Espírito de porco

Quando eu era criança, viajava sempre para Itajubá, uma cidade pequena no Sul de Minas. Mamãe nasceu lá. Vovó teve 16 filhos. Então, o que não faltava era primo para brincar e chácaras para visitar.

Era véspera de Natal aquele dia. Vovó queria assar um leitão e lá fomos nós para uma roça pegar um. Lembro-me de adultos conversando e mamãe fazendo a encomenda para o dono do local.

Um rapaz de chapéu de palha e galochas foi com a gente até o chiqueiro. Mostrou vários porquinhos. Eu, criança, fiz uma farra com os olhos vendo aquela bicharada fedorenta no meio da lama fazendo um barulho engraçado.

De repente, o moço pegou um pelo rabo e, com um facão, espetou na barriga de um dos porquinhos que gritou, berrou, se esgoelou como fazem os que pedem socorro.

Saímos todos dali depois disso. Entramos na casa para comer biscoito de polvilho feito na lenha.

No meio do café, fugi e corri para o chiqueiro. O porquinho mal respirava e já não tinha força para gritar mais. Eu estava assustada vendo uma vida terminar tão lentamente de forma tão rápida, se é que me entendem. O sentimento era confuso mesmo e há um lugar dendagente que os paradoxos conversam entre si. Enquanto o visitava, o moço abriu a porteira.

Pegou o bichinho pelas patas traseiras e levou para um tanque grande.

Curiosa que sempre fui, segui os dois: o homem e o porquinho morto pelo homem.

No tanque, ele amarrou as patas do animalzinho em uma espécie de cabo de vassoura. Com o mesmo facão, rasgou toda a barriga do porco e retirou todas as suas vísceras. Era a primeira vez que via o avesso na minha vida.

E fiz em silêncio como os que ouvem um barulho estranho no meio da noite. O olhar procurava entender o que estava acontecendo.

Voltando para a casa da vovó, ela pegou a carcaça do leitãozinho, alegre como os que veem uma pururuca. Temperou bem, me explicou como fazia e disse que, no dia seguinte, ia pedir para o Seu Paulinho da padaria assar no forno grande que tinha lá.

No final da tarde daquele 24 de dezembro, tocou a campainha. Era um outro moço com um tabuleiro grande com o porquinho marronzinho de tão assado.

Vovó enfeitou, botou até algo na boca dele como vemos em filmes e desenhos.

Pela primeira vez na vida, entendi que o que eu comia e chamava de carne, gritava e sentia alguma coisa ao morrer. Parece óbvio, mas não era para mim.

Não consegui sequer provar. Ver os olhos de quem se despediu querendo ficar gerou, em mim, um certo constrangimento.

Entendi, como os poetas, que não se assiste impunemente a nenhum adeus.

Sobre Ensino e Aprendizados

Sempre amei dar aula. Quanto mais agitada a turma, sentia-me mais desafiada. Tive e mantive amizades com alunos e alunas que eram extremamente rebeldes.

Passei anos estudando e aplicando novas metodologias em sala de aula que podemos trabalhar, para além dos conteúdos, novas competências como o prazer de atuar no coletivo. Daí veio a pandemia e com ela um ensino remoto que não é sinônimo de ensino à distância (que há todo um preparo das aulas com muita antecedência, material didático impresso voltado para isso e encontros presenciais esporádicos).

O ensino remoto é outra parada.

Aqui a gente se vira com o que tem em tempo recorde. A aula começa e as câmeras estão todas fechadas. A aula termina e continuo sem ver nenhum rosto. Não dá para obrigar ninguém a abrir a câmera porque muitos não têm câmera. Outros ficam com vergonha da casa ou tem um irmão dormindo ali atrás. Ou seja, seria uma invasão de privacidade. O jeito é ninguém ver ninguém.

O mundo acabando lá fora – até mesmo dentro de muitas casas – e eu, às sete da manhã, com minha mesa digitalizadora projetando meus gráficos, minhas equações e resoluções de problemas que envolvem variáveis como velocidade, aceleração, valor da carga, massa…

Todos os dias, vem à minha cabeça a imagem dos músicos do Titanic. No meu caso, não sei tocar violino e o que me deram sequer tem cordas. Mas sigo tentando fazer algo bonito. É isso que quero dizer.

Durante o contra turno, fico à disposição para tirar dúvidas. Sempre aparece alguém para justificar alguma falta ou atraso na entrega de uma atividade assíncrona.

Tem de tudo.

Mãe que fugiu de casa, vó que foi morar com a família depois da morte do avô, morte do avô, morte do tio, morte d… e faltas. Faltas que se justificam com outras faltas como falta de Internet, falta de vontade e falta de comida.

Há muitos que conseguem se concentrar. Isso é um fato. Tenho alunos e alunas que demoravam quase 3 horas para ir e voltar do CEFET e estão aproveitando esse tempo extra que o ensino remoto dá para ler e estudar.

Uma questão preocupante é a cola. Não dá para passar nenhuma atividade ou mesmo prova à distância sem que haja transferência e troca de informações entre eles. Antes da pandemia, eu já estava modificando a minha forma de avaliar. Utilizando uma metodologia adequada, permitia que a prova fosse feita por um grupo. Quando diga feita é feita mesmo. Era um grupo que fazia as questões da prova. Elaborava cada problema. Há tempos acho que uma boa pergunta feita com conhecimento e criatividade vale mais do que uma resposta.

Mas com ensino remoto tudo fica mais difícil.

Estou tentando fazer algo com a mesma essência que fazia presencialmente: incentivo pelo trabalho coletivo, pela pesquisa e pela criatividade. Não encontrei ainda um caminho. Enquanto isso, aposto no velho e poderoso diálogo.

