Meu nome é Elika Takimoto. Sou professora do CEFET/RJ e tenho algo importante para falar com você. Precisamos estar bem informados nesses tempos esquisitos.
Que a nossa democracia está sob fortes abalos não é uma novidade. Quero apontar, no entanto, a sujeira que está sendo feita em plena pandemia para além de termos um chefe de nação que não valoriza a vida dos brasileiros, um ministro da saúde que é trocado no olho do furacão e atraso do pagamento da renda básica emergencial.
Nesta semana,foram nomeados de forma ILEGAL reitores pró-tempore nos Institutos Federais do Rio Grande do Norte (IFRN) e no de Santa Catarina (IFSC). Acompanhamos – quase sem acreditar – narrativas dolosamente fabricadas por interventores que flertam com movimentos autoritários que tentam macular os processos democráticos vivenciados na Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica.
Preciso observar que o CEFET/RJ, desde Agosto do ano passado, está sob intervenção federal. Foi aberta uma sindicância a qual não tivemos NENHUM acesso. Tomando essa sindicância como base, justificaram a não homologação do nome de Maurício Motta como Diretor Geral que escolhemos de forma democrática como sempre foi feita na história do CEFET/RJ.
Na ocasião, pedimos socorro e apoio à sociedade alertando que essa medida autoritária não seria pontual já que o CEFET/RJ, pela importância e alcance que tem, sempre foi uma vitrine para as demais instituições educacionais neste Brasil.
No nosso caso, tivemos acesso à tramitação do documento e soubemos – porque é de domínio público – que ele foi entregue no dia 21 de fevereiro deste ano para o fechamento do relatório. Ou seja, a Sindicância foi finalizada e o relatório colocado no sistema. O documento encontra-se na corregedoria do MEC. O resultado não foi publicado e os interessados, salvo melhor juízo, não possuem acesso ao relatório da sindicância, descumprindo assim o princípio da transparência.
O silêncio administrativo, assim como a inércia da Administração que envolve esse processo, acarreta prejuízos consideráveis à Instituição, que continua com uma gestão provisória, sem poder traçar os rumos de seu futuro.
Enquanto eles enrolam para nos dar uma resposta, o diretor pró-tempore vai colocando pessoas em funções de direção sem ter legitimidade para isso no CEFET/RJ como podemos testemunhar com as mudanças das direções internas.
O ambiente dentro do CEFET/RJ que sempre foi saudável e propício para nossa produção está árido. Não há como ficarmos felizes sendo vítimas de uma medida anti democrática como essa e lidar com uma “denúncia” sigilosa por tanto tempo. Nunca na minha vida, desde que entrei no CEFET/RJ há mais de dez anos, vi colegas tão desanimados como vejo agora. E bem se sabe da necessidade da tal da felicidade para a realização de bons trabalhos.
Vamos agora ver o que aconteceu no Instituto Federal do Rio Grande do Norte e no Instituto Federal de Santa Catarina. Pretendo explicar para vocês o absurdo disso. Peço atenção e que espalhem essas informações para que a sociedade tome ciência da gravidade dessas medidas.
Mais uma vez, isso não é problema somente do CEFET/RJ e, agora, desses IFs. Se está acontecendo algo desse nível aqui e se a gente não se manifestar, tenha a certeza de que cedo ou tarde, você, de alguma forma, também será atingido.
É urgente que a sociedade se mobilize para que as leis sejam respeitadas. Esse é o mínimo que pedimos.
A presente análise que trago agora visa trazer argumentos IRREFUTÁVEIS para as nossas comunidades, com o intuito de rebater argumentos pueris trazidos pelo MEC e seus interventores.
A Lei 11.892, publicada em dezembro de 2008, instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e criou os 38 Institutos Federais (IFs) existentes no Brasil e determinou a estrutura organizacional e suas formas de provimento.
Recentemente, o presidente da república editou a Medida Provisória (MP) de n.º 914, publicada em 24 de dezembro de 2019, que dispôs sobre o processo de escolha dos dirigentes das Universidades Federais, dos Institutos Federais e do Colégio Pedro II, revogando importantes dispositivos de lei, inclusive os que tutelam a escolha dos dirigentes dos IFs.
No entanto, vejam bem, no art. 11, que estabelece que “o disposto nesta Medida Provisória não se aplica aos processos de consulta cujo edital, em conformidade com a legislação ANTERIOR, tenha sido publicado ANTES da data de entrada em vigor desta Medida Provisória.”
Essa inflexão nos remete novamente a Lei de 2008 pois é a norma aplicável aos processos de consulta realizados no IFRN e IFSC, visto que as respectivas datas de publicação dos editais se deram ANTES da entrada em vigor da MP. Percebem?
A publicação do Edital do IFRN se deu no dia 13 de setembro de 2019, enquanto a publicação do Edital do IFSC se deu no dia 25 de setembro de 2019.
Portanto, é absolutamente obrigatória a nomeação dos reitores democraticamente eleitos pelas comunidades do IFRN e do IFSC, como se verifica do arcabouço legal atinente aos processos eleitorais.
Não obstante, no que pese a nítida vigência normativa estabelecida, o MEC encaminhou ofícios aos Institutos Federais informando a designação de reitores pro tempore (ou seja, interventores), nos termos da malfadada MP 914/19.
Vale frisar, da análise dos autos do processo de consulta eleitoral, desde o seu início até a sua homologação, não se verificou NENHUMA irregularidade processual.
