Nosso futuro é do pretérito imperfeito

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Passei uma semana em Brasília ao lado do Pipo. Estou agora no Rio e ele está lá por conta do trabalho.

Em um desses dias de Carnaval, ele – que está na casa dos pais – resolveu mexer em umas caixas cheias de passado. Fotos, documentos, CDs, LPs, cartas, trabalhinhos de escola dos filhos… O objetivo era tirar o que era “lixo” (pouca coisa saiu) e ver o que iria ser embarcado para o Rio, onde estamos morando juntos há um ano.

Já nos encontramos plenos de pretéritos e tive, neste evento-revira-baú-do-Pipo, a oportunidade de compará-los. Ao ver fotos suas em jornais, espetáculos, revistas e álbuns… eu focava no ano e procurava me lembrar por onde eu andava por aqueles idos.

Pipo viajou pelo mundo todo, fez milhares de pessoas gargalharem com seus espetáculos, teve participação frenética no Fantástico, Faustão, outra antológica no programa do Jô, pulou de Asa Delta, andou de helicóptero e tem horas de vôo tal e qual um piloto da FAB. Conheceu Chico Anysio, Fernanda Montenegro e mais um punhado de gente importante que não tenho sequer cultura para saber ao certo, pelo nome, quem são. Escreveu coisas maravilhosas que ainda não foram publicadas. Desde criança, já sabia que sem arte não se vive.

Está tudo lá, nas caixas do Pipo.

E eu ali vendo e ouvindo tantas histórias e pensando como é que nossos caminhos se cruzaram já que eu vivia universo paralelo – e bem se sabe que retas paralelas não se encontram jamais.

Vou pular minha infância e a adolescência que teve ampla presença dos Menudos e partir direto para a vida adulta:

A primeira vez que viajei sozinha cheia de medo foi em 2009. Para Europa? Nova Iorque? Japão? Nananinha. Para São Paulo.

Não tive capacidade sequer, vejam vocês, de fazer a reserva em um hotel tamanha era minha insegurança e, por pouco, muito pouco, não fui fagocitada pelo pânico. Uma prima distante me acudiu e me acolheu em sua casa lá em Pinheiros.

Sempre morei em Madureira e perseguia um projeto de felicidade que era ter uma casa com marido, cachorro e filhos com saúde brincando no quintal. Desde meus 14 anos, não conseguia me imaginar feliz sem Nelson ao meu lado, a pessoa com a qual fiquei casada por mais de 20 anos, meu primeiro namorado e, hoje, meu grande amigo.

Lembrando aqui. Foi em 2005 que algo muito estranho aconteceu.

Fui convidada para fazer um mestrado.

Na época, eu estava bem satisfeita da vida trabalhando como uma burra de carga sendo marionete de um diretor de uma escola particular, ali em Vila Valqueire, bairro perto de Madureira e com duas matrículas no Estado. Conseguia juntar um dinheirinho para fazer reforma na minha casa, colocar armários na cozinha, trocar o piso da garagem, essas coisinhas… E não conseguia imaginar nada em que Nelson não tivesse participação. Vivia solicitando (exigindo, preciso confessar) a presença dele para tudo.

Ao ingressar em um curso de mestrado na UFRJ, um horizonte diferente foi visto por esses olhos cheios de miopia. Estranhei demais a sensação de felicidade ao tomar café com colegas que faziam as mais diversas pesquisas e se interessavam pelo o que eu estava estudando, a dizer, como Isaac Newton resolveu o movimento circular na mecânica. Lembro-me direitinho do quanto aquela química no meu corpo pareceu bizarra, exótica, singular.

Eu estava feliz.

E Nelson não fazia parte daquilo.

Como pode?!

Deve ser a mesma sensação que Pipo sentiu ao voar de Asa delta naquele mesmo ano.

Longe de mim ter deixado de amar o Nelson por conta daquela estranha, insistente e indisciplinada felicidade. Eu seguia firme com a aliança no dedo, contente, faceira e orgulhosa com o nosso casamento. Mas um tipo de hormônio rolou no meu corpo.

Demorei a entender que era a presença, ainda que tímida, da independência.

Eu ficava horas isolada estudando nos finais de semana e perdia a noção do tempo nos cafés com os novos amigos. Nem parecia que era mãe, embora estivesse grávida do Yuki, meu terceiro filho.

Em 2006, passei no concurso do CEFET. Era somente uma vaga e eu parei tudo na minha vida (o mestrado, no caso) para estudar para a prova. Comecei a fazer parte de uma das melhores equipes de professores deste Brasil. Todo mundo ali sempre pesquisando e me estimulando a fazer doutorado. Talvez o paraíso seja assim mesmo, repleto de pessoas querendo ver o nosso crescimento.

