Gerações espontâneas. Um almoço com Bia, Claudinha e Eugênia.

Eugênia é mãe de Cláudia que é mãe de Beatriz que não quer ser mãe de ninguém.

Com quase oitenta anos, Eugênia que teve uma educação religiosa rigorosíssima casou-se virgem e tentou levar Cláudia sem sucesso para esse caminho. Beatriz nasceu sem que seu pai e sua mãe fossem sequer casados para desespero e vergonha de Eugênia.

Nada como o tempo.

Eugênia entendeu, assim como aprendemos com os livros de forma lenta e profunda, vendo Cláudia viver. Compreendeu que hímen não define caráter. E foi até aí seu aprendizado. 

Claudia educou Beatriz para ser independente, não precisar de macho e não desejar príncipes.

– Bia, seja feliz do jeito que quiser.

Hoje, Bia tem 24 anos, faz faculdade de teatro, dá aula de canto e para um monte de gente. Tem cabelo azul e se declara bi e não binária. 

Cláudia que achava que era prafrentex porque se casou depois da maternidade está aprendendo coisas ao conviver com os sovacos cabeludos de Bia. Com quase cinquenta anos, fez a transição capilar na pandemia e hoje está grisalha. 

Cláudia descobriu um tipo de liberdade como a dos urubus que não usam maquiagem, mas tem um voo calmo e belíssimo. 

Dona Eugênia não compreende os cabelos brancos de sua filha Cláudia e sempre comenta que a filha está envelhecendo – o que é o normal que aconteça com quem vive. Quando Cláudia explica para a mãe que está com quase cinquenta anos, Eugênia diz que ela pode estar assim, mas não parecer tão velha. 

– Pinta esse cabelo, Cláudia! 

Cláudia titubeia. Olha no espelho e reflete também sobre si mesma. 

– Bia, vou pintar meu cabelo e parar com esse movimento de ser bonita naturalmente que dá muito trabalho.

– Mãe, se você pintar seu cabelo, eu vou raspar meus sovacos!

Cláudia – que tem os sovacos raspados porque as revoluções, por vezes, são muito lentas – fica em silêncio pensando que talvez seja uma boa a Bia sem aquela cabeleira saindo debaixo dos braços.

– Mãe, você está linda assim. Está grisalha e está bem! Vó, deixa ela!

– Ah não deixo não porque tá feio. Tá envelhecida. E se pintar de muito preto também pode ficar estranho. Faz como eu.

Bia e Cláudia olham para Eugênia que está com o cabelo castanho claro com um rosto ótimo de quem tem oitenta anos bem vividos.

– Mãe, você fica linda assim ao natural. – Disse Beatriz.

– Beatriz, o seu cabelo é azul, Beatriz. – Observou Dona Eugênia.

Célia, irmã mais velha de Eugênia com cabelos branquiiiinhos branquiiiiiiionhos, chegou para almoçar e observou as três comendo.

– Ninguém de vocês pinta unha não? Que coisa horrorosa três gerações que não cuidam das mãos. Vou ligar para a Marinete vir aqui fazer as unhas de vocês agora! 

Taxonomia capciosa, indústria farmacêutica e tretas no Twitter. Minha modesta contribuição.

Com respeito a todas as partes no debate recente que vimos no Twitter sobre (o que é) Ciência que começou com a jornalista Cynara Menezes respondendo a uma publicação da cientista Natália Pasternack que, por sua vez, indignou-se com a Folha que divulgou a “Constelação Familiar” não alertando que se tratava de pseudociência, enfim, sobre esse “angú de caroço”, quero dar a minha contribuição porque acho que há verdades coexistindo. Se um lado está certo, não significa que o que pensa diferente está, necessariamente, errado. Cynara Menezes cobrou de Natália Pasternak o mesmo empenho que ela usou para falar contra as terapias alternativas para a indústria farmacêutica.

Pronto. Lá veio o tribunal do Twitter.

O assunto é delicado na medida que atualmente crer na medicina, à luz de tudo o que sabemos da indústria farmacêutica, seria a suprema loucura, se não confiar nela também não fosse uma loucura maior, dado todos os avanços que conhecemos.

Sabemos que nem todos os aspectos da sociedade industrial são maléficos. O desenvolvimento industrial, indubitavelmente, trouxe melhoras na expectativa de vida para uma classe privilegiada. Porém, nos locais onde temos miséria, não percebemos os benefícios de tantos avanços científicos. E isso não é um detalhe nesse debate complexo.

