Mamãe não, gente. Mamãe não.

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Auto-retrato, Gustave Courbet.

Dona Lourdes é viúva, moradora de Madureira e cuida sozinha há anos de seus quatro filhos. Para ser politicamente correta, de três filhos e uma filha. Lourdes nasceu em 1957 e sua prole praticamente a obrigou a lidar com essa modernidade comportamental.

Julinha é toda feminista. Paulinho a chama de rádi fem. Até Dona Lourdes entender o que era isso foi um sufoco porque teve que se inteirar antes do que era “trans não binário”. Pedro Henrique diz que todos nasceram bi para desespero de Lourdes que até aceita filho gay mas não entra na cabeça esse negócio de gostar de tudo o que vê pela frente, assim ela diz. Caio é formado em sociologia daí então já viu. Dispensa comentários. Todo mundo anti-racista, pró feminista, contra Bolsonaro e a favor de gente pelada em museu para fins artísticos sim senhor. Censura nunca mais!

Dona Lourdes fica doida. Cada dia um vem com um gênero e um assunto novo.

Pior que de uns tempos para cá, ela andou pensando em sua vida toda desde que perdeu o marido. Pensou inclusive no quanto ele não fez falta e nas, digamos, fodas mal dadas com o Joaquim. Era desse jeito que ela pensava nele. Nesses termos.

Nunca mais teve ninguém por falta de tempo e sei lá também. Interesse, certamente. Mas agora já estavam todos grandes e dois deles, Pedro Henrique e Paulinho, sabiam até fazer arroz. Era hora de Dona Lourdes focar nela.

Entrou no Tinder e conheceu, gente do céu, Aparecida cuja história é mais ou menos parecida.

Cida mora no Engenho de Dentro. Perto. Ambas não gostam de sair e nem sabem como pega um Uber direito, mas fogo no rabo não lhes falta.

Começaram a frequentar a casa da outra. Diziam para as crianças que eram amigas, faziam bolo, costuravam juntas… Até que Dona Lourdes já toda satisfeita, empoderada e modernérrima resolveu contar para os filhes prafrentex que estava namorando Aparecida e que ia assumir sim o amor delas publicamente inclusive beijar de língua no Guanabara do Campinho.

Julinha, Paulinho, Pedro Henrique e Caio agora, exatamente neste momento aí que vocês acabaram de saber desse bafão, estão trancados no quarto reunides.

– Que nojo, falou Pedro Henrique derrubando uma lágrima furtiva. Mamãe não, gente. Mamãe não.

Os outros – mais Julinha – seguem em silêncio.

Masturbação Mental

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A polícia foi chamada há duas semanas. Havia um rapaz que estava se masturbando em frente ao barzinho no Barra da Tijuca. Alguns  já haviam lhe chamardo a atenção, ele saía por um tempo e voltava. Parecia desnorteado. Louco. Mas, ao mesmo tempo, tinha um ar irritante de normalidade naquela alma e naquele corpo branco bem vestido. A polícia chegou.

– Vamos parar de putaria aqui, rapaz! – falou o policial Alfredo.

O rapaz incontido, diante do tom autoritário, guardou seu pênis lentamente na cueca. Depois fechou a calça e subiu o zíper. Olhou serenamente para os policiais.

– Qual seu nome? – perguntou Leonardo, o outro policial.

Alfredo e Leonardo era uma dupla tipo o antigo seriado da década de 80, Chips. Trabalhavam juntos há uns quatro anos. Já passaram por muitos fogos cruzados, saias justas, disse-me-disses, quiprocós, sais de baixo, deus nos acudas, vade retros, nem-jesus-na-causas… Em todas as situações, Alfredo era, digamos, o machão-alfa e Leonardo, no melhor sentido da palavra, a fêmea. Alfredo chegava batendo, mostrando a arma para os vagabundos, falando que dorme abraçado com o capeta… chegava, para ser precisa e clara, soltando os caralhos. Leonardo não. Leonardo era curioso. Queria saber tudo da vida do cara não importa qual delito estava cometendo. Leonardo era uma mistura de psicólogo com padre dando a extrema unção mais uma melhor amiga, aquela que ouve tudo sem julgar mas que esconde o doce se o pecado de quem fala for a gula.

– Não sei. Me esqueci.- disse o punheteiro.

– Onde você mora?- questionou Leonardo como se estivesse falando com uma criança perdida no parque.

– Não me lembro. – respondeu o jovem olhando para o chão.

– Olha para mim quando tiver falando comigo, Caralho! – gritou Alfredo que chamava todo mundo de caralho.

O rapaz levantou a cabeça. Olhava para todos constrangido, não pelo ato libidinoso, mas por estar sendo chamado a atenção em público e sendo apalpado por Alfredo que procurava, em vão, algum documento nos bolsos da calça do infrator.

O gerente no Bar estava acompanhando tudo de perto e pediu para que levassem transgressor dali porque estava atrapalhando os negócios dele. Os policiais, já conhecidos de muito tempo do gestor do estabelecimento muito bem frequentado, atenderam-lhe prontamente e levaram algemado o que não sabemos o nome.

No caminho para a delegacia, dentro da viatura, Leonardo quis saber:

– Mas você não tem cara de quem é indigente e nem de quem dorme na rua. Onde você mora?

– Não me lembro, senhor. Sou homem de bem, disso vocês podem estar certo. Fui muito bem educado pelos meus pais que sempre me ensinaram a ter dignidade dentro das limitações deles, é claro.

– Mostrando os caralhos em público? Que dignidade é essa, Caralho? – perguntou, bem, vocês já sabem.

– Ah eu fiz aquilo porque estava me sentindo sozinho e não consigo mais me punhetar sem ouvir barulho. Sinto medo. – confessou.

– Medo de quê, Caralho?

– Medo? Em um banheiro público, por exemplo, ouvindo barulho das pessoas fora… ainda sente medo? – quis saber Leonardo.

– Sim. Preciso ver pessoas de verdade. Mas não faria nada com ninguém não. A não ser que a mulher quisesse porque, vale observar, não sou gay não. Nada contra. Mas não sou.

– E seus pais sabem que você faz isso?

– Eles estão mortos. Meu pai matou minha mãe e eu matei meu pai anos depois dando um veneno para ele. Ninguém jamais desconfiou que tivesse sido eu.

– Matou seu pai, Caralho? Que filho da puta! Dá mesmo atenção para esse vagabundo, Leo! Olha só! Eu sabia que essa porra não valia nada!

– Matei. E não me arrependo não senhor. Papai havia arrumado uma amante e mamãe descobriu. Portanto, vamos corrigir algo aqui. Eu não sou filho “da puta” e sim de “um puto”. Na época, eu tinha 12 anos. Sabia que estava acontecendo alguma coisa. Eles sempre discutiam depois que eu entrava para o meu quarto mas, naquela noite, eu fiquei de espreita com o ouvido colado na porta. A discussão estava pior do que nos outros dias. Havia muita tensão no ar. Papai traiu mamãe e ela estava dizendo que ia embora comigo para a Bahia. Papai sempre foi louco por mim. Disse pelamordedeos para ela não fazer isso. Ela gritou muito com ele naquela noite e, de repente, ela parou de gritar e ficou gemendo. Depois, fez-se o silêncio. Acordei com a casa cheia de gente e papai transtornado falando que mamãe havia morrido por uma crise de asma. Mas eu sei que foi ele que sufocou ela. Com dezoito anos, já não aguentando mais de saudades de minha mãe e abismado com a falta de remorso do papai, a despeito de ele me tratar com muito carinho, matei ele colocando uma espécie de ácido na cerveja. Morreu como se tivesse enfartado. Ninguém desconfiou de nada. A gente sempre morou em comunidade e em favelas ninguém vai perder tempo querendo saber a causa da morte de ninguém seja ela morte matada seja morte morrida. Morre-se. Ponto final.