“No lugar de colar, formem grupos, aproveitem a oportunidade. Explique o que fez para quem não conseguiu. Lembrem-se que passaremos mais alguns meses assim e que há uma formação em curso que é a sua. Se não conseguir, venha até mim. Te darei quantas avaliações forem necessárias para que você suba sua nota. Mas quero ver o que você fez.”

Todo dia esse discurso. Hoje, uma nota sete me traz muita mais alegria do que um dez. Começou o ano letivo com todo mundo gabaritando e, agora, já tenho notas diferentes e debates sobre erros. Bem se sabe o quanto aprendemos com eles…

Por que estou dividindo isso com vocês? Pela vontade de compartilhar uma experiência que me trouxe muita dor e aprendizado nesses tempos tão difíceis. Sei que muitos que me lêem estão passando por isso e possuem diversas outras histórias para contar.

Saudade demais de entrar numa turma barulhenta, de encontrar colegas no corredor da escola e esperar a minha vez de beber água no bebedouro.

Dói quando ouço que a categoria não quer trabalhar e por isso insistimos ficar em casa. Estamos trabalhando. O conceito de escola transcende um lugar cercado de muros. A escola está acontecendo. O ponto é que não é fácil ensinar presencialmente quando temos medo de morrer. Nós, da Educação, temos um quê de Paulo Freire e ensinamos, sobretudo, o respeito pelo coleguinha, mais precisamente, pela vida do coleguinha.

Já tem pesquisa feita em lugares pelo mundo mostrando que profissionais da saúde e da educação são os que mais têm morrido em relação a outras profissões.

Sobre aulas, precisamos urgentemente melhorar a qualidade do ensino remoto dando condições para que crianças e jovens tenham boa Internet em casa e equipamento adequado para isso. E, antes de um tablet, que tenha comida dentro de casa porque com fome ninguém faz nada muito menos tarefas assíncronas.

Eu sei o quanto está sendo extremamente difícil. Para vocês, professores e professoras, eu queria deixar meu abraço. Mas um abraço daquele que só dá quem entende a dor do outro. Um abraço de troca. De conexão e de apoio.

Brincando de gangorra

Há exatos exatinhos quatro anos, esta foto foi tirada. Foi na noite em que conheci Pipo e ficamos conversando por sei lá meodeos oito, nove, dez horas e nunca mais nos largamos.

Estávamos cheios de planos antes da pandemia. Em 2020, o filme Hermanoteu seria lançado e iríamos participar de várias estreias pelo país. Eu como a primeira dama da Warner. Vejam vocês. Saindo de Madureira e entrando com convite vip nas sessões honrosas nas grandes salas de cinema. Também teríamos livros meus sendo lançados porque sou dessas de falar pelos cotovelos e escrever com os indicadores. E, claro, uma campanha na qual me imaginei correndo a cidade do Rio de Janeiro do Oiapoque ao Chuí.

Pandemia.

Desde março de 2020, estou trancada em um apartamento com ele que sofre diariamente pelas mortes que poderiam ser evitadas e por abstinência de palco. Pipo é do teatro e como integrante do grupo de comédia Os Melhores do Mundo já fez milhões de pessoas caírem na gargalhada por todo esse país.

Tinha espetáculo todo santo final de semana. Eu, que sempre dei aula e palestras em várias universidades e Institutos quase não sossegava em casa. A gente parecia aquele filme Feitiço de Áquila. Quando eu virava águia, ele virava o Pipo. Quando ele virava lobo, eu ia dar aula. Algo assim para vocês entenderem onde quero chegar. Agora somos o Feitiço do Átila.

Ontem caí na gargalhada no meio de uma frase. Eu tinha feito uma comidinha diferente e ele elogiou. Fiquei super feliz porque em 2021 a gente fica feliz por coisas que jamais iríamos imaginar. Tentei externar tamanho sentimento. “Ah, meu amor, eu cozinho pensando em voc…”. Quem disse que era capaz. Parecia a minha avó falando. Achei graça de lembrar da minha avó, mas mais do que isso. Ri como os que percebem o mundo girando e o quanto precisamos nos equilibrar em cima dele. Gargalhei como quem entende o que estamos fazendo por aqui. Abracei Pipo como os que agradecem.

Está difícil escrever para contar sobre outras gargalhadas esquisitas que ocorrem aqui entre nós. História não tem faltado. Mas quatro mil mortos por dia com cada vez mais pessoas pelas calçadas pedindo comida requer foco e tenho medo de ser um agente que dispersa nessa luta urgente. Queria, porém, dizer para vocês que dentre tantas coisas, temia por esse relacionamento que tanto me fez bem desde o primeiro dia. A gente nunca sabe como iremos reagir quando nos trancam dentro de casa e tem um vírus mortal lá fora.

Há muita miragem no deserto e eu sempre soube, como professora de física, explicá-la. Mas há os oásis também e tento usar a minha sobrevivência nesta pandemia para compreendê-los.

Pipo tem sido como aqueles que brincavam com a gente na gangorra do parquinho. Quando estávamos lá embaixo, somente com a ajuda do outro conseguíamos subir sorrindo. E quando estávamos lá em cima, era nossa vez de fazer o outro subir.

Permanecemos aqui trancados cuidando um do outro. Limpando a casa e testando os produtos de limpeza como ele acabou de me mostrar agora a embalagem de uma cera que prometeu fazer nosso chão de espelho e cadê.

Seguimos fazendo abdominais, pilates, comida e amor como aqueles que entendem a profundidade de um encontro que aconteceu a exatos exatinhos quatro anos atrás.