A solução para os problemas de saúde está longe de vir somente pela via da medicina. Precisamos considerar os fenômenos sócio-estruturais que afetam a nossa vida: a pobreza, as péssimas condições de trabalho, o estresse do tempo que perdemos indo trabalhar e a forma como nos alimentamos, para dar somente alguns exemplos.

Quantas descobertas médicas tiveram influência sobre o número de doenças causadas pela fome, pela falta de condições sanitárias e pela miséria? Problemas de saúde estão, em grande medida, conectados com direitos humanos, com a massificação da pobreza e com problemas de cidadania.

Ninguém aqui está negando o poder de um antibiótico ou de uma vacina para a diminuição da mortalidade e doenças infecciosas. Mas também podemos afirmar que a melhoria das condições de defesa do organismo se faz através de, por exemplo, uma nutrição melhor (com menos agrotóxicos e produtos industrializados) que é pouco debatida dentro de diversos consultórios (Por qual razão?).

Sabemos que a atenção médica é fundamental. Mas sabemos também que nossa saúde não melhorou com o aumento da quantidade de farmácias e das medicações que tomamos.

Caso tenhamos alguma emergência, uma dor aguda, um acidente grave, caso necessitemos de uma cirurgia ou soframos com o efeito de uma bactéria maligna em nosso corpo, a medicina será sim imprescindível.

No entanto, pela inexistência, em muitos cursos de medicina, do despertar da sensibilidade no futuro profissional de que assim como não existe uma divisão nítida entre o psicológico e o somático, tão pouco a vemos entre saúde e bem estar social, enfim, por essa carência de debate, o alcance da medicina, muitas vezes, é extremamente limitado e sua prática, a depender do profissional, até mesmo mais prejudica o paciente do que promove sua cura.

Para quem já conviveu com uma pessoa que cursa medicina, sabe que não é uma mentira que durante todo o treinamento, muitos estudantes passam a associar os sintomas e as doenças com o nome comercial de remédios. O gasto anual com o marketing dos produtos farmacêuticos que ocorre dentro das universidades e de consultórios não pode ser desconsiderado nesse debate.

Congressos científicos, auxílio em pesquisa, pagamento de passagens e estadias, brindes, assinaturas de revistas… tudo é feito para envolver profissionais de saúde em uma espécie de doutrinação.

Quem de nós sairia imune se submetidos ao bombardeio diário de propagandas feitas por pessoas de grande prestígio na área que estamos estudando? Vamos desconsiderar ou fingir que isso não acontece dentro das universidades?

Desde a graduação até a pós (que deve ser permanente para uma pessoa que trabalha ligada à ciência), a educação médica – não só no Brasil mas em outros países capitalistas – é de tal modo desvirtuada pelos fabricantes de produtos farmacêuticos e de outros instrumentos desse complexo industrial que cabem as perguntas: Como distinguir o que é pesquisa do que é publicidade? Como separar a Ciência do capital? Podemos falar em objetividade na Ciência se temos empresas envolvidas no resultado das pesquisas? Vamos negar que o mercado da Medicina é gigante e cativo? Em que medida não estamos sendo ludibriados com a falsa imagem de uma benevolência conspícua de produtos da indústria farmacêutica da mesma forma que a indústria de armamentos projeta uma falsa imagem de segurança para quem anda armado?

Apontar isso não é ser contra a Ciência. É defendê-la sem ingenuidade ou sem precisar flertar com uma linha filosófica chamada de positivismo. Posso ser contra o negacionismo sem ser uma positivista. E o problema dos debates rasos que as redes promovem é que se você não se enquadra em um conceito, por tabela, é definido por um outro que resta nessa esteira dicotômica em que digressões não são permitidas e os julgamentos são instantâneos.

Não podemos fechar os olhos que muitos enfoques dados aos problemas de saúde só beneficiam o complexo industrial de fármacos. Dito de outra forma, a estratégia desenvolvida para resolver problemas de saúde e a forma como esses são definidos constituem, em grande medida, um reflexo de como somos encarados por uma elite dominante. O profissional de saúde é, assim, um executor e não um criador dessas diretrizes como muitos acham que são.