– E você mora sozinho?

– Não me lembro com quem moro e nem onde moro agora. Mas sei que sou pessoa do bem. Tenho meus livros de história. Adoro estudar história. Leio Piketty e Marx. Sonho com uma sociedade mais justa, com menos crianças tendo a necessidade de se drogar ou se prostituir. Sonho em matar esses homens que exploram mulheres. Mulher para mim tem que ser muito bem tratada. Tipo princesa mesmo. Elas têm uma jeito de ver e de cuidar do mundo bem diferente de nós, homens.

Enquanto falava, Alfredo dirigia e Leonardo olhava para a frente mas com o foco nas nuvens que se mexiam lentamente tendo a  lua minguante e brilhosa iluminando-as por detrás.

– Mas você já matou mais alguém? – quis saber Leonardo.

– Ah sim. Outro dia, voltando para casa, que não me lembro onde é, vi um cara já velho, devia ter mais de quarenta anos o desgraçado, que pegou um cachorro e estava enfiando uma garrafa no cu dele. O bicho, mesmo com o focinho fechado com esparadrapo, urrava. Aquilo me deixou muito puto. Por que as pessoas fazem mal aos bichos? Os bichos não são capazes de fazer mal a nenhum ser humano. Só matam se tiverem fome. E cachorro, fala sério, cachorro é quase que gente. Eu gosto tanto de bicho que sou vegetariano, se vocês querem saber. Não aceito que façam maldade com os animais indefesos. Isso é um fascismo com os animais e eu me recuso a ser um fascista de qualquer espécie. Peguei um pedaço de pau no lixo e com toda a força dei uma só marretada na cabeça do infeliz que morreu na hora. O cachorro morreu também. Consegui tirar a garrafa de dentro dele, mas saiu o intestino todo do coitadinho. Vomitei em cima do infeliz que fez isso com o bicho. E daí eu te pergunto: quem era o animal nessa história? E se eu pegar de novo fazendo atrocidades com os bichos, acho que sou capaz de matar de tanta porrada…

– Você sabe o que pode te acontecer se você for pego matando ou descobrirem isso, né?- questionou Leonardo olhando para a encarnação do São Francisco.

– Olha, não tenho a mínima. Mas só lamento pelas crianças da comunidade se eu ficar preso um tempo. Eu leio para elas todas terças e quintas.

– De qual comunidade? – sondou Leonardo para ver se conseguia pescar algo.

– Não me lembro o nome. Mas pode ter certeza de que haverá gente sentindo a falta de Monteiro Lobato.

Por mais mentirosa que essa última informação possa ser, havia algo de fato estranho. O homem branco e de boa aparência falava de forma muito bem articulada como os que lêem mesmo.

– Você trabalha ao menos? – questionou Alfredo de forma bem mais branda, pois havia se lembrado de sua mãe lendo Reinações de Narizinho quando ele era criança.

– Não que eu me lembre…

Não sabemos o que aconteceu. Leonardo e Alfredo deixaram o cara na delegacia e, tudo indica, que ele foi solto ou fugiu. Não há registro de nada. Mas acabo de ler no jornal de hoje, que um homem de boa aparência e sem nenhuma identificação foi visto se masturbando em frente a entrada de uma boate em Niterói…

(O que me fez aqui, na solidão de um Domingo gélido de outono, pensar, traçar um perfil e inventar um passado desse interessante personagem.)

 

A História de Ling e Maurice

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Ling e Maurice estavam em uma excursão conhecendo o Chichén Itzá, uma cidade arqueológica maia localizada no estado mexicano de Iucatã, quando se conheceram quase na virada deste milênio. Ling fala chinês, Maurice, francês e os dois só se comunicam até hoje “muito bem” em inglês, ainda que cada um com seu sotaque. Ling é escritora e amante da filosofia e das ditas ciências exatas. Maurice é um francês alucinado que curte Lacan e artes marciais. Enfim, enroscaram as línguas, lamberam-se intensamente, amaram-se e foram morar juntos em Nova Iorque, onde Maurice conseguiu um emprego.

Ainda que duas pessoas quaisquer nesse mundão de meu deus sejam dois universos, Ling e Maurice eram dois, digamos, sistemas que viviam coisas absurdamente diferentes até mesmo quando estavam juntos, como por exemplo, fazendo amor. Maurice, que conjugava no passado, no presente e no futuro, imaginava o tempo como uma reta horizontal começando na esquerda e terminando na direita assim como muitos de nós escrevemos. O relógio, de fato, marcava a passagem de algo para ele e, ao gozarem, o sexo para Maurice terminava em um instante definido. Ling com sua mente moldada pelo mandarim não pensava sobre o que está para trás ou por vir já que nesta língua não há o que chamamos de pretérito, de ontem e nem de amanhã. Enfim, as coisas para ela se, por exemplo, aconteciam no que chamamos de Domingo, começavam (se é que podemos dizer assim) desde  xīng qī sìxīng qī wǔxīng qī liù e continuavam na xīng qī xīng qī èrxīng qī sān que são os dias da semana que vêm antes e depois do que na língua inglesa chamam de dia de Sol. Expliquei-me mal porque o português me limita. O que quero dizer é que, para Ling, a dança entre eles persistia ainda que a música não fosse mais ouvida.

Escutar as histórias de Ling, mesmo que ela as conte em inglês, causa uma confusão dos diabos na cabeça de Maurice. Ling tem uma cronologia própria dos orientais que é um desafio para qualquer um que deseje se aventurar no campo da sinologia ou que queira simplesmente conversar com uma chinesa. Ling não consegue conjugar o verbo “to be” com a mesma naturalidade de Maurice que fala je suis isso, je suis aquilo. O mundo material para ela sempre foi entendido como um mundo que constantemente se transforma e qualquer manifestação da realidade para Ling é dada sempre em uma forma dinâmica. Assim, voltando para o entrelaçamento de pernas que acontece entre eles,  a essencialidade dessa troca de fluidos não se apresenta diretamente para ela, mas é apenas mediada pela forma com que emerge. Já para Maurice, o mundo é formado por várias coisas que são, em grande medida, objetos materiais. Oras, em chinês, “coisa” nem sequer tem tradução equivalente porque eles consideram tudo como “fenômenos”. Como conjugar o verbo “ser” dentro de uma realidade em completa mutação?, essa é uma pergunta que Ling se faz sempre que tem que dialogar com Maurice em inglês.

