O Novo Marco do Saneamento Básico

Para quem perdeu essa última bomba: o Senado Federal aprovou no dia 24 de junho de 2020 o Novo Marco do Saneamento Básico.

Fico aqui me perguntando, é sabido que as empresas privadas costumam adotar política de exclusão de populações mais pobres. Será que veremos algo diferente disso com esse “Novo Marco de saneamento básico”?

Muita gente não sabe, então resolvi me estender um pouco aqui já que esse é um assunto que atinge todas as pessoas. Saneamento básico pode ser entendido como o conjunto de medidas adotadas para garantir a saúde da população, evitando que as pessoas se contaminem e prejudiquem seu bem-estar físico e mental. Dessa maneira, podemos dividir o saneamento básico em 4 vertentes:

  1. Abastecimento de água
  2. Esgotamento sanitário
  3. Manejo das águas pluviais
  4. Resíduos sólidos

No Brasil, o saneamento básico é um direito assegurado pela Constituição Federal de 1988 [Lei nº. 11.445/2007] como o conjunto dos serviços, infraestrutura e instalações operacionais para essas quatro vertentes apontadas.

É importante dizer que a garantia de saneamento básico é uma responsabilidade do Estado, em todas as esferas de governo, mas, de acordo com a Lei, cabe aos prefeitos a responsabilidade dos serviços de saneamento básico nos municípios.

Para além disso, a Lei tem como pilares a integralidade, controle social e aplicação de tecnologias para a universalização do saneamento. Isso seria feito estabelecendo funções de gestão para os serviços públicos, como planejamento municipal, estadual e nacional e a regulação dos serviços, que devem ser usados com normas e padrões.

Com isso percebemos, de forma muito fácil, que a Lei garante saneamento para todos.

A pergunta é: por que, então, nossos governantes não colocam a lei em prática? Aguenta aí que respondemos já.

Vamos destrinchar esse “Novo Marco do Saneamento Básico” que, a meu ver, é mais um golpe que a população brasileira, principalmente os mais pobres, levou.

De maneira simplificada o Novo Marco afeta a titularidade dos municípios, privilegiando as empresas privadas. Para isso, o projeto dificulta a celebração de contratos de programa, que garantem que companhias estaduais prestem serviços para os municípios de seu estado. E coloca como obrigatório um chamamento público para verificar se há outros interessados, para além das empresas estatais, na concessão dos serviços. Ou seja, o Novo Marco acaba com a preferência de nossas estatais na concessão de serviços de saneamento básico e abre o setor para o capital privado.

Com a nova lei, uma das mudanças mais significativas é a retirada da autonomia dos estados e municípios do processo de contratação das empresas que distribuirão água para as populações e cuidarão dos resíduos sólidos. Passa a ser obrigatória a abertura de licitação, o que implementa a competição do acesso aos contratos e a inserção massiva de empresas privadas, em detrimento das empresas estatais nos estados, que atendem 70% da população.

No artigo 19 do que foi aprovado, os titulares de serviço público de saneamento básico deverão publicar seus planos de saneamento até dezembro de 2022. Mas, no parágrafo único seguinte diz que serão considerados os planos de saneamento básico os estudos que fundamentem a concessão ou privatização, desde que contenham os requisitos legais necessários.

Está nos documentos disponibilizados pelo governo que, a partir de 2023, esse plano de saneamento básico apresentado será REQUISITO para que municípios de todo o País possam ter acesso a recursos federais do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) para obras e ações do setor. 

Ou seja, se o requisito não for aprovado, não terá direito a nenhum investimento. Quem analisa esses planos de saneamento? O governo federal. O governo de Bolsonaro e Guedes.

SACOU?

Para terminar, outra modificação é que o governo federal coloca a Agência Nacional das Águas como reguladora do sistema de saneamento nos municípios para receber os recursos federais acabando, assim, com a autonomia de cada município.

Agora, vamos trazer o problema para o dia a dia. Aqui no Rio de Janeiro temos a CEDAE, uma empresa pública que, como já sabemos, gera muito lucro e presta serviços para diversos municípios do estado do Rio de Janeiro, com base na lógica de subsídios cruzados.

O subsídio cruzado, para quem não sabe, é um dispositivo que possibilita que municípios com menos recursos tenham acesso aos serviços. 

Pela nova lei, a CEDAE ficaria inviabilizada de atuar em municípios mais pobres, que, por sua vez, não poderão mais firmar esses contratos de programa e terão que abrir licitação para contratar empresas para atuar no setor de saneamento básico.

Mas que empresa, ainda mais sendo privada, terá interesse em atuar em municípios pobres? Que empresa privada se dedicará a lugares em que a arrecadação de capital é baixa? A resposta todos nós já sabemos: nenhuma. E com isso, o povo que até um tempo atrás tinha garantido por lei o direito a saneamento básico fica desprotegido e em meio ao lado mais cruel do capitalismo: manda quem tem dinheiro.

