a mídia e muitos governantes aproveitaram para praticar o racismo e a xenofobia. Ficou explícita a forma usada pelos Estados Unidos de aproveitar o vírus  como uma oportunidade de degradar e isolar a China.

Nada, depois disso que estamos vivendo, nada mais pode ser enquadrado na categoria “isso não é problema meu”. Neste momento tenso que passamos, cabem várias reflexões. Se você vive em um país que tem uma saúde pública de muita qualidade, países como o meu que têm deficiências graves (não tão graves quanto a dos Estados Unidos) na saúde pública cujo governo limita por anos os investimentos na área, países governados por pessoas que vivem em uma alucinação permanente (como o meu), países que têm uma desigualdade social crescente (como o meu) são sim um problema para você que vive longe de mim porque vírus e bactérias se pegam pelo ar e andam de avião muito bem acomodados nas pessoas.

A tal liberdade econômica tão primada e valorizada pelos neoliberais não está me parecendo ajudar num caso sério como esse.

O que precisa ser feito  muita gente já sabe. É necessário que ninguém se mova para que o vírus seja erradicado. A dificuldade de efetivar algo tão simples está porque nos movemos em busca de dinheiro. Não é um problema somente de saúde, mas também um problema econômico e social.

A solução para isso não seria fácil em qualquer cenário, mas é possível que fosse bem menos complicado se tivéssemos um outro tipo de interação com o capital e com a natureza.

E aqui cabem algumas perguntas fruto de reflexões e intuições pessoais: em que medida nossa forma de praticar a agricultura em grandes escalas e de consumir animais na forma que fazemos contribuem para o aparecimento de doenças e surtos epidêmicos? Em que medida a interação agressiva do ser humano com a natureza ajudou o surgimento e a proliferação do Ebola, gripe suína, influenza aviária, zyka e coronavírus, dentre outros vírus, doenças e bactérias? Será que se mudássemos os nossos hábitos não minimizaríamos esse tipo de pânico que passamos ano após ano?

Temos uma economia globalizada, interdependente e frágil  – como ficou evidente agora para quem ainda duvidava – fruto desse capitalismo que jamais trabalhou pelo coletivo. A busca constante pelo lucro está intrínseca na nossa forma de agir no mundo, porém, estamos aprendendo que as complexas consequências sistêmicas são imprevisíveis e, possivelmente, devastadoras.

Não há nada mais a ser analisado pontualmente. O crescimento menor na economia, a queda de bolsa, a diminuição do turismo, de venda e de produção, a melhora da qualidade do ar inspirado dado uma menor emissão de CO2… Nem tudo piorou, o ar ficou mais limpo e agradeceu ao ver a quantidade de carros se esvair. Há relatos de pessoas respirando melhor na China, vejam vocês… Já sabíamos que muitos dos fatores que ajudaram no desenvolvimento do capitalismo são altamente  prejudiciais para o equilíbrio do planeta e, por tabela, à saúde coletiva. O que não imaginávamos é que algumas pessoas iriam respirar melhor por conta do coronavírus.

Vivemos em um sistema complexo, matematicamente falando. Não somos equacionáveis e passíveis de previsão. Mas acho que dá para aprender. E muito.

Outra coisa que fico aqui observando é que parece que o coronavírus é a verdadeira cortina de fumaça. No quadro internacional, parece que acabaram os bombardeios, que os imigrantes estão sendo bem tratados, que o terrorismo foi, este sim, erradicado. No nacional, não se fala mais, por exemplo, na devastação da Amazônia, na militarização das escolas, na suspensão da investigação do Flávio Bolsonaro, da truculência da polícia e na precarização do trabalho.

Aliás, falando nisso…

Fico aqui imaginando se, por conta do coronavírus, empregadas domésticas, porteiros, jardineiros, cuidadoras de idosos, coletores de lixo e tantos outros trabalhadores paralisassem não por uma greve, mas por uma demanda vinda do ministro da saúde, por exemplo. A classe média entraria em outro tipo de surto porque muitos não sabem sequer cozinhar, lavar a própria privada e muito menos trocar a fralda de uma pessoa idosa. Será que este governo que tanto subestimou o vírus daria condições de nossa população se sustentar em uma quarentena?

