Não escrevi…

Gosto de olhar para trás, dessa parada de retrospectiva, de fazer planos, dessa ideia de ciclo.

Estava aqui vendo meus textos desde 2013 e lendo sobre as minhas façanhas ao longo do ano que se encerrava. Resumiam-se praticamente a quantas crônicas escrevi e livros que li.

Fiquei assustada como produzi muito menos desde 2019 (o que aconteceu mesmo nesse ano, hein?). Minhas leituras se perderam, logo eu sempre dada a um bom romance, amadora de livros pesados que me levavam para uma longa viagem. 

Esse governo que está chegando ao fim foi um buraco negro. Sugou minha criatividade, minha alegria, minha liberdade de rir e de comentar sobre qualquer coisa que visse de interessante na rua ou dentro de casa.  E meudeus como o mundo é um lugar curioso e engraçado.

Quando sentia vontade de escrever uma crônica sobre um dialogo que tive com o Pipo ou com minha gata, tinha a impressão de que eu pecava. Era como se eu estivesse rindo em um velório, entendem?

Esses quatro anos foram muito pesados. Para além da pandemia que foi algo extremamente traumático, vi de perto as Universidades acabando, a Ciência sendo questionada de forma criminosa, professores sendo considerados inimigos da sociedade, vi colegas em depressão, cada vez mais gente dormindo nas ruas, aumento do feminicídio, governante armando a população,… olha, nem sei como aguentamos tanto. 

Escrever sobre outra coisa soaria como um descaso. Seria como se estivesse pintando um quadro no meio de uma floresta que agoniza no fogo, passando uma receita vegana depois de ver um atropelamento, dançando em frente a um vulcão em erupção. 

Escrever, para mim, pareceu leviano diante o peso desses anos.

Quando, enfim, com vacina no braço voltamos a nos confraternizar, o assunto era monocórdio: a última de Bolsonaro e o perigo de uma reeleição.

Não consegui escrever sobre hoje ter um filho de cabelo rosa, uma filha de cabelo azul e outro roqueiro todo tatuado de desenhos infantis.

Não escrevi sobre o quanto a cozinha foi importante para mim na pandemia e todos os erros que cometi que me fizeram gargalhar sozinha.

Não escrevi sobre meus meses na fisioterapia para me preparar para a campanha, meus primeiros dias na Academia e sobre meus novos aparelhos auditivos que me fizeram chorar diante a fonoaudióloga.

Não escrevi sobre meus cabelos grisalhos e minha vontade de pintar todo santo dia, não escrevi que Nara ameaçou raspar o sovaco se eu pintasse meu cabelo.

Não escrevi sobre o quanto é bom namorar com quase cinquenta anos.

Não escrevi sobre o fato de ser filha de japonês e ter me dado conta o quanto isso é importante para mim e para muita gente.

Não escrevi sobre eu ter mergulhado no mar depois de mais de dez anos sem encostar meu pé em água salgada. Não escrevi o quanto ter vergonha do meu corpo contribuiu para isso.

Não escrevi sobre a Copa, sobre os filmes que vi, sobre o quanto a minha gaveta de calcinha foi importante na educação dos meus filhos e minha filha. 

Não escrevi.

Em compensação, canalizei toda a minha energia para que esse vagabundo alucinado não fosse reeleito me colocando também nessa disputa para ocupar um local de poder como resposta ao mal que nos fizeram.

Espero que 2023 seja um ano que possamos rir, falar bobagens, ler, desenhar, dançar, escrever e compartilhar nossas alegrias sem termos medo de ser inconvenientes. 

Que as instituições voltem a funcionar, que tenhamos confiança em nossos governantes e paz para trabalhar. Bem sabemos que duas mãos que se defendem não conseguem fazer outra coisa.

Que eu atenda a expectativa das 95.263 pessoas que votaram em mim porque disposição para trabalhar não me falta.

Que consigamos fazer literatura, arte, música e exercício físico para equilibrar nosso universo.

Lembrei de uma história de uma menina que sambou quando ouviu uma música no catecismo e a freira falou para ela: “Você vai para o inferno!”. E ela respeitosamente respondeu: “E lá eu posso sambar?”.

Vai levar um tempo para que tenhamos o mundo que queremos e para que nos livremos desse inferno de buraco negro. Até lá, acho que podemos e devemos sambar um bocado.

——

Em tempo, quando qualquer pessoa aqui em casa me pergunta coisas como “Onde está meu tênis?”, “Onde está minha camisa?”, “Onde está a vassoura?”, “Onde está o aspirador de pó?”, “Onde está o milho de pipoca?” e coisas afins eu sempre respondo: “Vê se está ali na minha gaveta de calcinha”. Sou dessas…

6 comentários em “Não escrevi…

  1. Daqui de Goiânia envio vibrações positivas para você. Você é uma pessoa que sempre admirei pelo seu trabalho e sua luta por um Brasil melhor, tenho certeza que você vai muito longe dentro da política brasileira.

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  2. Minha deputada! Indentifiquei-me com isso: a eleição do inominável “sugou minha criatividade, minha alegria, minha liberdade de rir e de comentar sobre qualquer coisa que visse de interessante na rua ou dentro de casa.” Vai melhorar! Abraços!

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  3. O samba nunca decepcionou e vamos construir uma civilização contra fel, moléstia, crime. Use Dorival Caymmi. Vá de Jackson do Pandeiro. Para um cara mesquinho. Luiz Gonzaga, Pixinguinha é certo. Tomar Noel, Cartola, Orestes, e Cae e João Gilberto. E para acontecer ler Vozes Nikkeis.

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