Nos municípios mais privilegiados, por exemplo, certamente haverá uma otimização do contrato de programa. E o superávit que seria gerado na hipótese de contrato de programa tende a ser consumido nesse processo de muita concorrência na licitação. Os municípios deficitários não serão assim mais subsidiados.

Ou seja, a prestação de serviço de forma regionalizada será muito mais difícil, pois essa medida inviabiliza os subsídios cruzados e a população mais carente, certamente, ficará prejudicada. 

A pergunta é: como ficarão esses municípios que dependem dos subsídios cruzados? Em um momento em que os recursos para a saúde estão congelados por vinte anos, ainda temos que lidar com mais essa medida que vem, pelo tudo o que aqui foi considerado, no sentido de aumentar as doenças que um saneamento básico evitaria. É bem possível que jamais teremos investimento no saneamento básico justamente nos municípios cuja população mais precisa.

Não é preciso ir muito longe para perceber o quão excludente é esse tipo de decisão. Quando passamos pela privatização da energia foi preciso que Lula criasse o “Luz Para Todos”, um programa público com recursos públicos, para garantir a universalização da energia elétrica. Tudo isso porque a inciativa privada se negou a iluminar os rincões do país.

Outro exemplo é o estado do Tocantins. Após a privatização da Saneatins, a empresa devolveu ao estado cerca de 78 municípios que eram deficitários, e ficou apenas com o controle de 47 municípios que apresentavam níveis mais altos de rentabilidade.

A ideia de que o Novo Marco do Saneamento Básico é impulsionado pelo interesse do capital se reforça quando descobrimos quem é o relator do PL no senado. o senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), um dos políticos mais ricos do país e acionista da Coca-Cola no Brasil, que consome enorme quantidade de água. Essa gente não dá ponto sem nó e tenta montar uma narrativa complemente surreal para enganar o povo, nos convencer de que nossas estatais de saneamento básico não são capazes de resolver os problemas. O que eles não contam é que a raiz do problema não é a CEDAE ou qualquer outra empresa pública do setor de saneamento básico e sim os gestores, que fazem, de maneira proposital e criminosa uma péssima gestão para justificar a privatização, através do Novo Marco.

O resultado disso é o avanço de doenças derivadas da falta de saneamento, o que por sua vez poderá sobrecarregar a atenção primária do Sistema Único de Saúde, o SUS, fazendo com que os atendimentos aumentem para além da capacidade. E com isso o Brasil, mais uma vez, vai na contramão do que acontece no  mundo. A privatização dos serviços de saneamento e água tem se revelado desastrosa no mundo. Cidades como Buenos Aires, Berlim, Paris e Budapeste são algumas das mais de 300 ao redor do mundo que decidiram retomar o controle sobre seus serviços após os péssimos resultados com a privatização. De 2000 a 2017, foram 900 reestatizações!

Por fim, fica claro que a lei está alinhada com o projeto político neoliberal iniciado no governo Temer e reforçado no atual governo. Se hoje existem pessoas sem saneamento básico, vivendo nos esgotos e sem água potável é graças a direita capitalista que, no lugar de aplicar a Lei e fazer valer a Constituição, prefere abandonar a população mais pobre de forma criminosa, fingindo não ver o problema da falta de saneamento básico e dando como única solução a privatização das empresas estatais. Essa é a resposta para a pergunta que fizemos no início. Isso não resolverá nada, muito pelo contrário.

O saneamento básico em suas mais diversas dimensões como saúde, moradia, meio ambiente e alimentação, deve ser encarado como direito humano, direito de todo cidadão e por conta disso é dever do Estado, e não de empresas privadas, garanti-lo.

Está bem explicitado de que tudo foi feito para favorecer as empresas privadas. É possível acreditar que a iniciativa privada terá interesse de cuidar do saneamento básico dos municípios mais pobres, mesmo eles gerando menos lucros? Por que dificultar a universalização dos serviços? Como vamos garantir o acesso da população nas áreas rurais e das periferias urbanas a esse serviço essencial?

Que espécie de senadores que o Brasil elegeu que permitam que isso aconteça? Que compromisso tem com a nossa soberania? Por que Bolsonaro, esse mesmo que mostrou inúmeras vezes que não se preocupa com a vida das pessoas mais pobres, defende tanto essa privatização?

Água virou uma mercadoria só para quem pode pagar.

A aprovação dessa lei vai representar um aumento significativo da exclusão das pessoas em processo de vulnerabilização, muito maior do que se tem hoje. Há a possibilidade de eu estar errada? Não descarto. Pode ser que Paulo Guedes esteja preocupado com a população mais carente e, por isso, está feliz com esse “novo marco”? Não. Acreditar nisso seria como acreditar que as regiões Norte e Nordeste do Brasil são influenciadas pelo inverno do Hemisfério Norte ou acreditar nos títulos de mestre e doutor de quem anda com Bolsonaro.

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