Para todo os os lados que analisamos seguindo todas as regras e leis da nossa Constituição, é absolutamente necessária e obrigatória a nomeação dos reitores eleitos por suas respectivas comunidades, nos termos da Lei 11.892/08 e Decreto 6.986/09.
Mesmo que houvesse qualquer dúvida acerca da aplicação da MP 914/19, como também se colocou à prova, ainda assim, as designações dos interventores seriam nulas de pleno direito, pois a motivação do ato administrativo é viciada e não encontra amparo algum no ordenamento jurídico pátrio.
Se a motivação do ato é viciada, vincula todo o ato administrativo, tendo como consequência a nulidade dos atos de designação dos interventores.
Assim, diante dos argumentos expostos, firmamos a convicção de que os atos ministeriais que designaram os interventores no IFRN e no IFSC e também do CEFET/RJ são viciados e merecem reparo judicial imediato.
Essas pessoas que não tem o menor comprometimento com a Educação neste país estão encontrando nesta pandemia um ambiente confortável para continuar agindo com arbitrariedades antidemocráticas. Qual seria interesse por trás disso?
Vale observar que o interventor nomeado no IFRN é filiado ao PSL.
Essas pessoas afrontam a vontade soberana das nossas comunidades e o ordenamento jurídico brasileiro.
Não nos calaremos e faremos de tudo para que essa sujeira seja exposta para toda a sociedade.
A história que eu vou contar não se passa em uma aldeia isolada no Japão há milênios e sim na década de oitenta em Madureira. O sábio japonês é meu pai.
Isso posto vamos à história real que me deu um grande ensinamento, a dizer, que nem tudo o que a gente aprende nos torna mais inteligentes.
Meu pai veio do Japão com 28 anos sem saber falar nada de português. Aos 30, com um vocabulário limitadíssimo, casou-se com minha mãe e tiveram quatro filhos. Minha mãe – que já foi freira – sempre nos falava que para se comunicar no amor há outras línguas. Eu nunca soube se ela estava sendo romântica ou tarada, mas isso não vem ao caso nessa história. Foco no sábio japonês e seu cão.
Morávamos em um casa em Madureira com um quintal enorme onde havia uma mangueira e um coqueiro. Para proteger a casa, meu pai comprou um cão. Na verdade, era uma cadela toda cheia de pedigree que prometia lealdade e inteligência pela sua raça: collie.
Abre parêntese:
Para quem tem mais ou menos a minha idade, sabe que a raça ficou famosa por conta da série Lassie, uma collie que sempre salvava humanos que por algum motivo entravam em perigo. Até hoje, Lassie é o animal mais famoso do cinema superando com folga o porquinho Baby e a coruja do Harry Potter.
Fecha parêntese.
Para minha infelicidade, colocaram o nome da cachorra de Laika. Digo isso porque me chamo Elika e todos lá de casa viviam trocando o nosso nome a ponto de eu latir quando acertavam. Mas foco no sábio japonês e seu cão.
O sábio japonês tinha várias habilidades, dentre elas, a marcenaria. Assim que Laika chegou, meu pai fez uma casinha de madeira bem parecida com a do Snoopy, pintou de amarelo e finalizou colorindo algumas partes de azul. Ficou uma graça! A gente se divertia só vendo.
Em cima da portinha da casinha, lia-se LaIKA. O “a” minúsculo foi porque meu pai havia se esquecido de colocar o primeiro “A” e, depois, expremeu-o entre o “L” e o “I”.
Nada que estragasse a obra.
Mas meu pai foi além.
Ele resolveu fazer um banheiro do lado de fora da casa, na verdade, bem distante da casinha da Laika porque meu pai é higiênico.
Ele fez uma caixa grande de madeira, pintou também de amarelo, coloriu da mesma forma que na casinha algumas extremidades com o azul e escreveu W.C.. Comprou alguns sacos de areia e tcharã: uma caixa de areia para cachorro. Foi a primeira e única vez que vi isso na minha vida. Achei muito interessante.
Logo de cara eu, lá com meus 6 anos de idade, não entendi por que diabos W.C. significava Banheiro de Cachorro. Quando perguntei para meu pai, ele respondeu que no lugar do “B”, ele havia se enganado e colocado o “W”. Como ele já havia errado o “A” de LaIKA anteriormente, concluí que aqueles erros poderiam ser por causa da falta de familiaridade com o português. Até hoje quando leio W.C., traduzo como banheiro de cachorro como se meu pai tivesse pintado todas as portas de banheiro pelas quais passei.
Foco na história.
Laika inicialmente cagou para a caixa de areia e não NA caixa de areia. Ela corria, brincava por todo aquele quintal e fazia cocô e xixi em um outro cantinho daquele vasto espaço acimentado.
Meu pai, com toda a paciência e sabedoria que trouxe do oriente, sempre que via a Laika fazendo as necessidades dela fora do B.C., esfregava o focinho da Laika no xixi dizendo “não”. Depois corria com ela para a caixa de areia, apontava e dizia: aqui xixi. Aqui cocô.
Como meu pai não ficava muito tempo no quintal, ele pedia para a gente gritar por ele sempre que nós víssemos a Laika se preparar para eliminar as sobras da ração. É muito importante o cachorro saber quem é o dono, dizia meu pai.
Por dias, semanas talvez, vi meu pai esfregando o focinho da Laika e, depois, roçando-o na caixa de areia. Não. Aqui xixi. Aqui cocô.
Nada daquele filhote de collie responder a tamanha dedicação e ensinamento.