O caminho da saúde da população não está, como diria um positivista, somente na Ciência – ainda que esta seja indispensável na discussão. Quantas tomadas de decisão sobre como, por exemplo, uma tecnologia deva ser aplicada e difundida são influenciadas por uma consciência das necessidades coletivas? Sabemos que muitas decisões são ditadas pelo critério de lucratividade. Quantas indústrias de drogas têm ambição de produzir remédios que não sejam lucrativos?

Por fim, não somos máquinas e passíveis de definição por equações matemáticas. Somos sensíveis e abertos ao que acreditamos. Por isso, a neurobiologia do efeito placebo é muito mais complexa do que imaginávamos. A nossa recepção para um placebo envolve os mesmos neurotransmissores e regiões cerebrais ativados pelos remédios. Nessa esteira, um medicamento feito à base de farinha pode sim amenizar os sintomas de uma doença grave (atenção aqui que eu disse “amenizar” e não “curar”). Por outro lado, nem só de teorias científicas é feito o saber. É perfeitamente possível que algo funcione muito bem sem que saibamos explicar por quê. Pode ser até que a simples expectativa de cura já provoque um bombardeio de reações fisiológicas reais.

Diante tudo isso e mais um tanto de coisas que não trouxe aqui, cabe sim a pergunta feita por uma jornalista para uma cientista no Twitter que foi por muitas pessoas, naquela árida rede, considerada ofensiva. Talvez, a forma e o timing da pergunta da Cynara Menezes atrapalharam um tanto. Pelo fato de conhecê-la bem, entendi como um pedido de reflexão sobre nossa sociedade e não como uma defesa da Constelação Familiar – que Cynara sequer mencionou.

Por que profissionais da saúde não gastam a mesma energia que dispensam para tratamentos sem comprovação científica para falar, também, sobre abusos de diagnósticos criados por mentalidades doutrinadas a rotular pacientes e enquadrá-los numa taxonomia muitas vezes capciosa?

A pergunta em si é um pedido de socorro.

Ao médico é atribuído, em grande medida, um caráter de infalibilidade. O poder do médico é tanto que pode levar (e leva inúmeras vezes) a abusos graves como indicações cirúrgicas sem necessidade, por exemplo, ou uma piora no estado do paciente sem que o médico seja responsabilizado por isso. Dado a nossa realidade, não sabemos se a culpa desse comportamento (que não é raro em consultórios) é dos incentivos financeiros ou de uma formação médica capitaneada pelas indústrias farmacêuticas e de equipamentos.

Não é bom refletirmos sobre isso?

Ou vamos negar o quanto o capitalismo modificou como as verdades são evocadas na nossa sociedade?

Reitero a minha admiração e respeito a todas as partes envolvidas nesse debate. Espero ter contribuído minimamente para essa discussão sabendo que as redes sociais e muito menos esse texto dão conta da complexidade do tema.

Sobre os nossos vulcões

Estava pela casa andando no modo aleatório, pegando uma roupa no chão aqui, colocando água para a minha gata, levando o lixo para fora, achando uma tarraxa de brinco no tapete sem querer, observando os livros que preciso ler, vendo uma mancha no sofá, conferindo se tem arroz para fazer o almoço e pensando no meu futuro gabinete quando, de repente, o Pipo me aparece indignado:

– Amor, você acredita que tem gente que mora perto de um vulcão mesmo sabendo que ele pode ficar ativo a qualquer momento? Imagina só, você está lá com sua família sabendo que pode morrer a qualquer momento!

E continuou a falar sobre lavas, fumaça tóxica, nuvens de fuligem, dióxido de enxofre, fluxo piroclástico (o que destruiu a cidade romana de Pompeia no ano 79 d.C.) e outras formas de morrer por estar perto de um vulcão.

Pipo estava de cara com essa (Teimosia? Obstinação? Insistência? Pertinácia? Intransigência? Excentricidade? Relutância? Ignorância?…) ignorância. Isso, ignorância. Gosto dessa palavra para esta situação porque vem do sentido de ignorar uma informação. Ignorar não necessariamente é falta de conhecimento. Ignorar pode ser sinônimo de muita sabedoria como a que vi em Riobaldo, do qual falarei adiante.

Enfim, Pipo estava passado com a ignorância de quem vive perto de um vulcão.

Ouvi meu amor atenta como os que refletem mirando um horizonte.

