Barcos nos quintais

Lá se vão não sei quantos dias que estamos vivendo em outro mundo. Muita coisa já passou pelas nossas cabeças e vivemos várias fases. Antes de começar a divagar, vale assinalar que nesse pandemônio há pessoas que estão trabalhando muito como, por exemplo, os profissionais de saúde e outras que ficam procurando o que fazer para não surtar dentro de casa. Pertenço à essa segunda categoria. Não me falta trabalho, não me entendam errado. A carência é de ter um oceano.

Por vezes, começo a preparar algumas aulas (sou professora de física); outras, pego-me orientando meu filho a acordar cedo para não perder a aula (ele, como muitos privilegiados nessa sociedade, está tendo um acompanhamento on-line com seus professores). Conversando com pessoas queridas, percebi muitas exaustas trabalhando em home office. O ponto é que antes havia sentido no que fazíamos. Ando me questionando se ainda há alguma logicidade em agir pensando num futuro como se nada houvesse se transformado radicalmente.

Trabalhar para ganhar dinheiro, juntar e passar férias em algum lugar diferente já é coisa que ninguém mais pensa. Não tem por que acumular dinheiro para além da nossa sobrevivência e para ajudar quem amamos e os mais vulneráveis nesses tempos esquisitos. Se tiver alguém aqui que já tem o básico estiver querendo muito mais do que isso mesmo testemunhando a fragilidade do ser humano nessa conjuntura, creio que essa pessoa não entendeu nada.

Minhas reflexões por aqui têm ido no sentido de imaginar uma nova forma social que substituirá essa ordem mundial liberal-capitalista.

Para além dessas divagações, tenho procurado formas de não enlouquecer. Não basta pensar nos meus privilégios pelo fato de ter comida e uma casa para que eu encontre um equilíbrio e consiga ficar bem. A felicidade ou algo que o valha não chega a mim por saber que existem pessoas em piores condições. Já passei pelas cinco fases das mudanças drásticas (no nosso caso, vivendo um isolamento por conta de uma pandemia em pleno Brasil com Bolsonaro como presidente): negação (não é possível que esse vírus chegou aqui neste momento), raiva (Por que não morre só quem não respeita esse isolamento?), negociação (se eu conseguir ler, vou me esquecer de toda essa desgraça), depressão (Não consigo me concentrar em nada e sou impotente diante dessa catástrofe) e aceitação (vamos ver o que podemos fazer para derrubar Bolsonaro e como iniciar uma revolução digital).

Amyr Klink que cruzou o Atlântico Sul a remo, sozinho, por um barco projetado para esse fim, assim que começou esse período de isolamento chegou a lembrar desse feito e pensou: “É só me meter no barco de novo e ficar lá sozinho como já fiquei por meses navegando no meio do oceano”. Pegou uma garrafa de vinho, boas comidinhas e se trancou na sua nau que estava em seu quintal. Ao contrário do que aconteceu no mar, Amyr quase enlouqueceu. Não aguentou ficar nem por uma hora ali dentro.

A viagem era uma escolha de um estilo de vida e não uma fuga dela.

Por que estou falando disso? Porque sou dessas pessoas anti sociais que a despeito de amar dar aula e de uma roda de samba, sempre tive um prazer fora do comum em ficar em casa lendo, escrevendo e cozinhando. As aglomerações das quais participei eram meu oceano. Agora o barco está no meu quintal e não vejo prazer em estar dentro dele de forma tão forçada. Quando ia a um restaurante perguntava sobre todos os sucos que a casa tinha. Sempre escolhia o de laranja, mas eu gostava de saber quantas opções estava desprezando. Se me dissessem que só vendiam suco de laranja, ficaria incomodada. Certamente perguntaria sobre as variedades dos refrigerantes para me sentir na liberdade da escolha, essa coisa tão suntuosa e luxuosa que é apontar o dedo e dizer “eu prefiro esse”.

A verdade dura é que não retomaremos de onde paramos. Teremos que aprender a viver em um mundo muito mais delicado, fraco, débil, suscetível e repleto de ameaças. Não conseguiremos manter o ritmo, os mesmos valores, a mesma postura, atitude e sonhos diante dessa nova vida. Toda grande mudança implica em dor, perda, crescimento e muita resiliência, prudência, ruminação e cautela.

Interessante pensar que se alguém nos falasse que o mundo iria dar essa bela parada, ninguém acreditaria. Como assim a gente que vive sempre correndo atrás de dinheiro para pagar nossos boletos e mais alguns excessos oferecidos por esse sistema, a gente que pega todo dia engarrafamento, trem e metrô lotados, a gente que estuda para passar de ano e fica apavorado se vai mal em alguma avaliação, a gente que trabalha pensando nas férias, na roupa nova, em trocar de carro… como assim tudo parar ao mesmo tempo não só no nosso país como em várias partes do mundo? Como assim? Não cogitávamos essa possibilidade porque em certa medida alguém nos fez acreditar que a economia não podia parar como se “economia” fosse um ser com vida e, portanto, pudesse vir a óbito.