Meu pai falava que todo mundo tem seu tempo e que era para a gente respeitar o da Laika.
Eu observava tudo atentamente.
Até que um dia aconteceu.
Laika começou a fazer xixi no cantinho que ela sempre gostava de fazer.
Gritamos “PAI! CORRE!”. Meu pai veio correndo lá de dentro da casa como aqueles que sabem o que querem da vida. Se alguém me contasse, eu não acreditaria. A comunicação entre um animal e um ser humano, de fato, é uma coisa muito doida e linda de se ver.
Eu apreciava tudo com o semblante dos que vivenciam a iminência de um gol.
O olhar da Laika cruzou com o do seu Takimoto.
Milésimos de segundo de tensão.
É agora, pensei.
Imediatamente, Laika esfregou sozinha o focinho no xixi e correu para limpá-lo na caixa de areia.
Já que estou com tempo sobrando, resolvi pensar um pouco aqui sobre as as mazelas do capitalismo e compartilhar com quem quiser me ouvir.
Para analisar a palavrinha da moda expressa quase sempre em inglês, fake news, minha cabeça me levou para os conceitos como liberdade, escolha, verdade, história, jornalismo e ignorância. Não sei até onde terei disposição e capacidade para explanar sobre o que andei lendo e matutando. Há muita coisa me causando estranhamento. Como o significado de fake news está diretamente associado à mentira, aproveitei para lembrar das fraudes, dos embustes, dos engodos, das fantasias, das farsas e trapaças que convivem de forma harmoniosa com tanta gente.
Gostaria de começar a refletir sobre a lenda de que seres humanos pensam de forma livre.
Comecei a suspeitar de que a ‘liberdade’ é uma mentira em que acreditamos. Nós, como seres humanos, gostamos muito dessa “ideia de liberdade”. Mas será que nós somos completamente autônomos como pensamos ser? No cotidiano, temos a faculdade de realizar ações que, em tese, poderíamos não realizar caso quiséssemos. O que penso é que esta noção de liberdade é muito mais complexa quanto parece e que pode ser tão real quanto uma miragem no deserto. Será que temos realmente a faculdade plena de escolher entre esse ou aquele caminho? Estamos inteiramente livres para escolher entre fazer ou não fazer certas coisas?
Para começar, se acreditamos na ciência, que o universo é previsível e segue um conjunto determinado de regras, ou seja, que cada coisa no universo que temos observado até agora segue algumas diretrizes específicas e nada está isento da influência de forças externas, então, por que nós – os produtos do universo – estaríamos isentos de influências do ambiente? Como fundamentar o livre arbítrio, a vontade que causa algo mas não é causada, numa mente inserida num mundo físico onde nada quebra a regra da causa e efeito? Cada emoção pode ser associada a processos neurológicos que, por sua vez, podem ser reduzidos a processos bioquímicos que, em última instância, nós não temos controle.
Pesquisando aqui, li que em 2008, em um estudo publicado na Nature com o título Determinantes Inconscientes de Decisões Livres no Cérebro Humano, ficou provado que a decisão começa a ser formada no cérebro até 10 segundos antes dele tomar consciência disso. Ou seja, você se prepara inconscientemente pra fazer algo bem antes de sequer se dar conta que está fazendo isso – e bem antes de realizar o movimento de fato. Outros estudos, dessa vez focados na atividade de cada neurônio em vez do cérebro como um todo, mostraram que as células neurais ficavam ativas antes da decisão de apertar um botão, por exemplo.
Poderia divagar por horas sobre esse conceito de “liberdade”, mas quero colocar outras coisas nesse caldeirão.
O nível da nossa ignorância é assustador. Se perguntarmos para qualquer adulto que seja super escolarizado sobre, por exemplo, o funcionamento do microondas, de onde vem a comida que come ou para onde vai o esgoto e como ele é tratado, tcharã, olha aí a ignorância aparecendo em estado bruto. Para vivermos no mundo moderno, temos que acreditar em muitas histórias que nos contam e desprezar outras tantas. Para tomar um banho e assistir um programa de TV, dependemos de uma rede gigantesca de laços econômicos e políticos. E, se por um acaso, você resolver entender como tudo se dá em sua própria casa, possivelmente, o tempo livre que a quarentena nos disponibiliza não será suficiente.
Agora vamos para o mundo.
Problemas como o aquecimento global, as guerras, a injustiça, as eleições, a fome e o coronavírus, por exemplo, são complexos demais. Devemos nos apegar, caso queiramos entender ou manifestar alguma opinião, a alguma narrativa, teoria ou quiçá liderança política porque precisamos nos livrar da desconforto que sentimos ao ver o quanto não sabemos. Neste sentido, estamos todos muito vulneráveis e nem um pouco livres para fazer escolhas.
Fake News e Pós-verdade são palavras que denotam circunstâncias nas quais fatos objetivos praticamente não importam para moldar a opinião pública e sim apelos à emoção e a crenças pessoais. Sabemos que Trump e Bolsonaro, por exemplo, foram eleitos pela força de uma narrativa mentirosa e, todo dia, somos atingidos por notícias que não têm o menor compromisso com a verdade. Dizem por aí, que estamos na era da pós-verdade, ou seja, da fake news. Não sem motivo, percebemos, tanto em Trump quanto em Bolsonaro, o ataque às universidades e aos sistemas educacionais, típico dos governos autoritários. É necessário diminuir a importância das instituições que poderiam contestar suas ideias.
O que me pergunto é: quando foi que vivemos a era da verdade?