Amar, esse verbo intransitivo para Mário de Andrade e um intrometido para mim, era infinito para Maurice assim como o é para muitos de nós mortais e ocidentais. L’amour c’est éternel!, pensava ele em francês quando lembrava de Ling que, por sua vez, via tudo em processo de natural geração, maturação, decadência e extinção, sejam objetos, animais, planetas, estrelas, galáxias… ou o amor. Traduzindo o que cada um diz para o português quando se ouve deles um “I Love You” no acariciar de suas línguas, Ling profere: eu continuo em você e Maurice, eu me identifico com você… ou algo assim. Mencionei isso somente para conseguirmos vislumbrar o que vem a ser a comunicação entre Ling e Maurice e os demais seres humanos. Como nos entendemos – se de fato nos entendemos – é um milagre.

Maurice acredita que escolheu viver com Ling pois, para ele, há uma cadeia causal. Ling percebe que amar a companhia de Maurice é um processo que ocorre completamente independente de sua vontade. Se ela pudesse escolher, escolheria não amar para não sofrer.

Percebam como as realidades de ambos são ímpares. Os átomos do corpo de Maurice, para ele, pertencem a ele somente. A despeito da física moderna nos mostrar que quando duas partículas emaranhadas estão distantes umas das outras elas ainda se comportam como uma entidade única, levando ao que Einstein chamou de ‘ação fantasmagórica à distância’, a ciência é tida como um conjunto de “teorias” ou “hipóteses” para muitos. Portanto, essa informação não é suficiente para alterar a sensação da existência de seres únicos que era, por exemplo, ele -Maurice – e outro independente que ele chama carinhosamente de “minha Ling”.

Os átomos de Ling, vejam vocês, têm uma história completamente distinta. Originaram-se no interior de estrelas como subproduto de uma atividade que produz sua energia ao fusionar alguns elementos. Eles se espalharam pelo espaço quando esses astros explodiram no final da sua vida e concentraram-se ao redor do Sol quando ele se formou, passando a fazer parte do planeta Terra e, finalmente, chegaram a formar o corpo de Ling. Um dia, esses átomos voltarão a se espalhar pelo espaço, independentemente do fato de Ling ter sido cremada ou sepultada. Para Ling, então, há muita coisa acontecendo além do seu “eu”. Seus desejos aparecem sem que sejam convocados. Ling não sabe onde ela começa e muito menos onde termina, mas entende que seu ser agora engloba o de Maurice.

De qualquer forma, independente do filtro usado pelo olhar de Ling ou de Maurice e como eles interpretaram o que entre os dois aconteceu, o que eles viveram é algo que no português traduzimos como “felicidade”, aquilo que funciona como a borboleta: quando a perseguimos nos escapa, quando desistimos de persegui-la, pousa em nós. Nem ela nem ele foi para aquela excursão em Chichén Itzá buscando alguma coisa além de entretenimento e quando menos esperavam o inseto supracitado invadiu o estômago de ambos.

Quando Ling conheceu Maurice, estava como sempre interessada em viver o presente que em seu idioma pátrio engloba os outros tempos verbais  tanto o passado quanto o futuro. Nem sei se foi certo isso que disse, pois para muitos chineses não há antes, durante e depois. Enfim, seja o que for, Ling observou a beleza de Maurice assim como a inteligência do lindo rapaz não somente como uma oportunidade, aquilo que vem ao nosso encontro, mas também como um tipo de disponibilidade, a abertura que temos de ter para acolhê-lo.

Maurice, por ter se desenvolvido dentro de um outro mundo onde é imposto a separação e a oposição dos tempos verbais, tinha-lhe o presente inacessível, pois, este foi reduzido no plano físico a um ponto sem extensão, ou seja, a um instante. Portanto, Maurice estava condenado, no plano metafísico, a viver de lembranças e se projetando em um ilusório caminho que só existe em mentes que separam o subjetivo do objetivo como funcionam as dos ocidentais. Ora, e desde quando viver passou a ser da ordem da travessia entre dois extremos? O “viver em si” é pensável do exterior? Para Maurice, essas perguntas sequer eram inteligíveis. Mas ainda assim, ele queria viver com sua Ling o futuro, assim por ele entendido, que lhe restava.

E saibam que, até hoje, esse casal vive junto. Ling, sem acreditar em  livre-arbítrio. Maurice, constantemente querendo entender o que ele é afinal. Essa questão que tanto o movimenta, ele jamais conseguiu traduzir para sua Ling de uma forma que ela o compreendesse, pois,  pelo menos na escrita chinesa, não há equivalente para o verbo “être” ou “to be“. Se o que um fala o outro assimila como é pensado por quem discorreu não sabemos. Possivelmente, pelo pouco que consegui relatar aqui, não. Nem sequer um consegue se apoderar das muitas perguntas do outro…

Há quem acredite que o amor está na soma das compreensões. Clarice Lispector, na contramão, disse que somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente. Eu creio, depois de ter conhecido Ling e Maurice, que o entendimento entre quaisquer dois seres nesse planeta só acontece com a partilha de sentimentos como sofrimentos e alegrias. Afinal, sentir é pensar sem ideias, e por isso comungar sentimentos é, de alguma forma, um entendimento – visto que o Universo não tem ideias.

Ling e Maurice nasceram, como nós, com vários defeitos, mas não o de querer entender uma pessoa só com a inteligência. Ambos sabem que o que se pensa não pode ser assimilado pelo outro, seja pelo obstáculo da língua seja porque simplesmente a comunicação é mesmo um tipo de ilusão. E eles não estão nem aí para isso, pois, perceberam que compreender o que outra pessoa pensa é concordar ou discordar dela. Mas compreender o que um ser sente… ah aí é fazer com que dois universos sejam amalgamados pela eternidade – seja lá o que isso for.

A Seiva Imortal

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Essa história aconteceu lá pelos idos de 1920, em Minas, em uma fazenda de café. A escravidão já havia acabado no papel, mas se ainda hoje vemos notícias de pessoas trabalhando em condições miseráveis, naquela época em que as informações não eram democráticas encontrávamos com frequência os troncos onde os escravos eram ainda açoitados nos quintais dos casarões.

João Prudêncio trabalhou com Sinhô Rubens por pouco menos de vinte anos.  Apareceu na fazenda Vera Cruz ainda criança, porém totalmente desprovido de infância. Era adolescente quando foi trabalhar na plantação. Logo percebeu-se que João Prudêncio possuía uma característica peculiar: ele era um jardineiro nato. Qualquer cantinho de mato nas mãos de João Prudêncio virava jardim desses que fazem a gente andar até mais devagar quando passamos por perto dele. João Prudêncio sabia fazer poesia com as plantas e tinha o dom de trazer a primavera em qualquer mês do ano.

Esse talento não passou despercebido pelo dono da fazenda que tratou de dar-lhe a responsabilidade de cuidar de todos os jardins de Vera Cruz.  João Prudêncio passou a escrever, sem conhecer uma só letra, suas crônicas com os vegetais. Sendo assim, Bela-Emília, Azaléias  e Copos de Leite, por exemplo, compunham o canteiro onde se lia sua breve história na África. Flores coloridas como os brincos da mamãe, dizia João Prudêncio com os olhos marejados mirando o passado. Esponja,  Gérbera, Rabos de Gato e Sávias nos contavam as estripulias de sua vinda para o Brasil. Cada uma representava um sentimento ou uma atitude. João Prudêncio anotava pelas sementes que plantava todos os fatos de alguma significação em sua vida. A doença de dona Sinhá, a morte de Tibúrcio comido pelos cachorros, o nascimento de cada cavalo de Vera Cruz, uma bronca de Sinhô Rubens e, ah meu deus que isso não poderia ter acontecido, o amor – quando ele chegou – pela Sinhazinha Maria do Carmo. As flores do canteiro de sinhazinha eram bem alegres como são nossos sonhos quando sublimamos a realidade:  Amores-Perfeitos, Camélias, Cravinas, Céus-Estrelados, Brincos de Princesa e Rosas, claro, muitas Rosas.