Mundo globalizado e viver em um só planeta tem dessas coisas: tudo que disse acima está conectado e não pode ser analisado isoladamente. O medo e a precaução produziram uma queda na produção, uma melhora considerável no ar da China, reduziu o preço do petróleo, paralisou o tráfego aéreo, fez a ciência ser levada a sério por quem estava desprezando seus efeitos e é possível que muita gente comece a perceber que ser rico não quer dizer ser independente se há uma dependência direta da exploração de uma classe trabalhadora para sobreviver. Talvez a humildade possa aparecer dentro de muitas casas depois dessa pandemia. É dramático mas pode ser também muito didático.

Foi descoberta uma nova forma de morrermos, mas o capitalismo nos mata de muitas outras maneiras. Depressão, ansiedade, diabetes, pressão alta, enfartos, fome, asma dentre outros fatores que nos abreviam a vida poderiam ser evitados se a gente se relacionasse de uma forma diferente. Há poucos lucrando em cima das péssimas condições de trabalho de uma grande classe trabalhadora. Mais cedo ou mais tarde, a conta chega.

Percebam: quanto menos desigual o país, menor a taxa de lucro. Ela é mais alta, a tal taxa de lucro, invariavelmente, nos países que possuem miséria e fome. Por isso, cabe repensar. Não conseguiremos acabar com o capitalismo, mas há formas mais justas e menos cruéis de se viver. Lucrar em cima de um colapso climático, de doenças, do medo, da vulnerabilidade como acontece, por exemplo, com quem tem ações na bolsa não me parece algo inteligente quando olhamos o todo e não somente uma parte.

Sei que está difícil ver o lado bom disso tudo. Podemos, no entanto, usar esse inferno como um bom local de reflexão. Fico aqui analisando e na esperança de que tudo isso nos leve e repensar esse capitalismo selvagem e sigo a sonhar com uma sociedade diferente.

Sinto há tempos que há uma necessidade de se fazer uma mudança radical nas políticas globais sistêmicas. Precisamos rever nossa economia e nossa saúde. Pensar em formas de consumo mais homeostático e com menos riscos. Um primeiro passo é assumir que temos uma parcela de responsabilidade nisso tudo.

Seguirei aqui com minhas reflexões. Por ora, senti necessidade de dividir um pouco dos meus devaneios com vocês.

Sem as mãos!

Quando era criança e adolescente, eu ia muito para Itajubá que fica no sul de Minas. A família toda da minha mãe é de lá. Lembro-me que andava demais de bicicleta e conseguia pedalar durante muito tempo sem as mãos até mesmo em estrada de terra.

Há pouco mais de um ano, pela primeira vez em minha vida, mudei meu CEP. No local em que estou agora, há ciclovias. Acabei vendendo meu carro e comprando uma bicicleta. Um privilégio. Eu sei.

Assim que voltei a pedalar, com 46 anos, com a forte recordação de já ter feito isso de braços abertos, soltei o guidão e imediatamente me desequilibrei e fui ao chão. 

Tentei de novo. 

Nada. 

Mais uma vez… não adiantava. Não conseguia. 

Poderia ter me conformado como fazem as pessoas que têm aversão à rebeldia. Mas isso está longe de ser o meu caso e não houve um dia em que eu tenha andado de bicicleta que não tenha soltado as minhas mãos e sentido a Terra toda balançar.

Até que aconteceu. 

E foi hoje.

Meu corpo se lembrou de como faz e, do mesmo jeito que abrimos um álbum de fotos e nos projetamos para aquele tempo, virei novamente criança pedalando sem usar as mãos numa manhã de Domingo.

Fui pegando cada vez mais autoconfiança.

Já estava pedalando rápido, desviando das pessoas, fazendo curvas e com as mãos sem qualquer compromisso. Vivi uma espécie de alegria tal qual a de um surfista vendo a onda perfeita chegar. 