Muitos vivem em um mundo em que, por exemplo, o Walt Disney está congelado esperando o avanço da ciência, Van Gogh arrancou a orelha em um ato de loucura, Galileu provou que a Terra gira em torno do Sol, Julio César disse “até tu, Brutus?”, coca-cola com mentos é uma combinação fatal e que a máquina da medicina trabalha unicamente para que tenhamos mais saúde.
Sinto informar, nada disso é verdade.
Walt Disney virou pó há tempos; foi Gauguin que, em plena discussão, cortou parte do lóbulo esquerdo de Van Gogh com uma espada (e não sua orelha toda); o máximo que Galileu fez, em relação ao movimento do nosso planeta, (o que foi, por si só, grandioso demais) foi mostrar que todas as provas usadas para comprovar que a Terra estava em repouso não tinham o menor fundamento; foi Shakespeare que colocou a indagação “Até tu, Brutus?” na boca de Julio Cesar; coca-cola e mentos fazem muito mal separadamente e juntos não apresentam um mal maior; e quanto à medicina, bem… podemos começar observando que saúde não é inverso de doença, que a doença está nas mãos dos médicos para a cura ou para a morte, que a gente, sempre ou quase sempre, vai ao médico esperando que eles nos receitem algum remédio, que a indústria farmacêutica é uma das que mais lucra no mundo e que nunca na história da humanidade estivemos tão doentes a despeito de termos mais de uma farmácia por quarteirão em grandes centros urbanos, ou seja, há muita informação que não se encaixa nessa narrativa linear de que quanto mais remédios no mundo, mais saudáveis estamos. É claro que não estou negando o poder da ciência e sim expondo algumas observações que considero pertinentes para pensar sobre vários tipos de informações enganosas.
Não há, também, nenhuma comprovação científica em muitas outras histórias consideradas sagradas. Mas não vou falar nada sobre outras possíveis fake news que alteram o comportamento de bilhões de pessoas por milhares de anos. Deixo esses questionamentos pessoais mais polêmicos somente para mim e vou me ater a outras narrativas sem nenhuma validação que mudaram e compõem a nossa história.
Também não pretendo aqui falar da lenda de que ficamos mais inteligentes quando frequentamos escolas ou ficamos muito tempo dentro delas. Basta olhar para o mundo em que temos pessoas que “frequentaram as melhores escolas” nos locais de poder e para nós mesmos. Possíveis conclusões perturbadoras podem aparecer.
Ao longo da história, temos inúmeros exemplos de farsas que circularam entre todas as classes sociais. Vários reis, imperadores e ditadores se beneficiaram das fake news desde o tempo do papiro. A índole de Marco Antonio, amante de Cleópatra, foi atirada no lata do lixo por Otavio, que viria a ser o imperador romano Augusto. Marco Antonio até hoje é visto como referência de um homem mulherengo, fanfarrão e sem nenhuma responsabilidade. Indo do século 4 antes de Cristo direto para as vésperas da Revolução Francesa no século 18, vimos “homens-parágrafo” que ficavam imprimindo fofocas e vendendo para editores como se fossem verdades. José Bonifácio fazia entrevista com ele mesmo, falava o que dava na telha sobre Dom Pedro I e publicava no jornal. Como podemos perceber com poucos exemplos, a frase “Se está em jornal impresso só pode ser verdade” evoluiu para “recebi no whatsapp”.
Em Mein Kampf , Hitler escreveu: “a mais brilhante técnica de propaganda não vai ter sucesso a menos que se leve sempre em consideração um princípio fundamental: ela tem de se limitar a alguns pontos e repeti-los sem parar”. E assim foi feita a lenda da supremacia branca.
Como sempre nos disse a nossa avó e Paul Joseph Goebbels, fundador e líder do Ministério do Esclarecimento e da Propaganda do nazismo: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se realidade”.
Certamente, seguindo os conselhos de Hitler e Goebbels mesmo sem saber, a Rede Globo, por exemplo, fez a conexão por anos a fio sobre um partido político e a corrupção no Brasil fazendo com que pelo menos metade do país acreditasse que o mundo é dicotômico como uma novela: existe o mal (PT) e existe o bem (Sérgio Moro). Da mesma forma, a revista Veja, Isto É, a Folha dentre outros veículos ditos jornalísticos usaram de uma narrativa nitidamente partidária e controversa para fazer as suas matérias com o inegável intuito de mudar o plano político do país.
Daí, fico me lembrando do massacre midiático que tivemos e me perguntando: aquilo também não era fake news?
Podemos também mudar o olhar e ir para o campo das propagandas com as quais somos bombardeados diariamente. Nenhum comercial de cerveja faz a correlação entre violência doméstica e acidentes de trânsito com o consumo de álcool. Num outro sentido, fazem com que acreditemos que uma festa sem muita cerveja não é possível e que o álcool é um caminho para a felicidade assim como já aconteceu com o cigarro um dia. Nutella, por exemplo, que contém em sua composição mais de 20 gramas de açúcar e 11 gramas de gordura por porção foi anunciada como “um elemento saudável para o café da manhã das crianças, além de conter vários benefícios nutricionais”. Activia fez várias campanhas usando as palavras “clinicamente” e ” cientificamente” para comprovar os benefícios do iogurte sendo que nunca houve comprovação científica acerca do benefício do produto. Red Bull não te dá asas, Volkswagen não tem “diesel limpo” e a foto do perfil em sites de relacionamento não corresponde ao que vemos pessoalmente.
