Fio anti democrático

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Meu cabelo está horrível e cada dia pior. Ele sempre teve muito brilho, um volume que me agradava, um caimento bacana para a estrutura dele. De uns tempos para cá, comecei a ter cabelos brancos e desatei a tacar tinta nele de 15 em 15 dias. Acho linda essa mulherada que assume os fios brancos, mas aqui eu mirei na Meryl Streep no filme O Diabo veste Prada e acertei na Bruxa do 71 do Chaves.

A tinta fez meu cabelo parecer cabelo de boneca que tem a juba lisa. Não consigo passar um pente porque ele está muito ressecado e embaraçado. Por outro lado, ele não é um cabelo cacheado. Dá-lhe escova, chapinha e coisas afins que têm deixado ele cada vez mais fraco e sem vida. O natural dele está confuso, indeciso como, por exemplo, muitos cidadãos brasileiros a respeito da paralisação dos caminhoneiros.

Daí hoje entrei numa dessas lojas que só vende produto para cabelo. Comprei um óleo de côco baratinho porque a Nara disse que tinha acabado o dela. Nara, minha filha, anda nessa vibe vegana e usa esse azeite de fruta para qualquer coisa seja de comer, de olhar, de transar ou de pentear.

Uma atendente muito simpática veio me perguntar se eu precisava de mais alguma coisa. Mostrei minha cabeleira para ela e a moça prontamente me ofereceu uns produtos mega profissionais e bem caros mas que “super iam valer a pena porque tinham óleo de Argan e Semi di Lino”, seja lá o que isso for. Parecia – pelo seu sorriso – ser tudo aquilo que essa crina caótica estava precisando.

Vim para casa e, como toda pessoa normal que compra produtos novos para cabelo, entrei no chuveiro e comecei a tacar de uma forma nada comedida os creminhos que iam me deixar com a cara da menina da embalagem.

Deixei secar naturalmente e tcharã! Nada de novo no front. Continuo brigada com o espelho. Gritei a Nara desesperadamente. Nara veio e mostrei a ela as mercadorias recém adquiridas e o resultado horroroooooso depois daquele processo super cuidadoso e pleno de esperanças como as que eu tenho com a restauração de nossa democracia.

Conversei com ela sobre ditadura militar, emendei o assunto no livro que estava lendo sobre politicamente correto e voltei o foco para meus fios que outrora tinha a cor da asa da graúna (tal como os da Iracema de José de Alencar) e agora estão na cor-Tonalizante-Casting-Creme-Gloss-400-castanho-claro-The-Walking-Dead-da-Loreal. Nara ouviu tudo com a mó atenção e perguntou quem foi que mandou eu comprar aquilo e quem foi que disse que aquilo era bom para mim.

Respondi baixinho e de cabeça baixa que foi a vendedora.

Ouvi sermão sobre como funciona o capitalismo, sobre sustentabilidade e cronograma de hidratação capilar. Nara, essa feminista marxista empoderada que mais parece um coronel, me mandou sentar e tacou metade do pote de óleo de côco nas minhas melenas irresolutas. Cá estou eu com as ideias deslizando de tão bezuntada que tá minha caixola sem saber no que isso vai dar. Tenho que ficar com isso por três horas.

Para o tempo passar mais rápido, vim dividir com vocês a minha ansiedade sobre o fio anti democrático que anda conduzindo nosso país e sobre o alinhamento da minha juba desnorteada. A única certeza é que se tudo der certo com o último, mesmo eu virando modelo de xampu, estou sempre pronta para me descabelar pela liberdade de nossos presos políticos. Porque uma mulher em paz com seus cabelos continua em guerra com quem ataca as suas ideias.

Batuquemos.

A cueca do Pipo

Reza a lenda que quando esquecemos algo em algum lugar é o nosso íntimo trabalhando para que voltemos para aquele local do qual não queríamos sair. Por mais que tomemos cuidado, uma mera piscada já é o suficiente para que nosso inconsciente nos pregue uma peça.

Isso posto, vamos aos fatos.