Foi quando de tão feliz resolvi pegar o celular dada a segurança que estava sentindo. A intenção era filmar e mostrar para quem não acreditasse que euzinha sou rainha do meu castelo, dona do meu nariz, Cleópatra do Egito, Anitta do funk, tenho capacidade para elevar o PIB do Brasil e posso encerrar minha carreira de professora e ir trabalhar no circo.

A manhã estava linda e eu, plena na orla de Copacabana vendo o dia nascer. 

No exato momento em que me preparava para mostrar ao mundo a beldade, a diva, a ninfa, a crisálida da firmeza, da constância e da estabilidade que há em mim, um cocô de passarinho caiu bem em cima de meu braço. 

E garanto que não foi de um sabiá porque o volume daquela merda toda era maior, muito maior, do que essa ave tão querida pelos poetas.

Olhei para o céu e vi lá perto do infinito um bando de urubu voando em círculos. 

A manga comprida do braço direito de minha blusa branca que me protege de raios ultra violentos foi toda cagada de bosta de urubu justamente na hora em que imitava o Cristo redentor.

Aquele cocô se espalhou rápido pela roupa dados o vento e a falta de solidez de qualquer excremento desses bichos cobertos de penas.

Parei como freiam os indignados.

Pensei em todas as variáveis daquela equação. 

Medi, pelo olho, a distância entre mim e a estratosfera onde rolava aquela revoada urubuzenta. Avaliei a velocidade que pedalava em linha reta com a das aves fedorentas que adejavam numa trajetória curva. Olhei para o mar e para a quantidade de asfalto e chão que me cercavam. Lembrei da minha felicidade minutos antes. Fiz contas rápidas de cabeça porque sou boa nisso e concluí que a probabilidade daquilo acontecer – somente por ocasião do acaso – era zero.

Achei Deus parecido com minha mãe, embora minha mãe não seja tão boa assim em matemática.

Ambos têm esse jeitinho meio bizarro meio estúpido de se comunicar comigo oferecendo proteção. Se falassem de outra forma, eu – que diante algo lúdico me lambuzo – jamais pararia.

Como só se vive no rascunho e nunca saberemos o que teria acontecido caso não houvesse essa intersecção vinda do céu, olhando aqui essa mancha de bosta na minha roupa que não sai fácil e percebendo que meu capacete também não foi poupado dessa chuva de merda, não sei se agradeço a brutalidade do recado porque tenho consciência da grandeza da minha teimosia ou se me ofendo por terem jogado, literalmente, na minha cara que a minha volátil exuberância seria um abuso – como se não soubessem o quanto gosto de ser superlativa.

Há ainda uma terceira opção.

Posso desistir de fazer qualquer conexão e ser humilde a ponto de aceitar a contingência do mundo.

A impetuosidade assim como a rudeza divinas seriam desconstruídas e eu me daria a bênção e a paz de voltar a aceitar tudo o que não compreendo.

 

 

 

Nosso futuro é do pretérito imperfeito

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Passei uma semana em Brasília ao lado do Pipo. Estou agora no Rio e ele está lá por conta do trabalho.

Em um desses dias de Carnaval, ele – que está na casa dos pais – resolveu mexer em umas caixas cheias de passado. Fotos, documentos, CDs, LPs, cartas, trabalhinhos de escola dos filhos… O objetivo era tirar o que era “lixo” (pouca coisa saiu) e ver o que iria ser embarcado para o Rio, onde estamos morando juntos há um ano.

Já nos encontramos plenos de pretéritos e tive, neste evento-revira-baú-do-Pipo, a oportunidade de compará-los. Ao ver fotos suas em jornais, espetáculos, revistas e álbuns… eu focava no ano e procurava me lembrar por onde eu andava por aqueles idos.

Pipo viajou pelo mundo todo, fez milhares de pessoas gargalharem com seus espetáculos, teve participação frenética no Fantástico, Faustão, outra antológica no programa do Jô, pulou de Asa Delta, andou de helicóptero e tem horas de vôo tal e qual um piloto da FAB. Conheceu Chico Anysio, Fernanda Montenegro e mais um punhado de gente importante que não tenho sequer cultura para saber ao certo, pelo nome, quem são. Escreveu coisas maravilhosas que ainda não foram publicadas. Desde criança, já sabia que sem arte não se vive.

