Salva pela utopia

2020. O ano em que percebemos que mentiram para nós. É possível sim um sistema econômico parar e ainda assim a Terra continuar girando.

Uns isolados, outros não, pouco importa, todos percebemos o efeito do freio e ficamos dia sim dia também nos perguntando como será depois desses meses tão estranhos e o que nos trouxe até aqui.

Onde erramos? Qual a minha parcela de culpa? Dá para melhorar? Como lidar com tanta bagunça e com os erros que cometemos? Se quero um mundo melhor, preciso começar, sobretudo, a olhar no espelho. É imperativo e improtelável debater todas as dores que enfrentamos, conectá-las e ter uma visão mais holística do futuro.

Percebi que é necessário que todos entendamos como uma democracia funciona. Em cada igreja, em cada sala de aula, em cada terreiro, nas praças, nos bares, nos teatros e nas praias e em qualquer outro templo sagrado será urgente ensinar e aprender como usar as ferramentas que são capazes de apertar os parafusos da máquina municipal, estadual e federal para um bem comum.

Quando sairmos da quarentena, perceberemos que sobrevivemos somente por atos de solidariedade no campo social, político e jurídico. A estratégia é mantermos a “vibe” de continuar sendo responsáveis uns pelos outros. Se tem uma hora certa para fazermos a revolução tão esperada, essa hora é após esse apocalipse onde conheceremos novas formas de nos relacionar – inclusive economicamente. Nós que acreditamos em um mundo melhor, não podemos descansar até que ele apareça.

Chega de migalhas.

Não há como não se lembrar do que havia antes e impossível não desejar um mundo diferente. De uma forma ou de outra, em diversos países, para que muitos não morressem mais, vimos as pessoas mais vulneráveis ganhando o direito a uma renda básica e o sistema de saúde ser reestruturado. Ou seja, é possível sermos muito melhores do que éramos.

Enxergamos o quão supérfluos somos e o quanto estávamos consumindo sem necessidade. Era inimaginável uma vida sem aquelas aquisições desenfreadas. No isolamento, essa constatação surgiu naturalmente. Vivia-se sob um sistema de valores esquisitos, nocivos e corrosivos que colocou o lucro acima do nosso bem estar e da saúde do planeta.

Éramos muito estranhos.

Testemunhar todas as trapalhadas de um tipo de ‘proteção” vinda de pessoas de direita me deu um certo cansaço. Constatamos que o verdadeiro cuidado nasceu de um conhecimento íntimo da fragilidade humana e não tinha nada a ver com “avanço da economia”.

Antes dessa pandemia, eu estava exausta de ver a poluição dos rios e mares, a falta de respeito com a natureza e o discurso de crescimento econômico em cima de um planeta que agoniza. Não houve incêndio da Amazônia, aquecimento global, helicóptero metralhando comunidades, perda de direitos trabalhistas, golpe de Estado e fome nas ruas que nos fizesse parar. Seguíamos consumindo e trabalhando sabe deus com que objetivo.

Ainda não entendíamos que todas as lutas eram urgentes. As crises sempre foram múltiplas e tudo sempre foi inter relacionado. Lutar contra o racismo, o sistema carcerário, o machismo, a educação castradora, o desmatamento e o neoliberalismo, por exemplo, é cuidar de nós mesmos. Só seremos melhores se abraçarmos todas essas lutas.

Portanto, é preciso creches gratuitas, transporte público decente, mais arte nas escolas, mais teatro nas ruas, mais muros grafitados, mais árvores, mais praças, mais música, mais público, menos privado. Já passou muito do tempo de fazer as reparações às pessoas que mais sofreram com esse “avanço” econômico. Não temos somente um problema técnico para resolver, precisamos abraçar uma nova filosofia econômica e não aceitar menos do que a felicidade de todas as pessoas.

Sinto-me no direito de desejar muito mais do que um futuro melhor em relação a esse presente violento. Eu quero viver em um mundo maravilhoso. Estou pronta para rejeitar soluções falsas e preparada para ajudar a promover uma completa transformação do sistema. A começar, pela sala de aula que há muito contribui para que tudo isso permaneça como está. Paulo Freire tem que sair das estantes e ir para a garganta de cada professor deste país.

Tenho certa aversão em usar a palavra “resistência” associada às lutas políticas. Resistir é dizer não. Cansei desse “não” desde 2016. Já vi aqui que resistir não basta. É fundamental trabalharmos o nosso vocabulário para termos a segurança necessária para colocar em prática um plano que funcione para ontem. Estamos em uma sociedade com desigualdades extremas e fascista – sendo o neoliberalismo um dos principais causadores dessa crise de caráter. Essa sociedade doente não se cura com um “não”.

Se já havia algo poderoso nessa ação chamada de “resistência” e se, por exemplo, participamos da marcha “ele não” pela vidas das mulheres, se estávamos dizendo não ao genocídio da população negra, se negávamos a falta de respeito à comunidade LGBT e se negamos a educação e a saúde privadas, isso tudo significou que reuniões políticas progressistas, palestras, aulas públicas estavam deixando de ser tímidas e ganhando, cada vez, mais volume.

Penso que chegou a hora de partirmos para um sim.

Sim para um mundo com energia renovável, sim para que toda e qualquer medida política, educacional e jurídica tenha o compromisso de eliminar qualquer raiz de desigualdade racial e de gênero. Sim para jornada menores de trabalho. Sim para renda básica universal permanente. Sim para alimentos orgânicos. Sim para a diminuição do consumo de carne. Sim para toda e qualquer cura de tanta dor causada pela exploração.

Tivemos tempo de observar bem que há como parar tudo. E que a economia não morre e sim se reformula podendo inclusive ser mais justa quando o trabalhador precisa se cuidar. Se foi possível tudo frear, eles estavam errados. Eles mentiram para nós. Disseram que era impossível vivermos com as máquinas paradas.

Quando o isolamento acabar, ee insistirem para “corrermos atrás do prejuízo” e trabalharmos como nunca para recuperarmos o “tempo perdido”, devemos rir alto, mostrar que conseguimos ver um novo horizonte, debater em voz alta sobre cada modo de produção que incentivávamos com nossos costumes e refletir se ele deve ou não ser retomado.

Não basta dividirmos tudo que temos, agora precisamos pensar por que precisávamos de tanto. Se conseguimos entender que tivemos que nos isolar para cuidar das outras pessoas, penso que somos capazes de ir um pouco mais além: questionar o que é ou não, de fato, indispensável e qual foi o nosso papel com a degradação do meio ambiente e com a manutenção das injustiças sociais até agora.

Dá para fazer um mundo mais bonito mesmo não sendo poeta ou artista. Basta ter sobrevivido a esta pandemia e ter compreendido do que somos capazes quando agimos em sintonia.

4 comentários em “Salva pela utopia

  1. Bom dia Elika! Eu não estou conseguindo enxergar mudança alguma, acho que a grande maioria das pessoas não querem nem esperar a pandemia passar para retomar suas vidas de trabalhar, ganhar dinheiro e consumir, sem pensar no amanhã…

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  2. Parabéns pela clareza no texto . Quanta sensibilidade!!!! Muitos despertarão , outros continuarão sem mudança alguma , mas com certeza estaremos mais fortes nessa luta !!!

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  3. Ótima e importante reflexão nestes tempos tão difíceis! Temos que concordar que a Natureza está reagindo a tanta desfaçatez e agressão por tanto tempo. E os principais causadores desta pandemia estão cinicamente perplexos e ainda procurando tirar proveito da situação. Aqui, no meu isolamento, estou pacientemente aguardando a derrocada final. Um grande abraço.

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