Uma fake news (tomada aqui no sentido de que dados objetivos não são levados em consideração para avaliar um fato) muito interessante com a qual muitas pessoas convivem super deboa com ela é a de que quanto maior o número de presídios, mais segurança e menos violência teremos. A verdade é que pessoas envolvidas com drogas são mandadas para um local onde se vende drogas, sofrem muita violência e, após um tempo, são reinseridas na sociedade.
Ainda assim, há quem acredite que esse sistema é o mais eficaz para nos trazer segurança a despeito de todas as provas que apontam o contrário. Mais do que isso: a ideia de que “se está preso é porque coisa boa não é” também é uma mentira que é repetida muitas vezes. É sabido que há muita gente que nem sequer foi julgada está encarcerada. Não faltam exemplos de inocentes que foram soltos depois de terem sido presos durante muito tempo injustamente. A chance de uma pessoa ser solta logo depois de ter sido presa como “traficante de drogas” é quase nula mesmo com os livros de direito repletos de princípios como a presunção da inocência. Qual a consequência disso? No Brasil, em alguns lugares, a quantidade de presos provisórios chega a ultrapassar a dos condenados. E pessoas que portaram uma pequena quantidade de maconha, não raro, ficam confinadas na mesma cela que assassinos.
Por que, então, há uma infinidade de pessoas que acredita que quanto mais se prende, menos violento se torna o mundo mesmo que a realidade nos mostre que isso não é verdade? Nessa esteira, outra mentira que muita gente gosta de ouvir é sobre o “sucesso” de uma operação policial no combate as drogas. Não importa se a violência só tenha aumentado desde que certas drogas foram consideradas ilícitas por pura arbitrariedade de um grupo. O sucesso é medido pela quantidade de droga apreendida desconsiderando por total a quantidade que ingressa no mercado. E assim segue o mundo desde que alguns produtos tiveram a venda proibida.
Aliás… Se mudarmos o ângulo que vemos o problema da guerra às drogas e, no lugar de perguntar por que não liberamos o uso, tentar descobrir por qual motivo o uso de uma planta (considerada medicinal em muitas culturas) foi proibido, chegaremos a um dos maiores exemplos de fake news da história. Temos de tudo nessa trágica novela: interesses políticos, mentiras científicas e vários outros ingredientes que não podem faltar para que uma grande mentira se torne verdade. Essa novela tem início lá pelos idos dos novecentos e grandes protagonistas como Estados Unidos e China. A proibição criou uma ilusão de que há um comércio saudável e outro que nos adoece. Quem decidiu isso e colocou açúcar, por exemplo, como um produto saudável?
Falando em coisa saudável, ou seja, em saúde, e aproveitando que já falamos um pouco de publicidade, pergunto: como a propaganda industrial deforma a mente dos médicos que são submetidos diariamente ao bombardeio dos propagandistas dos laboratórios farmacêuticos? Podemos considerar a possibilidade de quando um médico prescreve um remédio, este ato ser, com uma certa frequência, baseado em forças não relacionadas às propriedades químicas da droga?
Se já está nítido que a indústria de fármacos não tem a ambição de produzir remédios que não sejam lucrativos e não investiga remédios para doenças cujo número de vítimas seja pequeno, em que medida podemos acreditar que os remédios como tranquilizantes estão nos curando?
Para finalizar essa breve reflexão sobre fake news, lembro aqui de uma última que contribuiu para que muitos colegas professores entrassem em depressão. O movimento Escola Sem Partido nascido em 2004 buscou denunciar uma suposta “doutrinação política e ideológica de esquerda por parte dos professores”. O grupo inspirou mais de 60 projetos de lei em câmaras municipais e assembleias legislativas pelo país. No ano passado, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, lançou um projeto “Escola para Todos” com explícitas influências do Escola sem Partido. No lançamento desta campanha, Weintraub enviou ofícios para todas as secretarias municipais e estaduais de ensino do país, determinando que as instituições de ensino adotem o “pluralismo de ideais e concepções pedagógicas, evitando o que a equipe classifica como propagandas-político-partidárias”. Soma-se a isso, mais uma infinidade de mentiras contadas até mesmo pelo presidente sobre Universidades.
Por óbvio, entendo que há diferenças das “fake news” em todos os exemplos aqui citados. Entendo que há informações falsas que não causam danos nenhum, pelo contrário. O mundo pode ficar mais bonito, interessante e agradável quando propagamos algumas mentiras. Pode ser também que pessoas morram, reis sejam depostos, uma presidenta golpeada e a desigualdades sociais sejam mantidas por anos porque fomos e continuamos sendo ingênuos demais.
Uso isso tudo para refletir o que mudou desde o início do mundo até agora. A ânsia do poder parece ser uma constante na história da humanidade. Se a desinformação sempre foi usada como estratégia política e/ou para aumentar os lucros, o que mudou hoje foi a inserção da tecnologia. Agora temos, para além de pessoas sem nenhum caráter, instrumentos tecnológicos capazes de potencializar o alcance de mensagens enganosas. E nós, deste lado, seres que são bombardeados por uma número excessivo de informação, e cada vez menos capazes de distinguir entre o que é fato, o que é versão e o que é uma mentira criminosa.
Penso que um dos novos papéis que a escola deve desempenhar é buscar, criar e desenvolver ferramentas, juntamente com o corpo docente e discente, sobre como podemos reconhecer discursos e conteúdos falaciosos. Não basta saber ler, é necessário mais do nunca, desenvolver uma leitura crítica. E, ainda que eu entenda que a realidade é complexa demais para ser resumida em um texto, acredito que devemos valorizar e fortalecer os veículos profissionais de comunicação que têm comprometimento com a verdade.