Daí veio o vírus e fizeram com que acreditássemos que teríamos que fazer uma escolha entre nossa saúde (a (falta de) saúde de cada pessoa passa a ser a minha também) e o vigor, a vitalidade, a robustez da tal da economia. E vieram os comentaristas, os epidemiologistas, os economistas progressistas, os cientistas, os sociólogos, os filósofos e PT, o PSOL o PCdoB, Drauzio Varella e minha mãe dizendo que eu tinha que ficar em casa e que a economia nem gente é para começo de conversa. Depois de ouvir vários especialistas do mundo, percebi que de fato, a economia não é gente e sim um bicho, mais especificamente, um gato – esse animal fluido que se molda em vários recipientes e passa por buracos com diâmetro de uma azeitona. Ela se resolve.

O mundo não vai ficar parado para sempre. E já não está. O mais importante: o ser humano que para, nesse contexto, jamais volta de onde parou. Reaparece transformado, com outra cara, com outra roupa. E é sobre como vamos nos vestir que queria conversar agora.

Não acredito que o conhecimento nos torna mais sábios. Os livros de história não possuem a capacidade de evitar que erros grotescos continuem a acontecer. Seguimos com um mundo que possui em pleno século 21 pessoas escravizadas e outras comprando armas. É possível que saiamos dessa pandemia vendo mais injustiças e sofrimento. Mesmo com todas as informações que tivemos e das previsões certeiras que nos foram apresentadas, vários governos do mundo minimizaram a vida do ser humano para salvar algo que sequer existe sem nós – a tal da economia. Escrevo em um dia que temos aqui no Brasil aproximadamente 35 mil mortos e, ainda assim, com muitas cidades reabrindo o comércio. Não será por falta de conhecimento e nem de informação que essa taxa de letalidade vai disparar. Muito menos foi por falta de alerta que estamos sendo massacrados. Dava tempo de se preparar para passar com menos perdas humanas por essa catástrofe.

Pode ser que tudo piore. Que a pobreza aumente e que muito mais pessoas tenham a vida abreviada por abandono do Estado. Mas deixarei para ser pessimista em um momento melhor da nossa história. Prefiro acreditar que já havia muitas pessoas apontando que o sistema que tínhamos se encontrava em uma séria crise (vide as desigualdades sociais, o racismo, a violência urbana e a deterioração do meio ambiente) e que esta epidemia nos obriga a pensar em uma nova forma de ordem social pois ela só pode ser revertida por meio de uma abordagem coordenada e coletiva.

Ou teremos guerras civis ou seremos forçados a nos organizar através de vários tipos de cooperação internacional e entre nós mesmos para produzir e compartilhar alimentos, recursos financeiros, médicos e psicológicos. Não há como o isolamento terminar de forma pacífica sem solidariedade.

O Estado precisa ser muito mais ativo e proficiente garantindo o mínimo para a sobrevivência de todos os desempregados e passar a fazer coisas ignorando os mecanismos de mercado. Agora a verdade é que vivemos em um mundo viral e, portanto, faz-se urgente reconstruir, dolorosamente, um novo modo de vida.

Não importa se você é um neoliberal e tenha teorias conspiratórias sobre a instalação do comunismo no mundo pelo coronavírus. A sua interpretação social não faz com que a necessidade de sermos solidários para que sobrevivamos daqui para sempre desapareça.

A pandemia é um sistema complexo e impossível de se equacionar. As variáveis são infinitas passando, para citar somente algumas, pela internet, pelo direito, pela organização dos hospitais, pela logística do Estado, pelo clima, pelo capital, pelo vírus, pela bactéria, pelo Trump, pelo Bolsonaro, por George Floyd e Miguel.  Das combinações dessas variáveis, emergem algumas propriedades não previsíveis. A pandemia é uma mistura na qual se combinam processos naturais, econômicos e culturais. Ainda assim sabemos que a única forma de evitarmos a barbárie é estendendo a mão para quem está ao nosso lado.

Para superarmos essa catástrofe, governos precisam lançar medidas que protejam a população da extrema pobreza como a renda básica emergencial que deve ser permanente e universal. Mas percebam: ao fazer isso, o dinheiro cumpre outra função em nossa sociedade. Seu valor passa a ser pela disponibilização de recursos para que tudo, em certa medida, continue funcionando. Assim, o colapso econômico deixa de ser uma ameaça maior que o vírus. Olha aí uma nova ordem social aparecendo, gente.

Há relatos de que os soldados que haviam sido feridos na guerra foram os que conseguiram elaborar suas experiências traumáticas melhor que aqueles que voltavam ilesos – estes últimos ficaram muito mais perturbados depois que retornaram. Talvez, muitas pessoas que estão encarando essa realidade de frente e tendo algumas atitudes como, por exemplo, arrecadando dinheiro para ajudar pessoas que estão mais vulneráveis, confeccionando máscaras e quentinhas,  elaborando material de entretenimento para crianças, jovens e adultos ociosos em casa, fortalecendo as redes de ações solidárias, mobilizando-se em mídias sociais para a conscientização do avanço do fascismo, ouvindo os mais oprimidos e aprendendo com eles, estendendo os ombros de forma metafórica para quem chora e disponibilizando, literalmente, os ouvidos para quem precisa falar, debatendo qualquer coisa de forma exaustiva em reuniões e lives, talvez essas pessoas tenham algum benefício como efeito colateral e sejam menos capazes de esmorecer, render-se, sucumbir a paranoias. Talvez.

Só há um suco e nem de laranja ele é. Só há barcos nos quintais.

Será navegando em um cimento bebendo algo que não pedimos que a mudança que precisamos há de surgir.

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