Sem mil vidas

Sinto muito. Sinto tanto. Em termos de número de mortos, é sempre estranho achar que cem mil é uma tragédia maior do que cinquenta mil, do que dez mil, do que mil… Quando a morte pode ser evitada, essa perda sempre será uma tragédia ao menos para uma mãe, um pai, um irmão ou um filho.

Falhei como educadora. Minha didática não serviu. Não teve voz. Não repercutiu.

Falhamos como escola quando estamos aprendendo, ao invés de frear um crime contra a humanidade, a conviver com a tragédia e a normalizar o que é abominável.

Ouço ainda que exagero com meus cuidados, que estou ficando deprimida e que posso ficar doente sem socializar, em suma, que “não é para tanto”. Não ouço isso de uma pessoa que tenha votado em Bolsonaro – desses eu recebo o deboche, o “e daí?”.  Ouço de quem, gozando saúde, acha que seja imortal e, perante o ilusório infinito, considera que uma dose de egoísmo não faz mal.

Diante dos números, há tempos ando preocupada com quem fica doente.

Fico muito mais tensa, porém, com quem está andando feliz no inferno.

Não que eu não considere a possibilidade de sorrir. Longe de mim… logo eu dada a tantas gargalhadas. Não é isso. Considero repugnante quem não se comove com mais de mil mortes (que poderiam ter sido evitadas) por dia e que, mesmo não tendo votado em Bolsonaro, repete as palavras desse genocida: “Vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”.

Pessoas com nomes e com futuro se foram precocemente e as famílias não puderam velar os corpos levando – o que já era traumático – a um nível insuportável.

Por mais que alertasse para essa dor da perda e de não poder viver o luto, falhei.

Não consegui barrar um extermínio.

Eu, professora, não soube explicar. Não comovi. Não empolguei.

Enquanto falava, vi a turma me dando as costas e ir brincar no pátio antecipando um recreio.

Gostaria de ter conseguido sensibilizar e fazer dos números, como sempre fiz, uma demonstração. Sinalizei que cada ponto no gráfico continha uma história e era um ser humano. Mostrei o número de profissionais de saúde que trabalhavam – e continuam trabalhando –  sem equipamentos de proteção por negligência do Estado, apontei quantos morreram ao cuidar das pessoas contaminadas. Mas sequer você – que me ouviu – tem andado com máscara ou ficado em casa tendo condições para isso.

Você que votou em Bolsonaro, tem agido como ele. Você que não votou em Bolsonaro, também.

Falando nele, gostaria de deixar registrado que nós que estamos indignados não sejamos, talvez, a maioria. Mas somos muitos.  E não desistiremos de denunciar os crimes cometidos e de cobrar a responsabilidade que Bolsonaro tem de proteger a população.

Seguimos ainda, deste lado, mobilizados em respeitar as vidas e em não esquecer dos mortos.

Lutaremos para que a justiça apareça e puna o assassino.

Sim, assassino. 

Não evitar a morte, tendo maneiras de fazer isso, é uma forma de matar.

E será sempre um assassino se pudesse ter evitado uma morte e não o fez de propósito. Porque não quis. Pelo contrário, criou condições para isso.

Sinto muito. Sinto tanto por estar sem tantas vidas. E, prometo, como muitos de vocês, que seguirei tentando.

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A ilustração desse texto foi feita pelo artista Sérgio Ricciuto Conte que ilustrou Isaac no Mundo das Partículas e outras capas de livros meus. Ricciuto também falhou. Mas, como eu e muitos de vocês, segue também tentando.

6 comentários em “Sem mil vidas

  1. Falhamos todos, não apenas um que podendo e devendo fazer e proporcionar não o fez, mas falhamos como humanidade, falhamos como educadores, falhamos na solidariedade, no apoio, na divulgação da verdade, e tudo devido à cegueira do eu, deixando morrer o outro, e mais um, e outro, mil e milhares… excelente texto.

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  2. Obrigada por me representar e dizer tudo que eu gostaria. Sou uma idosa de 78 anos, divorciada, os netos longe, e isolada. Sempre procurei participar dos movimentos sociais aqui em bh agora travados. Ler artigos e acompanhar blogs como os seus é meu refúgio. Lembro de Chico Xavier: tudo passa, vai passar. E tenho esperança …e muita paciência!

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  3. Hoje acordei cedo e fui verificar meu correio . Encontrei outro de seus textos que sempre me dao muita luz e esperanca, daí que disse para mim mesma : vou responder esse email . Preciso dizer pra Elika o bem que me faz ler o que ela escreve. Entao , vou provar escrever algo como resposta a esse correio eletrónico . Se ele chegar nas suas maos, nos seus olhos… me avise pois quero lhe escrever mais coisas.

    Um abraco fraternal

    Celia Alencar

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  4. Elika,

    A noção de “banalização do mal” da Hannah Arendt parece ganhar um pesado sentido nesse momento, não te parece?
    Fique com meu abraço e minha solidariedade, amiga.

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    1. Eu te li. e compartilho de sua tristeza. Também eu, educadora, não consegui e não consigo contribuir efetivamente para a empatia desses nossos jovens. No entanto, tento. E continuarei tentando, porque acho que é mesmo isso o que nos resta fazer quando não cabe a nós o poder de termos poder em sociedade. sigamos, portanto, em luta. E em luto. abraços cordiais.

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