Nascera em João Prudêncio uma espécie de Jade que é uma plantinha que parece uma mini árvore que demora uma eternidade para florescer, mas que vale a pena esperar, pois sua inflorescência tem um colorido de verde azulado único.  João Prudêncio percebeu-se vigoroso e forte como um coqueiro. E bem sabemos que vegetais não raciocinam assim como os homens que amam. Então, sem sequer receber adubos especiais, o amor cresceu no peito de João Prudêncio como licoalas,  palmeiras imponentes  e de grande capacidade ornamental.

Sinhazinha Maria do Carmo sempre passeava pelos jardins de João Prudêncio. Conforme ganhava corpo e idade, aumentava sua curiosidade pelas crônicas, canteiros, contos e cantos de João que cada vez mais escrevia e plantava suas sementes.

Os dias e os anos passavam e, de repente, essas sementes germinaram e os botões se fizeram flor. Sinhazinha, em uma noite quente, abriu sua janela e viu João Prudêncio caminhando pelo jardim. O escravo, percebendo uma claridade, voltou seu rosto para trás e viu sinhazinha. Andou lentamente até onde era permitido e sorriu o mais lindo dos sorrisos que somente um negro pode dar. Sinhazinha Maria do Carmo sentiu vagas perturbações e  hieróglifos de seu coração subitamente começaram a se decifrar. Sinhazinha não estava com calor, Sinhazinha estava apaixonada por João Prudêncio.

O casulo do amor proibido se rompeu e, ébria de luz que emanava de João Prudêncio, Maria do Carmo fez-se borboleta de seu jardim. João Prudêncio era o homem mais sensível e educado já visto pelos olhos atentos de Sinhazinha Maria do Carmo. E da posse dessa certeza, João Prudêncio libélu-la. Passaram por um período de inspiração para as cigarras, lecionaram para os passarinhos e aprenderam com as abelhas a polinização. Amanheciam a qualquer hora da noite. A terra, os canteiros, a lua, as cores tudo existia para acolher o amor de João Prudêncio e Maria do Carmo. Compreendiam-se, advinhavam-se,  cobriam- se e descobriam-se. Viviam o que era impossível de sonhar.

O amor do escravo João Prudêncio e de Sinhá Maria do Carmo não esmoreceu. Eles não chegaram a ter uma discussão sequer, ciúmes um do outro, insegurança ou cansaço. Nunca se desencantaram. Tagarelavam os dois divertidamente como as margaridas. Sempre foi assim até o último dia em que ficaram juntos.

Pudera.  O amor de João Prudêncio e Maria do Carmo não conheceu o tempo que traz sempre consigo o inverno.

João Prudêncio foi pego com sua boca na boca de Maria do Carmo pelo próprio Sinhô Rubens que pendurou seu corpo no tronco e, depois de tanto açoitá-lo, matou-o com um tiro certeiro. Maria do Carmo foi dada como louca e internada em um hospício.

Enlouqueceu porque percebeu que seria para sempre feliz e que a palavra amor jamais iria se empoeirar para ela. Todos os dias quando acordava ia regar suas lembranças sorrindo, pois sabia que gafanhotos e mutucas jamais entrariam no jardim que foi João Prudêncio.

Primavera-me, Genário

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Eunice era assim. Gostava tanto de Genário que rezava sempre ajoelhada ao pé da cama antes de se deitar ao lado dele para agradecer a Deus o que lhe aconteceria assim que fizesse do marido a sua coberta. Enquanto ele a esperava já pensando em como relaxaria o seu corpo no corpo de Eunice, ela conversava com o infinito e bem se sabe o quanto o além nos exige em orações subordinadas. Genário não tinha tantas profundezas, ele trabalhava como técnico em eletricidade passando fios e levando luz – não aquela que se traduz como ideias e sim a que viaja pelos fótons – à cabeça das pessoas.

– Bora com isso, Eunice. Quero fechar logo esse circuito.

Eunice com a cabeça ainda virada para o teto do quarto, olhou Genário de soslaio e sorriu em malandra pureza. Voltou para agradecer mais ainda a maior vitória: menos a de ser querida depois de tão velha e amolecida, e muito mais por querer Genário depois de tantos anos de correntes alternadas e resistências em série que o fio da vida oferece principalmente às fêmeas.

– Anda, Eunice.

E Eunice se demorava. Além do normal. Muito mais do que a eternidade no referencial da impaciência de Genário. Até que Eunice se benzeu mais vagarosa do que todas as outras vezes. Levantou calmamente. Ereta se desnudou para Genário que olhou  fixamente e cheio de desejo o seu sexo e foi subindo a mira de suas pupilas dilatadas. Os seios. Ah os seios de Eunice, que delícia beijá-los!

-Vem, Eunicinha. Vem.

E então, Genário olhou o rosto de sua Eunice que, espreita, chorava. Gotas de mar saíam dos olhos daquela que, em breve, viraria cachoeira nos braços de seu único amor.

– Oras, Eunice, por que choras?

Genário que era vontade em potência, transformou-se em corrente de afeto.

– Fale, Eunicinha, conversa com seu Genário não com seu corpo, mas com sua alma. O que te afliges?

Eunice explicou. Pediu a sua própria morte a Deus naquela longa oração. Se é para morrer que seja quando Genário estivesse feito ondas na praia em sua ilha cercada de carne. Ela lhe disse que não há maneira melhor de morrer do que na cama, mas não quando ficamos moribundos e sim quando de olhos fechados vemos todas as cores.

Genário desacreditava no que estava ouvindo. Eunice enlouquecera? Qual o quê. Eunice o olhava sorrindo. Serena. Como os convictos. Queria Eunice morrer no flagrante da fragrância de Genário.

– Brochei, Eunice.

Ela, então, se deitou ao lado de Genário e reverteu com maestria aquele apagão. Trocou a bateria de seu brinquedo preferido e sussurrou ao pé do ouvido de Genário poucas semvergonhices.

– Continua, Genário.

Genário virou um lago calmo.

– Vem, Genário, vem, força, meu homem.

Genário imitou o mar. Depois virou Oceano Índico e se enredou, gemente.

Eunice sabia que aquela morte não era morrer. Era suicídio de japonês que entende tudo como passagem, até quando o coração deixa de bater para sempre. A si mesma, Eunice se enfrentava. Seus olhos fechados testemunhavam a despedida de seu corpo e de Genário. Eunice gritava de prazer, se eletrizava e se contorcia. Genário ondulava como uma bandeira hasteada e dançava com sua Eunice como se os invernos e os infartos não existissem. Eunice primaverava. Comungava e conjugava: quando tu flores eu flor, Genário.

As pálpebras de Eunice borboletaram enfim.

No átimo do ápice do ótimo do gozo de seu amor.

A Menina que Roubava Flores

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Vou contar para vocês uma história. Se é real ou não deixo para que o leitor avalie. A mim, cabe somente narrar tudo o que eu vi.