Daí, lembrei-me de uma criança olhando para o céu e perguntando para a mãe o que era aquilo passando pelas nuvens. A mãe explicou que se tratava de um meio de transporte super rápido que viaja pelo ar e que pode nos levar a vários locais do planeta em um curto intervalo de tempo.

A criança ficou curiosa. Queria saber como era possível esse voo, quantas pessoas cabiam, como algo pesado era sustentado pelo ar, como pousava, enfim, fez muitas perguntas como certamente muitos de nós também já fizemos, mesmo já adultos, diante de uma aeronave parada no pátio de um aeroporto.

A mãe falou sobre hidrodinâmica, equilíbrio de força, pressão e bababá bububú. A criança ficou reflexiva.

Até que ela perguntou:

– E não cai?

E a mãe respondeu:

– Bem, cair cai, mas é raro e…

– E morre todo mundo?

– É… Bem… quando cai… mas é raro cair…

A partir daí a pequena mudou o objeto da sua perplexidade.

– Por que cargas d’água uma pessoa podendo ficar em segurança no chão entra em um negócio daquele tamanho sabendo que pode cair e morrer?

O avião era para a criança algo como um vulcão é para o Pipo.

Creio que muita gente aqui faz um punhado de coisas que gera incompreensão em outras. Eu, por exemplo, tenho a política como um vulcão. Um galerão já veio me perguntar por que eu, que podia estar calma no meu canto lendo, escrevendo e dando aulas, desejei e sigo muito animada para estar na Alerj.

Por que as pessoas escalam o Monte Everest? Como tem gente que tem coragem de jogar futebol sob o constante risco de receber uma canelada no joelho? Por que damos saltos mortais e isso virou modalidade olímpica? De onde vem a tranquilidade para usar uma panela de pressão? Por que pagam para pular de paraquedas? Como conseguem beber refrigerante, consumir tanto açúcar refinado, andar de moto, mergulhar em cavernas, colocar piercing no nariz, fazer lipoaspiração, andar pelas ruas do Rio de Janeiro, dirigir em estrada, tirar cutículas ou amar alguém? Por que nos arriscamos tanto?

Impossível não me lembrar de Riobaldo, narrador-personagem do romance “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa. Riobaldo vira e mexe falava:

“Viver é muito perigoso”.

Eu, amante da Ciência, das técnicas, dos números, dos cálculos e das previsões que nos dão tempo para nos proteger de alguma ameaça, já pensei muito – quando resolvia equações envolvendo probabilidades – sobre o quanto somos reféns do imprevisível.

Ao ler Guimarães Rosa, compreendi na literatura – e não na matemática – que “o mais difí­cil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra”, como falou Riobaldo com seu maravilhoso dialeto.

Ou seja, o perigo não é se perder no meio dos próprios objetivos, ignorar os riscos e não enxergar a morte iminente.

Morar perto de um vulcão e andar de avião pode dar, de fato, a chance para fatalidade.

Mas…

Estar perdido é a própria condição de viver. Nosso querer não tem explicação e há um tanto de beleza nessas incompreensões.

Há como viver e não estar em perigo? Há uma melhor oportunidade de se chegar aonde não se espera do que fazer algo novo?

Fazemos boas especulações de como surgiu o Universo, mas por que ninguém ainda descobriu a origem desse ímpeto que vem de formas diferentes em cada pessoa? Estar em uma zona de conforto não é um tipo de morte em vida?

É isso. Estou aqui com uma tarraxa de brinco na mão pensando sobre os nossos vulcões.

—–

Em tempo, no mundo inteiro, 550 milhões de seres humanos moram perto de vulcões ativos, muitos desses com excelente qualidade de vida.

Pra frente, Brasil? – Sobre a Copa 2022.

Estou aqui pensando na Copa que se aproxima. Antigamente, tudo era menos confuso. Enfeitar as ruas, usar a camisa da seleção e pendurar o bandeirão do Brasil na janela mostravam apenas uma conexão com uma festa mundial. 

O serviço público tinha problemas, nas escolas faltava estrutura, havia desemprego, havia corrupção em muitos lugares deste país mas… era a Copa. O Brasil ia jogar, era dia de festa e ninguém queria discutir quem era o culpado das mazelas desta bagaça.

Agora não. Agora tá tenso. 

Hoje a gente está discutindo –  a menos de um mês do início da Copa – sobre os sentimentos que devemos ter quando o Brasil estiver em campo.