Está tudo lá, nas caixas do Pipo.

E eu ali vendo e ouvindo tantas histórias e pensando como é que nossos caminhos se cruzaram já que eu vivia universo paralelo – e bem se sabe que retas paralelas não se encontram jamais.

Vou pular minha infância e a adolescência que teve ampla presença dos Menudos e partir direto para a vida adulta:

A primeira vez que viajei sozinha cheia de medo foi em 2009. Para Europa? Nova Iorque? Japão? Nananinha. Para São Paulo.

Não tive capacidade sequer, vejam vocês, de fazer a reserva em um hotel tamanha era minha insegurança e, por pouco, muito pouco, não fui fagocitada pelo pânico. Uma prima distante me acudiu e me acolheu em sua casa lá em Pinheiros.

Sempre morei em Madureira e perseguia um projeto de felicidade que era ter uma casa com marido, cachorro e filhos com saúde brincando no quintal. Desde meus 14 anos, não conseguia me imaginar feliz sem Nelson ao meu lado, a pessoa com a qual fiquei casada por mais de 20 anos, meu primeiro namorado e, hoje, meu grande amigo.

Lembrando aqui. Foi em 2005 que algo muito estranho aconteceu.

Fui convidada para fazer um mestrado.

Na época, eu estava bem satisfeita da vida trabalhando como uma burra de carga sendo marionete de um diretor de uma escola particular, ali em Vila Valqueire, bairro perto de Madureira e com duas matrículas no Estado. Conseguia juntar um dinheirinho para fazer reforma na minha casa, colocar armários na cozinha, trocar o piso da garagem, essas coisinhas… E não conseguia imaginar nada em que Nelson não tivesse participação. Vivia solicitando (exigindo, preciso confessar) a presença dele para tudo.

Ao ingressar em um curso de mestrado na UFRJ, um horizonte diferente foi visto por esses olhos cheios de miopia. Estranhei demais a sensação de felicidade ao tomar café com colegas que faziam as mais diversas pesquisas e se interessavam pelo o que eu estava estudando, a dizer, como Isaac Newton resolveu o movimento circular na mecânica. Lembro-me direitinho do quanto aquela química no meu corpo pareceu bizarra, exótica, singular.

Eu estava feliz.

E Nelson não fazia parte daquilo.

Como pode?!

Deve ser a mesma sensação que Pipo sentiu ao voar de Asa delta naquele mesmo ano.

Longe de mim ter deixado de amar o Nelson por conta daquela estranha, insistente e indisciplinada felicidade. Eu seguia firme com a aliança no dedo, contente, faceira e orgulhosa com o nosso casamento. Mas um tipo de hormônio rolou no meu corpo.

Demorei a entender que era a presença, ainda que tímida, da independência.

Eu ficava horas isolada estudando nos finais de semana e perdia a noção do tempo nos cafés com os novos amigos. Nem parecia que era mãe, embora estivesse grávida do Yuki, meu terceiro filho.

Em 2006, passei no concurso do CEFET. Era somente uma vaga e eu parei tudo na minha vida (o mestrado, no caso) para estudar para a prova. Comecei a fazer parte de uma das melhores equipes de professores deste Brasil. Todo mundo ali sempre pesquisando e me estimulando a fazer doutorado. Talvez o paraíso seja assim mesmo, repleto de pessoas querendo ver o nosso crescimento.

Quando estive em São Paulo pela primeira vez sozinha foi para conversar com um professor na USP que estava interessado em ser meu orientador no doutorado. Na época, lembro que só fui porque um colega me mostrou, depois de muitas horas de conversa, que eu conseguia viajar sozinha e que nenhum filho iria morrer se eu me distanciasse por dois dias. Era a primeira vez que fiz uma mala só com meus pertences. Ao olhar minhas roupas ali dobradas, devo ter sentido algo semelhante ao que Pipo sentiu em uma estreia em um programa de televisão.

Metade de mim era pânico e a outra metade também.