Priscila é uma moça adulta, bem jovem e que mora sozinha na rua Sorocaba entre o Humaitá e Botafogo. Esta rua sai bem em frente ao cemitério São João Batista. Priscila é tal como a Januária do Chico Buarque, moça dada às janelas mas não tão percebida e nada que chegue perto de causar algum fenômeno natural tipo o mar fazer maré cheia para ficar mais perto dela. Longe disso. Priscila é moça sozinha e não vista pelo Sol quando desponta. Seu apartamento recebe pouquíssima luz natural.

Cheia de vida, Priscila se distrai bem com as mortes. Já acompanhou com o olhar inúmeros enterros. Se o falecido for gente importante, Priscila até é capaz de descer para ver de perto os amigos artistas chorando. Observa com atenção as homenagens e acha tudo muito bonito, mas nada que chegue perto da beleza das coroas e das flores. Ah como Priscila ama essas corolas das plantas, odoríferas e de cores vivas

Desde criança, Priscila tem paixão em ter em casa flores naturais como enfeite. Sabe que depois de livro lido, não há melhor ornamento para um lar. Flor que acaba de ser aberta traz energia boa para o ambiente, sempre repetiu Priscila. Pela proximidade do cemitério, Priscila já há algum tempo não gasta dinheiro com esses vegetais. Uma vez por semana, antes de entrar em casa, passeia por entre os túmulos e sempre há flores naturais deixada em uma sepultura por alguém saudoso. Como Priscila é cética, não acredita em religião nenhuma, búzios, cartomantes, reencarnação, previsão do tempo nem em astrologia ou forças do além e sabendo que defunto não sente nada, Priscila não titubeia em pegar um vaso ou um buquê que lhe agrade. Sem pedir licença nem nada, Priscila subtrai as cores do jazigo.

 A casa de Priscila está sempre, ao seu modo, com boas energias.

 Aconteceu, porém, algo estranho há dois anos atrás. Diria, surreal. O celular de Priscila tocou. Não apareceu número algum na tela do aparelho, a mensagem era ‘desconhecido’. Priscila atendeu e ouviu uma voz:

 – Devolva as minhas flores, por favor. Eu quero as flores que eu ganhei… – Um clamor choroso implorava do outro lado da linha.

Priscila, óbvio, achou que estava sendo observada ou que alguém pelas redondezas estava passando um trote. Mas quem poderia ser? Ela sequer cumprimentava seus vizinhos direito… Seria algum funcionário do próprio cemitério? Deixa estar, pensou a moça acreditando que aquilo seria passageiro. Qual o quê, minha gente.

 A Voz, digamos assim, ligava sempre. Todo dia para ser mais precisa. E mais do que a paz, aquilo estava atrapalhando as leituras de Priscila que, vale observar, fazia doutorado em filosofia na UERJ e estava se especializando em Heidegger.

A primeira solução dada foi a mais simples possível. Priscila comprou um chip novo para o celular, mudou de número e continuou florindo a sua casa com rosas, margaridas, lírios que estavam destinados a morrer debaixo do Sol quente beirando o insuportável que aquece as tumbas do São João Batista e todo o resto do Rio de Janeiro.

 Em menos de doze horas com o novo chip, Priscila recebeu de novo uma ligação de um desconhecido. Não pode ser!, pensou ela, eu não dei esse número ainda para ninguém!

 – Alô. – Sinalizou a moça que havia atendido.

 – Devolva as minhas flores, por favor. Eu quero as flores que eu ganhei… – A Voz insistia.

 – Quem é você? Por que não me deixa estudar em paz? – Desesperava-se Priscila.

 – Devolva as minhas flores, por favor. Eu quero as flores que eu ganhei… – A voz se repetia.

Por mais que Priscila insistisse, a voz parecia ser surda e não parava de reclamar as suas flores subtraídas.

Priscila tentou, então, desligar o celular. Porém, mal o ligava e a Voz já a chamava. Se não atendesse, a Voz insistia. Bem da verdade, bastava, ao que parecia, falar com a Priscila uma vez por dia.

Ninguém é ateu quando passa por uma forte turbulência no avião. No caso de Priscila, não era um aeroplano em vôo, seu próprio chão estava tremendo tal como o solo de Nepal no terremoto em 2015. Priscila resolveu pedir ajuda para uma mãe de santo. Nem sabia direito o que era isso. Por que pedir socorro a uma mãe ou um pai de santo e não ao próprio santo diretamente? Não importa, a macumba pareceu-lhe mais apropriada para o caso.

 – A senhora vai ter que acender duas velas de cores diferentes e rezar pelo espírito da Voz. – Disse a velha vestida toda de branco.

Priscila deixou de lado todas as suas certezas em relação ao espiritismo e tratou de fazer exatamente o que a macumbeira lhe aconselhou.

De nada adiantou… Acendeu, então, quatro velas, rezou muito mais do que foi a ela recomendado. Nenhum efeito…

Priscila resolveu, então, tentar um padre. Só que os padres, de uma forma geral, são ateus em relação aos deuses de outras religiões. Padre Zezinho, por exemplo, não acredita em espírito que fala – muito menos pelo celular. Por que não fala diretamente? Desde quando espírito precisa de aparelhos eletrônicos para se comunicar?, questionou o sacerdote para Priscila que já não mais raciocinava. A guria lembrou ao padre Zezinho do fenômeno Poltergeist e ele, sabiamente, orientou Priscila a procurar um psiquiatra dizendo que ela estava tendo alucinações.

 – Por que você quer ter a casa sempre florida? – Perguntou a doutor Mauro.

Priscila percebeu que aquilo também não resolveria seus problemas. O médico estava achando que era ela louca. Terminou a primeira consulta com uma receita tarja preta que foi jogada no lixo antes mesmo de sair do prédio que abrigava o consultório. Já dizia o filósofo alemão, aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música. Priscila sabia que não estava louca. Ela estava bem atenta a tudo o que estava acontecendo e ouvindo de verdade.

Diria você, não era mais fácil devolver logo o diabo das flores para o finado? Dois problemas Priscila enfrentava. O primeiro: já viram o tamanho do cemitério São João Batista? E quem disse que Priscila se lembrava de qual sepulcro  havia furtado? Vale observar que até então Priscila jamais havia considerado que cometera algum crime. Afinal, tirar algo de gente morta já enterrada não podia ser considerado errado já que é pela carne oxigenada que percebemos o mundo, pensava assim Priscila. Parecia-lhe, porém, diante tudo isso, que ela havia se enganado. Gente morta também sofre e continua apegada a coisas materiais. O outro era: como ela devolveria as flores furtadas se já havia jogado no lixo depois que murcharam? O falecido aceitaria flores compradas por ela? E não adiantava perguntar isso para a Voz pois ela só sabia repetir:

 – Devolva as minhas flores, por favor. Eu quero as flores que eu ganhei…

Poderia passar alguns dias, quiçá o resto da vida, sem celular. Porém, a Voz poderia muito bem, dado tudo o que Priscila observou, vir pelo rádio, pela televisão ou pelo microondas, por exemplo. O problema parecia-lhe demasiado profundo para que pudesse ser resolvido por considerações tão superficiais, a dizer, mundanas. Podemos ser punidos pelas nossas virtudes?, lamentava-se Priscila que resolveu, então, evitar o martírio, o sofrimento “pela verdade” e até mesmo a defesa de si. Todos aqueles caminhos já tomados estavam corrompendo a inocência e a sutil neutralidade da sua consciência. Tomou coragem e rebatizou o seu lado mau do seu melhor lado. Enquanto houver esperança não haverá solução, pensou Priscila.