Tanto para quem é da direita quanto da esquerda há uma dúvida sobre como proceder. 

Deste lado (que considero o correto da história), não sei como vamos nos comportar quando sair, por exemplo, um gol do Neymar. Nem sei se vamos conseguir torcer para que ele faça um gol. A felicidade de quem está ao lado dos que praticam violência política nos coloca num estado confuso ainda que essa pessoa faça um gol para o Brasil.

Vestir verde e amarelo é outra questão que tem sido discutida. Há quem diga que será o momento perfeito para resgatar a nossa bandeira. Um querido amigo que ama futebol comprou animado uma camisa verde e amarela no dia seguinte que Lula foi eleito. Gritou alegre: “essa bandeira é noossaaa!”. Falei com ele ontem perguntando sobre a sensação de vestir novamente a camisa com as cores da bandeira. A empolgação não mais se fez presente. Ele me disse que está com medo de ser confundido com quem canta hino para pneu, se pendura na frente de um caminhão ou um nazista. Minha tia que comprou também a camisa na empolgação disse que ficou a cara da Cássia Kis. “Criei ranço da blusa”, disse me oferecendo.

Do lado de lá, também não está fácil. 

Se o Brasil ganhar, vai ser um clima de festa que vai estragar, segundo disseram, o foco da “luta contra o comunismo”. Se por um acaso Neymar se machucar e o Brasil ganhar mesmo assim, Alexandre de Moraes será xingado como tem ocorrido até quando chove. Se o Brasil perder, vai ser derrota sobre derrota e não vão poder chamar as forças armadas para verificar se o jogo valeu. 

Fico pensando em todo mundo de qualquer espectro político se vestindo verde e amarelo e saindo pelas ruas exalando felicidade em dia de jogo. Como iam conseguir identificar quem é o cidadão de bem e quem é o cidadão de boa? Da minha parte, acho que podemos andar sim com o verde amarelo. Mas sugiro que seja em grupos e marchando para gerar memes. 

Enfim, bons tempos aqueles que a gente soprava uma vuvuzela verde e amarela e cantava emocionado o hino com a camisa da seleção antes que vários homens começassem a correr atrás de uma bola. Era um tipo de delírio que o esporte,  assim como o samba, nos permite: algo que nos anestesia pela alegria e não pela estupidez.

Falta menos de um mês para a Copa e ainda há gente que não aceitou o resultado das urnas. O comportamento de quem veste verde oliva também não tem ajudado.

Fica aí minha dúvida. Como todos juntos vamos pra frente, Brasil?

Expulsar é manter no mundo. Educar é transformar esse mundo. Uma breve reflexão nesses tempos difíceis.

Em tempos de tanto ódio, estamos também testemunhando comportamentos bastante violentos nas escolas. Grupos de jovens se unem para destilar preconceito, seja no pátio da escola, seja em um grupo de WhatsApp ou em uma live feita em alguma rede. Certamente, já deve ter chegado para você algum vídeo denunciando essas violências.

O vídeo mais recente que eu vi mostrava uma live no TikTok, feita por estudantes de uma das escolas mais conceituadas da capital gaúcha.

Reproduzindo o que, suponho, ouvem em casa, adolescentes proferiram sorrindo frases gordofóbicas, frases xenofóbicas contra nordestinos, ofensas contra professores e professoras de escolas públicas, pessoas pobres e pessoas que votaram no Lula de forma geral. Até o auxílio emergencial entrou na pauta desse vídeo.

Uma das adolescentes disse – rindo e de forma debochada – que o benefício de R$ 600, criado pelo governo federal para garantir renda mínima aos brasileiros em situação de vulnerabilidade durante a pandemia de Covid-19, daria para ela comprar um sorvete de uma marca específica citada e um papel higiênico folha dupla.

Não tem como não se indignar perante um discurso desses vindo de jovens em formação.

O fato de existir escola particular é uma razão forte (ainda que não seja a única) para que surjam falas preconceituosas como essa em alguns adolescentes. Há uma visão deturpada, somente por estar ali em um lugar de muito privilégio, de que o rico é necessariamente mais inteligente ou uma pessoa melhor. Fica nítido que há uma diferença gritante de classe. Se essa injustiça não for discutida do portão da escola para dentro, essa estrutura social vai parecer algo natural, porque assim está sendo tratada.