Se tudo vai ser visto como “antes e depois dessa pandemia”, espero que tenhamos pela frente – após tanto isolamento, mortes e dor -, maneiras, instrumentos, metodologias, uma maior capacidade e muito mais paciência para separar o joio dos tigres.
————————————-
Referências bibliográficas:
EKMAN, Paul, Telling Lies: Clues to deceit in the Marketplace, politcs and marriage, Norton & Company, 2009
HARARI, Noah Yuval, 21 lições para o século 21, Companhia das Letras, 2018
LANDMANN, Jayme, Medicina não é Saúde, editora Nova Fronteira, 1983
LEBRUN, Gérard, A Filosofia e sua História, Cosacnaify, 2006
POSETTI, Julie e MATTHEWS, Alice, A Short Guide to the History of ‘Fake News’ and Disinformation, International Center for Journalists (ICFJ), 2018.
VALOIS, Luís Carlos, O Direito Penal da Guerra às Drogas, Editora D´Plácido, 2019.
——————-
A figura que ilustra esse texto foi feita pelo artista Sergio Ricciuto Conte. Essa é uma das várias que ele fez para as minhas palestras.
Se entendermos a Educação como uma forma de “preparar a pessoa para o futuro”, conceito esse que sempre discordei, como moldar um ser humano para um mundo tão incerto como esse que se transformou nesta pandemia? Como se o século 21 já não bastasse para que colocássemos em xeque esse modelo educacional que temos, apareceu um vírus que nos faz questionar o que devemos ensinar para os jovens de hoje para que eles, ao serem “soltos no mundo”, quando adultos, transforme-o em outro melhor.
Há tempos que a escola não mais deve se prestar ao papel de ser uma mera transmissora de conteúdo. Informação todos temos, literalmente, na palma de nossas mãos. Acompanhamos, em tempo real, o número de pessoas contaminadas e mortas pelo coronavírus e vimos que nem mesmo presidentes de várias nações souberam o que fazer com tanta informação. Cabe ao professor ensinar e aprender com os alunos como conectar tanta informação e transformar esse conjunto de dados em sabedoria.
O objetivo da escola, que nunca deveria ser depositar conteúdo na cabeça de nossas crianças e jovens, precisa estar ligado a coisas como auto-conhecimento, primeiros socorros, inclusão social e como melhorar o meio ambiente e, por consequência, o lugar em que vivemos e quem somos. A escola deve ter, acima de tudo, um compromisso em diminuir as desigualdades e injustiças sociais e não fortalecê-las como vem fazendo há anos.
Não é necessário crescer para começar a aplicar o conhecimento adquirido em uma sala de aula ideal para esse século. O mundo está repleto de adultos que, por exemplo, não sabem de onde vêm a própria comida e a não têm ideia de como se recicla o lixo. A inteligência estimulada nas escolas, principalmente pós-pandemia, deve ser aplicada no dia a dia.
A formação que devemos mais do que nunca valorizar não é mais aquela que prepara para o futuro e sim para o presente. Desenvolver pensamento crítico, solidariedade e criatividade em cada criança e jovem deste país me parece uma maneira melhor para se lidar com as incertezas do que, por exemplo, massacrar uma mente com resolução de exercícios que pouco se conectam com a realidade.
Nessa esteira, as aulas onlines que muitas escolas particulares estão promovendo – e as escolas públicas estão resistindo em aceitar para não aumentar o abismo social – são um desserviço para a humanidade. Se há algum responsável feliz com essa “transmissão de conteúdo virtual”, desconheço. No meu radar, vejo pessoas adultas angustiadas com a perda de renda, com o colapso do sistema de saúde, com a manutenção da limpeza da casa, com a preocupação para desinfetar tudo o que vem da rua, com a falta de concentração para uma leitura ou até mesmo para assistir um filme e outros problemas muito maiores como o compromisso de alimentar muitas bocas, tentar diminuir a fome no mundo e não morrer. Nesse cenário, colocar uma criança para fazer uma lista de exercícios de matemática me remete ao filme Titanic. A cena dos músicos tocando enquanto o navio afunda ainda não dá conta para fazer a analogia. Vejo meu filho estressado tentando entender o que a professora quer que ele responda sobre um livro que ele teve que ler em plena quarentena e imagino alguém não com um violino na mão, mas martelando um prego enquanto o navio se quebra ao meio.
É o momento de sermos solidários e trabalhar o que nunca foi laborado decentemente seja em muitas igrejas seja na maioria das escolas: a consciência de que todos somos responsáveis por todos. Vejo colegas professores que estão sob a responsabilidade de cuidar de alguém doente e ajudando pessoas que se encontram mais frágeis do que nós com a obrigação de mandar e corrigir trabalhinhos de várias turmas em plena quarentena. Ninguém está ensinando nada e muito menos aprendendo alguma coisa fazendo isso. Trata-se, ao menos em todos os casos que vi, de uma enganação para justificar as mensalidades das escolas.
Que tipo de pessoa estamos formando para atuar em uma sociedade que, em plena pandemia, aprende a fingir que nada está acontecendo?
Na tentativa de dar respostas imediatas à sociedade e à opinião pública, o que está sendo proposto é um formato sem qualquer debate prévio com os profissionais de educação, com as direções e equipes técnico-pedagógicas das escolas, com os responsáveis e com os próprios alunos, ignorando por completo as condições sociais reais de acesso à tecnologia de uma significativa parcela da população deste país tão desigual. Não é possível debater a Educação desconsiderando que o mundo inteiro está doente.