A casa da moça continuava a ser lindamente florida pelo mesmo mecanismo barato que descobrira. O celular de Priscila continuava tocando todos os dias e ela sempre atendia. Ainda que a Voz parecesse não ouvir o que Priscila dizia, ela começou a usar aqueles telefonemas anônimos para (se) afirmar: O que eu faço com as flores? Faço isso: elas serem minhas e bem cuidadas. Essa glória ninguém vai me tirar, está me ouvindo?

 – Devolva as minhas flores, por favor. Eu quero as flores que eu ganhei…

Não vou me arrepender do que fiz: ladrão de flores tem não cem anos de perdão, mas uma eternidade, compreende? O que você faria por elas se nem ao menos nariz não tem mais?

 – Devolva as minhas flores, por favor. Eu quero as flores…

Flores em túmulos são mesmos para serem furtadas, não podem secar ao Sol, morrerem virgens enfeitando a morte, o que não se embeleza por definição. Não cumpririam o seu destino de flor. E eu tenho afeto a elas, sim? Não confunda afeto com beijos a abraços, por favor. Afeto, do latim “affetare”, quer dizer “ir atrás”. É o movimento da alma na busca do objeto de sua necessidade. É o Eros platônico, a urgência do alimento que faz a alma voar em busca do pão sonhado. Eu escolho as flores que pego com o mesmo cuidado de uma mulher que faz quimioterapia escolhe a melhor forma  de disfarçar a falta de cabelos em sua cabeça.

– Devolva as minhas flores, por favor…

Quer maior erro em deixar secar um botão de rosas? Preste atenção e é um favor: estou convidando você a mudar-se para um reino novo. Rosa é flor feminina que se abre toda e tanto que para ela só resta alegria de se ter sido aberta. Quando profundamente aspirada toca no fundo íntimo do coração e deixa o interior do corpo inteiro perfumado. Quem vai cheirar uma rosa em um cemitério? E quando há rosas brancas e amarelas? Como resistir tamanha exuberância e deixar que não sejam belas para ninguém? As violetas são bem mais introvertidas e de uma introspecção profunda. Dizem que se esconde por vergonha ou modéstia. Nada disso, as violetas só querem poder captar os seus próprios segredos. E cabe a nós encontrar esse perfume abafado em suas pétalas para ajudá-las. Violetas dizem cheiros que não se podem escutar levianamente. Há de se ter muito carinho com elas.

– Devolva…

Adoro a tagarelice das margaridas e a artificialidade e a antipatia das orquídeas… tenho vontade de por reticências em tudo que é frase com flor…

– …

A Voz calou-se para sempre.

Priscila agora tem que lidar com um outro fenômeno estranho. Suas flores têm durado muito mais do que o normal quase a ponto de parecerem artificiais. Beleza permanente enjoa e a casa fica com cara de monotonia. Para não jogá-las fora ainda assanhadas de tanto perfume e arreganhamentos, Priscila tem as levado de volta ao cemitério e feito todo mês um tipo precioso de escambo com os mortos.

Seguindo em Frente

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– Ok. Pode ficar tranquilo. Não irei mais te importunar com as minhas mensagens desesperadas querendo entender o motivo pelo qual você me deixou. Não irei mais ligar para você. Quando um não quer, não adianta forçar. É apenas mais humilhação e desprezo que a gente recebe. Eu não mereço isso. Controlarei minhas vontades, segurarei meus ímpetos, darei um jeito de sufocar meus sonhos com você, pode deixar. Vou lhe dar paz agora. Compreendi a situação em que me encontro. Vou aceitar. Vou achar o meu caminho. Tocarei minha vida sem você.

Dito isso, ela seguiu em frente.

Estava, porém, à beira de um precipício. Morreu ao cortar seus impulsos.

Pedaço de Céu

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Foi ali, em plena Visconde de Pirajá, neste Domingo chuvoso pela manhã e ensolarado no início da tarde, que eu, ao sair da livraria que me acolheu do frio, tive um ataque de tosse. Pensei que fosse morrer. Mas não. Na calçada pisada pelas pessoas bem vestidas e também mal amadas como qualquer suburbano, vomitei um pássaro azul.

O bicho saiu inteiro das minhas entranhas e estivera tanto tempo dendimim que, agora vejam, sabia falar.

As pessoas olhavam, sem entender, o passarinho coberto de catarro que se debatia para se livrar da minha gosma. Mais leve, levantou o bico e perguntou o que estavam todos olhando.

– Ele fala? – Perguntou-me um senhor que vestia uma calça colada e um sapato esquisito.

Eu, ainda fraca daquele parto ao avesso, nada estranhei e respondi com a voz meio falhada, certamente irritada pelas penas:

–  Não vêem que sim? E acho bom não abusar dele. Não é de circo. Não foi treinado. Age por conta própria. -Avisei.

Peguei a ave, um pedaço de céu que estava crescendo no meu corpo, e arrumei-a em cima da minha cabeça com o cuidado que as madames dos séculos passados faziam de frente a um espelho quando colocavam um chapéu.

Eu suspeitava que meu estômago não é dado para borboletas e sim lagartas que viviam a confeccionar o casulo numa lentidão que pelo amor de deus… Mas qual o quê. Criava eu o tempo todo um passarinho.

Uma senhora chique, com cabelos grandes e grisalhos e um ar de cemitério sem flor, aproximou-se e disse a todos:

– Esse pássaro vem da fronteira da vida. Alguém perdeu um ente querido por agora? É uma oportunidade…

Pronto. Eu que queria ir embora logo e terminar o meu domingo acompanhada de meus filhos tive que voltar para dentro da livraria para uma sessão, digamos, espírita. Ave Maria…

– Jorge, disse uma outra senhora olhando para o pássaro que não saía da minha cabeça, você consegue contato com o Jorge?

O passarinho desatou a falar um monte de coisas.

– O que ele está dizendo? – perguntou-me a viúva de Jorge.

– É Jorge que está falando, senhora. Aproveite a ligação.- Esclareci.

– Mas com essa voz de passarinho?

– E a senhora quer que pássaro fale com voz de rinoceronte? – Respondi impaciente.

Puxei um livro recém comprado enquanto a senhora estava perguntando coisas como senha de banco, de que forma fazia para ver as milhas no cartão e que diabos a fatura no visa havia vindo tão alta no último mês se eles mal saíram de casa, ela pelo menos. Jorge, sempre para caminhar e conversar com os amigos no calçadão.

– Não enche, Juraci. – Disse o passarinho.

Cansada daquela ladainha que apenas começara mas que já tinha acabado com a minha paciência, levantei-me, pedi licença a todos que estavam boquiabertos ainda com tudo aquilo e ofereci meu dedo indicador para que o bicho nele subisse. Quem quiser apreciar a beleza de uma ave, jamais olhe para suas patas. Parece que Deus não trabalhou direito ou Darwin, muito. Os pés dos pássaros parecem guardar algo do passado, uma herança escamosa dos lagartos dos quais evoluíram. Com a ave nas minhas mãos, atordoada por aquela observação, saí novamente para a rua.

