Força, Rafaela. É para abraçar com força, Rafaela.

Oi, Rafaela. Aqui quem escreve é sua vizinha do 404. 

Tenho acompanhado um pouco da sua vida, mesmo sem nunca ter te visto.

Sei, por exemplo, que hoje você só comeu arroz no almoço. Sua mãe ameaçou deixar você trancada no quarto se não comesse os legumes e, pelo silêncio da tarde, concluo que você não tenha conseguido obedecer. Estava lavando minha louça quando me assustei com a frequência e a intensidade da voz dela.

Não consegui ouvir a sua resposta e imaginei você olhando para a sua mãe assustada – ou debochada – mas sem nenhum movimento além de continuar comendo somente o arroz.

– VOCÊ NÃO VAI COMER SÓ ARROZ, RAFAELA! RAFAELA, COME O RESTO, RAFAELA! VOCÊ VAI ME ENLOUQUECER, RAFAELA!

Percebi também, e isso me deixou muito angustiada, que você está com muita dificuldade para fazer os trabalhos que a escola tem mandado.

Todas as manhãs, meu vidro treme com a impaciência do seu pai.

– FAZ LOGO ESSA MERDA, RAFAELA!

– COPIA, RAFAELA!

– AINDA NÃO FEZ, RAFAELA!

– VAI FICAR SEM TELEVISÃO DE NOVO, RAFAELA!

Confesso que senti vontade de bater na sua porta para oferecer ajuda mas, por conta do isolamento e por não conhecer vocês, achei prudente me conter aqui.

Sei o quanto é difícil a gente se sentir motivado para ler um livro chato ou fazer uma conta sem necessidade. Quando isso acontece dentro de uma sala de aula, muitas vezes, o professor ou a professora tem mecanismos para tornar o processo menos doloroso e quiçá divertido.

Não sei qual a sua idade mas creio que está chegando na adolescência. Ouvi sua mãe avisando que ia jogar seu violão pela janela quando seu pai pediu para que ela intercedesse no seu processo de aprendizagem à distância.

Queria saber o que você está tocando, Rafaela.  Depois da quarentena, quem sabe, monte uma dupla com Yuki, meu caçula, que passa quase o dia inteiro trancado no quarto gravando e compondo músicas eletrônicas.

Yuki também não está conseguindo fazer muita coisa que tem recebido por e-mail da escola em que estuda. Disse que são chatas demais as listas de exercícios, reclama que sente falta dos amigos e que não consegue se concentrar para ler um parágrafo do texto que indicaram para um trabalho. A escola me disponibilizou até um suporte psicológico para ele.

Para ocupar o tempo, Yuki pediu que eu comprasse cubos mágicos que nem cubos são, Rafaela. No tempo em que era criança, era só um modelo. Comprei cinco diferentes para ele e, em uma semana, ele aprendeu a montar todos e chegou a me explicar as fórmulas para que eu conseguisse também. Era muita coisa. Minha cabeça não deu conta.

Concluí, porém, que ele não estava com um problema psicológico e sim o mundo que está doente.

Me estendi, querida. Eu queria somente te dizer que aprender é algo maravilhoso assim como o arroz de sua mãe e que a sua dificuldade é a regra e não exceção. 

Você, percebo, é muito inteligente, Rafaela. Não grita com seu papai e nem com a sua mamãe, típico de quem tem noção do perigo. Você avalia as conseqüências com a velocidade do seu primo que faz os trabalhos de casa em minutos. Seu pai sempre te lembra de como o Marquinho é sabido, não é verdade? Eu sei. Ouço bem daqui mesmo sem minhas próteses auditivas.

Não fique triste, querida. Estamos vivendo um período que nem os adultos sabem direito o que fazer. E, mesmo sem sermos crianças, protelamos também nossos deveres de casa. É imposto de renda que ainda não fiz, é exercício de agachamento que não vou fazer, é um livro que não consigo terminar, é uma faxina que deixei para amanhã… O futuro, Rafaela, está longe e nunca esteve tão incerto. Não dá ânimo mesmo e a gente sente uma insegurança danada de até tirar o sono.

É normal não conseguir fazer nada com tanta gente indo para o céu e outros que deveriam queimar no fogo do inferno, querida.

Mas entenda, Rafaela. O coronavírus faz a festa em quem não se alimenta direito. Procure jantar bem hoje e saiba que seu papai e sua mamãe estão precisando, mais do que sua obediência, de um forte abraço.

Viver sem isso não está sendo fácil.

Boto fé que você resolve mole, em grande parte, essa questão.

Com carinho

Sua vizinha do andar debaixo.

5 comentários em “Força, Rafaela. É para abraçar com força, Rafaela.

  1. Impressionante! Daqui de BH percebo o clima angustiante do isolamento que você descreve e sua preocupação e empatia com vizinhos que mal conhece. Um abraço forte pra Rafaela, outro pra você.
    Abracemo-nos todos, estamos necessitados!

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  2. É isso! Não é nada fácil, mas vai passar…
    Vamos, a humanidade avançará, o mundo sairá melhor, a natureza já responde, agradecida, a esse verdadeiro “freio de arrumação” em tanto empoderamento “humano”…

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  3. Abraços pra Rafaela, seus pais e prá você também, pela empatia, cuidado e sensibilidade nesse momento difiícil e muito diferente para todos nós !

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