Acabei fazendo o doutorado na UERJ em filosofia. No dia em que fui entrevistada para saber se meu futuro orientador me aceitaria, depois de eu ficar bons minutos explicando sobre o que seria minha tese, ele me perguntou: “Você sabe italiano?”.

Oras, senhoras e senhores, quem não sabe italiano, não é mesmo? Capuccino, pizza, tutti frutti… respondi a seco: “claro que sei”. E ele: “ah então não tem problema porque suas principais referências bibliográficas serão em italiano e se você não soubess…” Eu sei! Isso não é um problema para mim.

Interpretei como se fosse uma atriz.

Menti como fazem as que têm medo.

Saí da UERJ já digitando no Google o melhor curso intensivo de italiano no Rio de Janeiro.

Em 2010, estava já no doutorado estudando sobre a metafísica na mecânica do século 17 e formada em italiano depois de longas idas e vindas à noite de Madureira até o centro do Rio, mais especificamente, no consulado da Itália.

Lembro que, para além dos livros que li para escrever a minha tese, me encantei com a literatura italiana e com a alegria de ler Ítalo Calvino no original assim como Pinóquio.

Deve ter sido a mesma emoção do Pipo ao montar um espetáculo novo naquele mesmo ano.

Toda essa imersão em livros e pesquisas foi realizada cuidando de meus filhos contando, é claro, com a ajuda da minha mãe – que sempre esteve ao meu lado – e dando conta de um lar feliz com um marido.

Onde foi que meu casamento terminou é outra coisa que fiquei pensando ao ver as fotos de Pipo com a ex-esposa, ambos felizes como parecemos sempre estar em fotos de porta-retratos.

E assim, pensando e tentando forçar uma conexão entre esses universos tão distantes e explicação para o que não há, minha perplexidade me fez duvidar de que a luz que passa pela janela de um presídio tem a mesma natureza da que atinge uma pessoa perdida em uma floresta.

Com dois anos separada e acreditando que eu já tinha vivido o grande amor da minha vida, deparei-me com o Pipo. Eu que achava que, enfim, me conhecia, me surpreendi com a nova pessoa que me transformei diante aquele encontro.

Em uma ligação pouco depois de sermos apresentados, ele me disse: “Não te conheço o suficiente, por isso, não sei ao certo como…”. Interrompi a frase. Nem ele, nem eu, nem ninguém me conhecia mais. Qualquer atitude que eu tivesse dali para frente seria impossível prever antes de eu ter beijado Pipo pela primeira vez. O que eu era ou não capaz passou a ser um mistério até para mim mesma. Grande parte do que sou constituída passou a ser movimentada por outros estímulos.

A verdade é que sempre fui imprevisível para mim mesma. Não sabia que poderia ser feliz tomando um café com um grupo de amigos falando sobre filosofia, não sabia que conseguia viajar sozinha não somente para São Paulo como também para a solidão. Não sabia que o amor eterno de adolescentes acabava e que o mundo não findava junto…

Agarrei-me em muitas ilusões dentre elas a de que eu tinha raízes. Sou muita instituída de conflitos. Meu avesso se tornou mais visível do que as montanhas.

Mas era algo diferente que estava enfrentando daquela vez. Não tinha ideia de como lidar com um estômago repleto de urubus, águias e outras aves que flutuam em grandes altitudes.

Percebi que tudo é passível de ser defenestrado. Um endereço, uma profissão, um preconceito, medos, sonhos, fantasias, utopias, delírios. Até mesmo o que é bom pode ser arremessado pela janela porque o bom é relativo e existe, para além dele, sempre o melhor.

Encontrei Pipo serena. Sem expectativas. Toda aleatória, contingente e sorrindo para o inesperado.

Logo depois estava lá sem entender nada olhando aquelas caixas do Pipo.

Eu, reta paralela.

Quando desejei um dia encontrar um conto de fadas, fiz de tudo.

Quando não busquei mais nada, de reta fiz-me curva e cruzei o caminho do Pipo.

Deve ter sido assim.

E, de lá para cá, estamos agora fazendo tranças com nossas estradas.