Não sei mais quantos caixões e dias de isolamento serão necessários para entenderem que o mundo se modificou e que a Educação não se resume a uma mera transmissão de conteúdos. A Educação deve ocupar o lugar de ser um dos principais instrumentos para a construção de uma nova sociedade. E, se queremos algo melhor do que tivemos, não faz sentido ocupar a cabeça de ninguém nesse momento com a realização de uma prova. O Enem, nesse sentido, precisa ser discutido porque se ele ajudou, por anos, a colocar nas universidades pessoas mais privilegiadas, a realização de uma prova dessa magnitude na atual conjuntura é um sinal podemos perder a esperança de termos um mundo mais decente depois de tanta dor e isolamento. Há estudantes sem internet, sem mesa, sem comida. Qualquer avaliação que não considere essa realidade precisa ser abolida.
Se antes já era difícil fingir que a fome não existia para ensinar equação de Torricelli e adestrar alunos para resolverem um determinado modelo de exercício que “cai na prova”, agora, sinto muito, ficou impossível. Tudo foi potencializado. O mundo que deixamos quando iniciamos o isolamento não mais será encontrado. A economia vai estar de cabeça para baixo, vários empregos não existirão mais e muitas pessoas correm o risco de ser tornarem “inúteis” com o conhecimento que acumularam porque o mundo “pós-corona” terá outras demandas.
Já estávamos no caminho de deixar para trás uma narrativa de que nossas vidas eram divididas em antes e depois de um diploma. Aquela continuidade e estabilidade de emprego possivelmente farão parte de um passado (cá para nós, não muito feliz). A mudança será o que teremos de mais permanente. Saber lidar com o imprevisível é o que precisaremos. Para muitos isso pode parecer assustador, afinal, como viver fora da zona de conforto? Por outro lado, passar a vida aprendendo novas habilidades pode ser um estilo de vida bem melhor do que aquele que deixamos quando fomos atropelados pelo coronavírus.
Caberá as escolas dar algumas ferramentas para que o jovem crie prazer em aprender e para desenvolver muitas formas de conseguir equilíbrio emocional. É claro que, como professora, sei que é muito mais fácil ensinar para fazer uma prova que eu mesma elaborei do que educar para enfrentar o desconhecido, pois eu também sou um produto de um antigo sistema educacional onde me ensinaram somente a obedecer e não a criar. Mas tudo fica muito menos complicado quando tomo ciência de que o sistema educacional que tínhamos já estava mais do que falido com o advento da internet.
Pensando bem, o modelo tradicional de ensino já não prestava bem antes da internet.
As escolas tais como foram elaboradas são excludentes por essência e quiçá uma das principais mantenedoras de tanta desigualdade social. Não se mantém uma elite tão abastada por tanto tempo sem um grande esquema para isso. Já dizia o mestre, a falência da Educação não é um acaso e sim um projeto.
Que esse projeto mude. Se não for agora, ouso dizer, não será nunca mais.
————————————————
A figura que ilustra esse texto foi feita pelo artista Sergio Ricciuto Conte. Essa é uma das várias que ele fez para as minhas palestras.
2020. O ano em que percebemos que mentiram para nós. É possível sim um sistema econômico parar e ainda assim a Terra continuar girando.
Uns isolados, outros não, pouco importa, todos percebemos o efeito do freio e ficamos dia sim dia também nos perguntando como será depois desses meses tão estranhos e o que nos trouxe até aqui.
Onde erramos? Qual a minha parcela de culpa? Dá para melhorar? Como lidar com tanta bagunça e com os erros que cometemos? Se quero um mundo melhor, preciso começar, sobretudo, a olhar no espelho. É imperativo e improtelável debater todas as dores que enfrentamos, conectá-las e ter uma visão mais holística do futuro.
Percebi que é necessário que todos entendamos como uma democracia funciona. Em cada igreja, em cada sala de aula, em cada terreiro, nas praças, nos bares, nos teatros e nas praias e em qualquer outro templo sagrado será urgente ensinar e aprender como usar as ferramentas que são capazes de apertar os parafusos da máquina municipal, estadual e federal para um bem comum.
Quando sairmos da quarentena, perceberemos que sobrevivemos somente por atos de solidariedade no campo social, político e jurídico. A estratégia é mantermos a “vibe” de continuar sendo responsáveis uns pelos outros. Se tem uma hora certa para fazermos a revolução tão esperada, essa hora é após esse apocalipse onde conheceremos novas formas de nos relacionar – inclusive economicamente. Nós que acreditamos em um mundo melhor, não podemos descansar até que ele apareça.
Chega de migalhas.
Não há como não se lembrar do que havia antes e impossível não desejar um mundo diferente. De uma forma ou de outra, em diversos países, para que muitos não morressem mais, vimos as pessoas mais vulneráveis ganhando o direito a uma renda básica e o sistema de saúde ser reestruturado. Ou seja, é possível sermos muito melhores do que éramos.
Enxergamos o quão supérfluos somos e o quanto estávamos consumindo sem necessidade. Era inimaginável uma vida sem aquelas aquisições desenfreadas. No isolamento, essa constatação surgiu naturalmente. Vivia-se sob um sistema de valores esquisitos, nocivos e corrosivos que colocou o lucro acima do nosso bem estar e da saúde do planeta.
Éramos muito estranhos.