Quando estive em São Paulo pela primeira vez sozinha foi para conversar com um professor na USP que estava interessado em ser meu orientador no doutorado. Na época, lembro que só fui porque um colega me mostrou, depois de muitas horas de conversa, que eu conseguia viajar sozinha e que nenhum filho iria morrer se eu me distanciasse por dois dias. Era a primeira vez que fiz uma mala só com meus pertences. Ao olhar minhas roupas ali dobradas, devo ter sentido algo semelhante ao que Pipo sentiu em uma estreia em um programa de televisão.

Metade de mim era pânico e a outra metade também.

Acabei fazendo o doutorado na UERJ em filosofia. No dia em que fui entrevistada para saber se meu futuro orientador me aceitaria, depois de eu ficar bons minutos explicando sobre o que seria minha tese, ele me perguntou: “Você sabe italiano?”.

Oras, senhoras e senhores, quem não sabe italiano, não é mesmo? Capuccino, pizza, tutti frutti… respondi a seco: “claro que sei”. E ele: “ah então não tem problema porque suas principais referências bibliográficas serão em italiano e se você não soubess…” Eu sei! Isso não é um problema para mim.

Interpretei como se fosse uma atriz.

Menti como fazem as que têm medo.

Saí da UERJ já digitando no Google o melhor curso intensivo de italiano no Rio de Janeiro.

Em 2010, estava já no doutorado estudando sobre a metafísica na mecânica do século 17 e formada em italiano depois de longas idas e vindas à noite de Madureira até o centro do Rio, mais especificamente, no consulado da Itália.

Lembro que, para além dos livros que li para escrever a minha tese, me encantei com a literatura italiana e com a alegria de ler Ítalo Calvino no original assim como Pinóquio.

Deve ter sido a mesma emoção do Pipo ao montar um espetáculo novo naquele mesmo ano.

Toda essa imersão em livros e pesquisas foi realizada cuidando de meus filhos contando, é claro, com a ajuda da minha mãe – que sempre esteve ao meu lado – e dando conta de um lar feliz com um marido.

Onde foi que meu casamento terminou é outra coisa que fiquei pensando ao ver as fotos de Pipo com a ex-esposa, ambos felizes como parecemos sempre estar em fotos de porta-retratos.

E assim, pensando e tentando forçar uma conexão entre esses universos tão distantes e explicação para o que não há, minha perplexidade me fez duvidar de que a luz que passa pela janela de um presídio tem a mesma natureza da que atinge uma pessoa perdida em uma floresta.

Com dois anos separada e acreditando que eu já tinha vivido o grande amor da minha vida, deparei-me com o Pipo. Eu que achava que, enfim, me conhecia, me surpreendi com a nova pessoa que me transformei diante aquele encontro.

Em uma ligação pouco depois de sermos apresentados, ele me disse: “Não te conheço o suficiente, por isso, não sei ao certo como…”. Interrompi a frase. Nem ele, nem eu, nem ninguém me conhecia mais. Qualquer atitude que eu tivesse dali para frente seria impossível prever antes de eu ter beijado Pipo pela primeira vez. O que eu era ou não capaz passou a ser um mistério até para mim mesma. Grande parte do que sou constituída passou a ser movimentada por outros estímulos.

A verdade é que sempre fui imprevisível para mim mesma. Não sabia que poderia ser feliz tomando um café com um grupo de amigos falando sobre filosofia, não sabia que conseguia viajar sozinha não somente para São Paulo como também para a solidão. Não sabia que o amor eterno de adolescentes acabava e que o mundo não findava junto…

Agarrei-me em muitas ilusões dentre elas a de que eu tinha raízes. Sou muita instituída de conflitos. Meu avesso se tornou mais visível do que as montanhas.

Mas era algo diferente que estava enfrentando daquela vez. Não tinha ideia de como lidar com um estômago repleto de urubus, águias e outras aves que flutuam em grandes altitudes.

Percebi que tudo é passível de ser defenestrado. Um endereço, uma profissão, um preconceito, medos, sonhos, fantasias, utopias, delírios. Até mesmo o que é bom pode ser arremessado pela janela porque o bom é relativo e existe, para além dele, sempre o melhor.

Encontrei Pipo serena. Sem expectativas. Toda aleatória, contingente e sorrindo para o inesperado.

Logo depois estava lá sem entender nada olhando aquelas caixas do Pipo.

Eu, reta paralela.

Quando desejei um dia encontrar um conto de fadas, fiz de tudo.

Quando não busquei mais nada, de reta fiz-me curva e cruzei o caminho do Pipo.

Deve ter sido assim.

E, de lá para cá, estamos agora fazendo tranças com nossas estradas.

7 comentários em “Nosso futuro é do pretérito imperfeito

  1. Élika, parafraseando Manoel de Barros, suas histórias são tão inesperadamente verdadeiras que às vezes parece que são inventadas. Viva você, nosso amado poeta e todos nós que nos tornamos preparados de conflitos e sabemos fazer tranças de estradas e poesia em meio ao caos dos tempos difíceis que vivemos. Beijos

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