Vai, conte a todos que viverei não sei mais quantos verões, mas que vomitei as Primaveras.

E assim o passarinho voou e pousou numa lata de lixo cor de abóbora amarrada no poste.

Vim para casa sozinha. Aqui chove. E não paro de pensar naquela ave embaixo da chuva sem saber a quem se dirigir primeiro para dar o meu recado.

Enquanto isso na Índia, em Minas Gerais e na Nigéria…

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Aconteceu na Índia.

Quatro amigos monges budistas – Ryotan Igarashi, Shunyu Deshimaru, Taizen Rinpoche e Thich Susuki – estavam meditando há horas sem trocar uma palavrinha sequer entre eles. O local onde eles buscavam alcançar o nirvana,  o estado mais elevado e mais puro de existir, era em Madhya Pradesh, na Índia central, nos jardins do templo de Khajuraho.

Os budistas acreditam que quando atingimos este estado de pureza espiritual, o tal nirvana, conseguimos nos livrar do carma que todos temos por sermos condenados a reencarnar infinitamente. Somos por demais apegados ao mundo material e nossos, digamos, pecados nesta vida serão considerados nas nossas próximas vindas; esse é o nosso carma. Os budistas ainda creem que as reencarnações podem ser feitas em diversos tipos de seres vivos. Ao matar uma mosca, podemos estar dando fim ao nosso bisavô que veio nos visitar. Por isso, eles são meio São Francisco, amam os animais (até mesmo os mais peçonhentos) e não os comem de jeito maneira, nem assado nem frito. Nem com muito alho e com molho barbecue.

A ordem para os  budistas é se desapegar. Eles buscam o entendimento correto, o pensamento correto, a ação mais correta, o modo correto de se viver (virando monge) e para conseguir se livrar de todo desejo material e alcançar todo esse estado iluminado, o melhor caminho é a meditação que consiste em tentar limpar a mente de qualquer pensamento durante o tempo que suportarmos o desafio. Isso deve ser feito em um lugar de pouquíssimo ruído e em uma posição confortável para que nada nos incomode ou desvie a nossa atenção. Se não eliminarmos totalmente o carma, pelo menos, conseguimos diminui-lo um tanto assim considerável para a nossa próxima visita nesse mundo; isso, claro, se muito meditarmos. De fato, enquanto não fazemos nada e somente respiramos, não fazemos nada também de errado. Faz  todo sentido…

Isto posto e entendido, Ryotan, Shunyu, Taizen  e Thich estavam meditando, como já dito. Todos estavam sentados, com a coluna ereta, o pé esquerdo apoiado sobre a coxa direita e o pé direito apoiado sobre a coxa esquerda. Inspira. Expira. Inspira. Expira…

De repente, Shunyu  coloca as mãos para trás e dá-lhe de balançar os cotovelos.

Ryotan abriu um olho ao perceber uma vibração no olhar. Viu o corpo de Shunyu começar a tremer. Shunyu soltou uma alta gargalhada. Levantou-se de uma forma extremamente afeminada, deu alguns giros ainda mexendo os cotovelos para frente e para trás, aproximou-se de Taizen e disse:

– Que Conouó mais odubauê… – (Que quer dizer: que nego mais cheiroso) E deu-lhe uma forte fungada no pescoço do amigo revirando os zóio.

Thich caiu para trás.

– Mas que silenço é esse? Kadê o atabakê? Cadê meus baluás e meus arimbós? – Perguntou em uma língua que misturava sânscrito com umbandês colocando as mãos nos lóbulos das orelhas como se procurasse por brincos e no colo catando por cordões.

Shunyu segurou o koromo (uma espécie de kimono usados pelos monges) pela barra e levantou-a colocando as mãos na altura do quadril. Gargalhou alto de novo com as pernas cabeludas e branquelas à mostra e saiu correndo rindo alto para dentro do templo enquanto gritava como fazem os recém-libertos:

– Eu quero Irubuá, eu quero Unuiê!

Antes que Ryotan, Taizen e Thich tivessem se recomposto, Shunyu voltou com uma garrafa de sakê segurando pelo gargalo. Pegou uma folha seca no chão, enrolou-a e colocou o charuto assim feito no canto da boca.

– Suncês ké sabê como se livrá do karmá? – Perguntou olhando bem na alma dos outros três.

Ryotan, Taizen e Thich balançaram a cabeça de uma forma lenta, mas positivamente.

Shunyu riu estridentemente. Agarrou ligeiro um gato que por ali passava. Com um golpe seco de kung-fu, decapitou o felino e se lambuzou todo com o sangue do animal. Ryotan, Taizen e Thich que nunca tinham ouvido o nome de Cristo colocaram lentamente a mão na testa, depois um pouco acima do umbigo, depois no ombro esquerdo e, finalmente, no ombro direito.

Shunyu rodava e gargalhava ensandecido com as mãos apoiadas no quadril e segurando o koromo. De repente, balançou os braços como um boneco de posto e caiu como os que desmaiaram vendo Elvis Presley ao vivo.

Fez-se o silêncio.

Shunyu, depois de lentos segundos, se mexeu.

– O que vocês fizeram com o gato???

Shunyu largou o koromo e mudou de espírito sem que o corpo tivesse morrido. Passou a escrever. Atualmente, ganha rios de dinheiro vendendo livros sobre poesias eróticas e parece bem mais feliz.

Até hoje, Ryotan, Taizen e Thich, a despeito de muito procurarem em livros e conversarem com monges mais experientes, não entenderam o que aconteceu naquele dia. Também pudera. Para acharmos a resposta certa, devemos saber fazer a pergunta que nos leve a ela e, cá entre nós, “Por que  diabos a Pombagira baixou em Shunyu?” jamais sairá da mente dos monges budistas de Khajuraho.

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Aconteceu em Minas.

No dia 16 de julho, quer faça um Sol de rachar o cocoruco ou caia chuva de encharcar a alma, ocorre a procissão das Comunidades na Paróquia de Nossa Senhora do Carmo, na cidade do Carmo que fica em Minas Gerais. A Procissão acontece sempre nesse dia em louvor a Padroeira da cidade, de novo: a Nossa Senhora do Carmo. Vejam bem, eu disse Carmo e não carma.

O dia era desses de céu limpo e bem azul e a hora era pela manhã. A procissão seguia quando, de repente, nuvens começaram a aparecer do nada. Lúcia, Jacinta e Francisco, três crianças que iam à frente da procissão, ajoelharam-se onde estavam, bem no meio da rua. Quem olhou para o céu naquele dia viu vapor d´agua condensado de todos os formatos aparecendo do nada e voando em direção a rua onde passava a procissão. Do dia fez-se a noite já que névoas cinzentas eclipsaram por completo o Astro Rei.

Acima das três crianças, que continuaram ajoelhadas com as palmas das mãos juntas, abriu-se um buraco nas nuvens e raios de Sol rasgaram mais ainda a fresta iluminando, como um holofote, somente o local onde estavam Lúcia, Jacinta e Francisco. Daquela brecha, todos viram apontar dois pés. Lentamente, conforme era a descida, as pernas começaram a aparecer. Percebia-se que estavam vestidas com uma calça larga e brilhosa a la Alladin. Logo depois, apareceu o barrigão que teve sua passagem dificultada pela abertura insuficiente. A saída foi feita com a ajuda de duas mãos ornamentadas de anéis e pulseiras. A – até então – Santa continuava descendo e aparecendo bem devagar e com muito menos charme do que se espera para uma imaculada. Mais duas mãos surgem e finalmente os devotos de Nossa Senhora do Carmo viram uma cabeça de elefante com uma presa quebrada e que tinha, ainda por cima, um desenho esquisito no meio da testa! Minha Nossa Senhora que não era a Nossa Senhora do Carmo! Era Ganesha!