Testemunhar todas as trapalhadas de um tipo de ‘proteção” vinda de pessoas de direita me deu um certo cansaço. Constatamos que o verdadeiro cuidado nasceu de um conhecimento íntimo da fragilidade humana e não tinha nada a ver com “avanço da economia”.
Antes dessa pandemia, eu estava exausta de ver a poluição dos rios e mares, a falta de respeito com a natureza e o discurso de crescimento econômico em cima de um planeta que agoniza. Não houve incêndio da Amazônia, aquecimento global, helicóptero metralhando comunidades, perda de direitos trabalhistas, golpe de Estado e fome nas ruas que nos fizesse parar. Seguíamos consumindo e trabalhando sabe deus com que objetivo.
Ainda não entendíamos que todas as lutas eram urgentes. As crises sempre foram múltiplas e tudo sempre foi inter relacionado. Lutar contra o racismo, o sistema carcerário, o machismo, a educação castradora, o desmatamento e o neoliberalismo, por exemplo, é cuidar de nós mesmos. Só seremos melhores se abraçarmos todas essas lutas.
Portanto, é preciso creches gratuitas, transporte público decente, mais arte nas escolas, mais teatro nas ruas, mais muros grafitados, mais árvores, mais praças, mais música, mais público, menos privado. Já passou muito do tempo de fazer as reparações às pessoas que mais sofreram com esse “avanço” econômico. Não temos somente um problema técnico para resolver, precisamos abraçar uma nova filosofia econômica e não aceitar menos do que a felicidade de todas as pessoas.
Sinto-me no direito de desejar muito mais do que um futuro melhor em relação a esse presente violento. Eu quero viver em um mundo maravilhoso. Estou pronta para rejeitar soluções falsas e preparada para ajudar a promover uma completa transformação do sistema. A começar, pela sala de aula que há muito contribui para que tudo isso permaneça como está. Paulo Freire tem que sair das estantes e ir para a garganta de cada professor deste país.
Tenho certa aversão em usar a palavra “resistência” associada às lutas políticas. Resistir é dizer não. Cansei desse “não” desde 2016. Já vi aqui que resistir não basta. É fundamental trabalharmos o nosso vocabulário para termos a segurança necessária para colocar em prática um plano que funcione para ontem. Estamos em uma sociedade com desigualdades extremas e fascista – sendo o neoliberalismo um dos principais causadores dessa crise de caráter. Essa sociedade doente não se cura com um “não”.
Se já havia algo poderoso nessa ação chamada de “resistência” e se, por exemplo, participamos da marcha “ele não” pela vidas das mulheres, se estávamos dizendo não ao genocídio da população negra, se negávamos a falta de respeito à comunidade LGBT e se negamos a educação e a saúde privadas, isso tudo significou que reuniões políticas progressistas, palestras, aulas públicas estavam deixando de ser tímidas e ganhando, cada vez, mais volume.
Penso que chegou a hora de partirmos para um sim.
Sim para um mundo com energia renovável, sim para que toda e qualquer medida política, educacional e jurídica tenha o compromisso de eliminar qualquer raiz de desigualdade racial e de gênero. Sim para jornada menores de trabalho. Sim para renda básica universal permanente. Sim para alimentos orgânicos. Sim para a diminuição do consumo de carne. Sim para toda e qualquer cura de tanta dor causada pela exploração.
Tivemos tempo de observar bem que há como parar tudo. E que a economia não morre e sim se reformula podendo inclusive ser mais justa quando o trabalhador precisa se cuidar. Se foi possível tudo frear, eles estavam errados. Eles mentiram para nós. Disseram que era impossível vivermos com as máquinas paradas.
Quando o isolamento acabar, ee insistirem para “corrermos atrás do prejuízo” e trabalharmos como nunca para recuperarmos o “tempo perdido”, devemos rir alto, mostrar que conseguimos ver um novo horizonte, debater em voz alta sobre cada modo de produção que incentivávamos com nossos costumes e refletir se ele deve ou não ser retomado.
Não basta dividirmos tudo que temos, agora precisamos pensar por que precisávamos de tanto. Se conseguimos entender que tivemos que nos isolar para cuidar das outras pessoas, penso que somos capazes de ir um pouco mais além: questionar o que é ou não, de fato, indispensável e qual foi o nosso papel com a degradação do meio ambiente e com a manutenção das injustiças sociais até agora.
Dá para fazer um mundo mais bonito mesmo não sendo poeta ou artista. Basta ter sobrevivido a esta pandemia e ter compreendido do que somos capazes quando agimos em sintonia.
Bateram na porta. Ouvi. Perguntei quem é. Ninguém respondeu. Abri a porta. Ninguém entrou. Não abracei ninguém. Ninguém sentou. Servi um pedaço de bolo para ninguém. Me arrumei para ninguém. Falei o que me afligia, das lembranças boas que guardava, disse que tinha planos e contei sobre eles para ninguém. Depois fez-se um silêncio e eu olhei fixo e sorri de lado para ninguém. Mostrei a casa arrumada. Ri do produto errado que usei e que manchou a roupa toda, mostrei o estrago que fiz para ninguém. Deu a hora da janta. Subi uma cerveja para o congelador e enquanto cozinhava contava sobre o livro que penso em escrever para ninguém. Coloquei dois pratos na mesa. Um copo porque não faço tim tim com ninguém. Na hora de abrir a cerveja a mão tremeu. A garrafa caiu no pé de ninguém. Quebrou toda. Fui limpar e me cortei um pouco. Doeu muito. Ninguém viu.