Assim como é um erro a existência de hospitais particulares, a existência da escola particular é um grande equívoco da nossa sociedade, ainda que haja exceções. No sistema educacional que temos, a escola particular não representa apenas uma opção para uma educação específica para certas comunidades (étnicas ou religiosas, por exemplo), por qualquer motivo que seja, mas na maioria dos casos representa privilégio e desigualdade de acesso. Por que uma pessoa merece ser melhor atendida do que outra? Poder pagar para um serviço é uma justificativa decente para a pergunta anterior?

Se estudantes que frequentam escolas particulares não forem estimulados a refletir sobre essa estrutura, o que estão aprendendo, afinal, para além do conteúdo “que cai no Enem”? E não me venha falar que educação vem de casa. Educação vem de muitos lugares, inclusive da escola.

Tem mais uma coisa que quero colocar aqui.

Brutos que nos tornamos quando estamos cheios de ódio, exigimos prontamente, como vemos nos comentários das notícias envolvendo esse vídeo, a imediata expulsão da escola de quem protagonizou o ataque e as ofensas.

Entendo o ódio direcionado a quem odeia, no caso, esses adolescentes. Mas, supondo que tanto preconceito seja aprendido no ambiente familiar, fico me perguntando onde (meudeus onde?) estudantes que foram expulsos de uma escola por se comportarem de forma odiosa irão enxergar a gravidade do erro que cometeram? Seria em casa – local onde ele encontra os seus espelhos? Seria em outra escola – possivelmente com a mesma estrutura que a escola que os expulsou?

Como educadora, sofro ao ver que a escola não conseguiu, em um caso como esse, ser um espaço de aprendizado efetivo e que tenha que recorrer à expulsão ou a uma punição que não ensina, pelo contrário: existem, como acompanhamos em inúmeros casos, grandes chances da punição aumentar o ódio no adolescente.

Insisto: se não for na escola, onde se dará esse aprendizado?

Penso que um lugar onde exista uma concentração de profissionais da Educação deva ser o local ideal para pensar em estratégias para que estudantes reflitam sobre o quão perverso foi o que fizeram.

Expulsar ainda é manter no mundo. Educar é transformar esse mundo.

Não é fácil. Eu sei.

Educar requer tempo. Compreender que há ritmos de crescimento e que não basta falar para ser ouvido.

Para que queiram nos escutar, temos que ter calma, criatividade, paciência e sabedoria perante esse grande desafio. E é necessário também ter muita sensibilidade, já que estamos, por vezes, fazendo jovens refletirem sobre valores equivocados que recebem, muitas vezes, da própria família. É normal esse conflito e, por isso, é saudável que crianças e jovens convivam em um espaço que permita e que estimule, nas mais diversas formas, o diálogo.

Educar movido pelo ódio é punir, e punir nem sempre (ou quase nunca) educa. Quando não vemos efeito imediato na educação movida pelo amor não foi porque erramos, e sim porque não tivemos tempo suficiente para acertar ou para ver a semente brotada.

Assim como o lixo colocado para fora de casa continua dentro do planeta, um cruel adolescente pleno de preconceitos com uma visão deturpada da realidade e expulso… enfim, esse adolescente expulso de uma escola seguirá dentro da sociedade. Continuando com a metáfora, é necessário não produzir tanto lixo e reciclar o que estiver ao nosso alcance, porque se livrar de algo simplesmente “jogando fora” não é possível, como bem sabemos.

Muita gente já me disse que não devemos ser tolerantes com intolerantes. Concordo com Popper, o filósofo que trouxe essa reflexão. Mas o que coloco aqui é anterior a isso: como fazer com que a pessoa entenda que está sendo intolerante? Como não produzir ou reduzir o surgimento da intolerância?

Para finalizar, antes que me julguem, sei da dificuldade e do quanto poderia ser cruel fazer com que a pessoa ofendida fosse obrigada a conviver com o opressor. Jamais sugeri isso, e tampouco sugiro isso com esse texto, porque creio que há inúmeras outras saídas para situações como essa, que não incluem maltratar ainda mais a vítima. Mas, para encontrar essas outras saídas, precisamos nos propor essa difícil reflexão.

A família educa e a escola também. Se ambas falham, qual a chance do real aprendizado acontecer?

Apenas refletindo aqui sobre tudo isso e compartilhando com vocês.

(Elika Takimoto – Professora do CEFET/RJ e deputada estadual PT-RJ)