Ganesha, o mais conhecido e venerado dos deuses do hinduísmo que tem um cabeção de elefante simbolizando a inteligência, quatro braços e corpo de menino e representa uma solução lógica para nossos problemas, parecia mais ainda atordoado com o que via. Coçou a cabeça com uma das quatro mãos e decidiu por descer assim mesmo.

Todos se afastaram menos Lúcia, Jacinta e Francisco que seguiam de joelhos no asfalto. Ganesha acariciou a cabeça dos três ao mesmo tempo enquanto segurava a flor de lótus com a mão que lhe restava. Beijou as pétalas e entregou aquela parte de vegetal à Jacinta.

As três crianças cresceram. Tornaram-se adultas, jamais engordaram e passaram, de primeira, em concursos públicos federais.

Muitos moradores de Carmo, depois do episódio, evitam comer carne e acendem, ainda hoje, vela para a Nossa Senhora do Carmo que apareceu, assim do nada, no meio de um ritual africano em Kaduna, na Nigéria.

O Nirvana de Clinton Blaindi e Pou Pipa

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Clinton Blaindi nascera cego e infanciou normalmente a despeito de sua eficiência em jogar bilboquê e de sua falta de medo do escuro. Pou Pipa apareceu no morro da Rocinha, onde se passa parte dessa história, adultecendo. Tinham os dois a mesma quantidade de invernos. Clinton Blaindi sabia do mundo muito pouco. Foi criado pela sua mãe que o deixava com a vizinha para trabalhar. A vizinha era uma moça desambiciada e achava que para viver basta estar vivo. Pouco conversava e tinha preguiça de descer o morro para levar cego à escola.

Pou Pipa era pedreiro. O primeiro nome foi escolhido pelo seu pai que se dizia fã dos Beatles e que, de fato, o era à maneira dele. Amava, como quem ama Imagine, Rélpi. O segundo nome (que é um adjetivo como já percebido) veio de sua fixação (que não se foi com a sua chegada à vida adulta) em botar pipa no céu.

Nos finais de semana e das tardes de verão, Pou Pipa colocava pipa para atrapalhar as correntes de ar e tinha como companhia Clinton Blaindi que sempre estava sentado em um banquinho do lado de fora do barraco. Escuta, meu amigo, o que é isso que você faz?, perguntou Clinton Blaindi quando, enfim, chegou novembro. Pou, que não sabia se divertir de outra forma, recebeu a pergunta como se tivesse visto uma equação do segundo grau. Começou sem entender como se vive sem diversão. Mas muito menos lhe ocorria como fazer um cego dimensionar o céu.

– Primeiro você tem que entender o que é o mundo. – Respirou Pou a responsabilidade.

E assim, Clinton Blaindi, ao avesso de São Tomé, cria sem ver e entendeu como o céu fora feito para justificar as pipas e que os pássaros eram pipas sem linhas. Tempo fechado era quando o céu, o espaço absoluto newtoniano, acordava repleto de portas e janelas fechadas. Ventos fortes eram o espaço curvo einsteiniano. As nuvens eram como um tecido estampado. Não entende, Blaindi? Ah é. Você não entende. Tecido estampado é… Vem comigo, Blaindi. Pou fez Blaindi colocar as mãos nos muros. Muro de tijolo sem reboco e muro rebocado de cimento salpicado com pedrinhas. Muro rebocado de cimento sem granulado. Tudo muro, Blaindi, com estampas diferentes. Blaindi entendeu perfeitamente o que eram as nuvens e estava extremamente feliz por ter um amigo como Pou Pipa.

Pou resolveu ensinar Blaindi não a soltar pipa e sim a segurá-la. Blaindi com sua cabeça andorinhando compreendeu o céu e sua extensão. Percebeu o infinito com clareza.  Quantas dessas têm no céu, Pou? A mesma quantidade de estrelas, Blaindi.

Blaindi já sabia que, de noite, as estrelas apareciam. Noite, diferente do dia,  como lhe explicara Pou, era algo bem distinto de tempo fechado. Noite é quando o céu se transforma em portão trancado para as pipas. E tem hora de abrir: dia. Estrelas são grãos de feijão jogados no chão que ficam atrás desse antipático portão e esses grãos de feijão atrapalham o movimento das pipas, entende, Blaindi? Blaindi entendia tudo.

Um dia Clinton Blaindi quis saber um pouco mais. Você vê Deus, Pou? Não. Claro que não. Tem gente que diz que ele está em tudo, mas ele não está em nada. Se esconde atrás do céu. E como O explicam? Pou não soube responder, embora, tivesse certeza de Sua existência porque tudo existia e para sermos temos que nascer e as pedras nascem de algum lugar porque são pedras, logo, Deus existe porque o que não cresce não procria e sim se cria.

Livro serve para quê, Pou? Para quem não gosta de soltar pipa e não quer conversar. Quem lê fica em silêncio se ocupando de virar as folhas bem devagar, explicou Pou. Pareceu a Blaindi que  ler era algo que ele poderia fazer e ele quis experimentar isso, então, em dias de chuva.

Clinton Blaindi passou a ler, dessa maneira assim ensinada sem alfabeto, sílabas nem palavras escritas – já que a Pou também foi-lhe negada esta paisagem – nas noites, quando os portões eram trancados para as pipas, sempre o mesmo livro que ganhou de presente de Pou. Usufruiu, sem que o sábio amigo lhe guiasse, do bem que a leitura, assim por ele assimilada, faz para a mente e ficou viciado nesse passatempo por ele inventado. Agora era Blaindi que esclarecia a Pou de que  maneira uma simples atividade pode levar a gente para sei lá aonde meu deus.

Blaindi vislumbrou que talvez as pessoas que liam mudavam de página depois de passar por um determinado número de respirações que, por sua vez, era dado pelas batidas do coração já que Clinton Blaindi jamais aprendera a contar por números e muito menos entender o tempo por relógios. Passava por um processo mental não discursivo naquela estranha atividade de inspiração e expiração entendida por ele como leitura e, em plena quarta-feira anuviada, experimentou, de repente, um vazio iluminador, um êxtase quase místico e um soltar de sua alma.

Blaindi entendeu por quê um Sol de meio dia não faz sombras, assimilou-as sem nunca ter sentido a luz. E visualizou pipas coloridas na página quarenta e sete. Nuvens intateáveis e estrelas-grãos-de-feijão suspensas no ar. Meu deus como era bom ler. Clinton Blaindi que havia apreendido o tamanho do mundo com a ajuda das pipas de Pou quis lhe descortinar o Universo.

Vem, Pou, vou ensinar pra tu o caminho.

E assim, lá na Rocinha, ainda hoje, esses dois rapazes experimentam dessabendo um estado de cessação completa do sofrimento pela leitura da eterna graça alcançada somente pelos monges budistas do Tibet.