Pipo, o amor da minha vida, mora em Brasília e eu no Rio. De vez em quando, ele vai voando literalmente para minha casa e passa uns tempos comigo e vice versa. Da última vez, ele ficou uns 20 dias no meu cafofo. Foi lindo.

Meu quarto é uma suíte meia boca. Tem um micro banheiro ao lado da cama. Há outro tualéte, chamemos assim para valorizar o barraco, para todes os demais que o frequentam e moram comigo. Nara, Hideo, Sara (namorada do Hideo), Daniel (maride da Nara), Yuki, Ricciuto,…

Pipo lindo, outro dia, saiu do nosso banheiro vestido somente com uma cueca cinza fofa fofa fofa dizendo que o pai dele havia ganhado aquilo de presente, não gostou e deu para ele. Daí, meu príncipe, sem noção do perigo, virava de costas e de frente falando que aquilo não era nem cueca nem samba-canção e que, de fato, ele estava se achando estranho. Eu estava sentada na cama lendo, mas ao ver aquele Deus grego semi nu metralhei óvulos segurando a biografia do Leonardo da Vinci.

Pipo ah-droga-que-triste voltou para Brasília. No dia seguinte, fui tomar banho. Eu, a saudade encarnada, vi a cuequinha dele no meu banheiro secando na janela. Mandei mensagem dizendo que ele havia se esquecido de algo e ele ficou calado porque não é mesmo de interagir via Whatsapp. Falei que era uma cueca e Pipo mudou de assunto.

Tímido ele. Fofo fofo fofo.

Ficaríamos dias separados por uma distância de mais de mil quilômetros. Fiz o que qualquer pessoa normal faria. Dormi cheirando a cueca do meu amor. Vesti para ver se cabia. Deu certinho. Mega confortável. Nascemos um para o outro e vamos dividir até isso. Belabelabela nossa história. Coloquei a cueca cuticuti na cabeça em forma de touca enquanto lia porque sou dessas mega românticas. Levei para o trabalho na minha bolsa. Mostrei para as amigas para provar que ele havia sim senhoras esquecido algo e que, portanto, me amava e ia voltar. Ficava abraçada com ela como se fosse um ursinho de pelúcia, na verdade, como se ele estivesse ali dentro. Ele. Meu ursinho de pelúcia. Fofuréééésimo.

Daí vim para Brasília. Na mala, trouxe a cuequinha linda do Pipo para devolver. Fiquei aqui uns dias e hoje, ao me despedir dele, entreguei-a com todo carinho dizendo o quanto nos aventurados juntas. Qual foi minha surpresa ao ouvir:

– Amor, não conheço essa cueca.

Tóin tóin tóin. Mil martelos de borracha bateram na minha cabeça.

– Mas como não?! Era a cueca que seu pai te deu, amor! Aquela que não era nem barro nem tijolo!

Ele fazia que não com a cabeça. Foi até o armário dele e me mostrou as pseudos cuecas que seu Garcia havia lhe dado.

Mas gente. De quem era aquilo que cafunguei tanto e levei para os confins mais perversos de minha mente?! Será que fiquei com a cueca do Hideo como se fosse uma máscara de oxigênio nas minhas noites insones? Ou meodeos. Não me diga que inspirei o pano que cobriu o rabo do Daniel? Jesus. Que nojo.

Enquanto surtava, Pipo analisava a peça com cuidado e viu a etiqueta escrito Lovi.

– Amor. Nenhuma peça masculina tem etiqueta escrito Lovi, disse ele todo no século passado mesmo sabendo que tenho que esconder minhas saias do Daniel que adora usá-las.

– Mas isso é uma cueca, Pipo! Sua cueca!

– Não, amor. Não é minha e não existe cueca com etiqueta assim!

Grosso.

Era dele. Tinha que ser dele. Não havia outra explicação.

Momentos de tensão com a minha vida inteira passando pela minha mente.

Coloquei a foto da peça íntima no grupo do whats do qual participam meus filhos, Pipo, meu mano Ricciuto que já dormiu lá em casa e os demais agregades. Perguntei se alguém sabia de quem era aquilo.

Silêncio.

Mensagem entregue a todos.

Mensagem lida por todos.

Mais silêncio.

Nara digitando.

– Mãe! Minha calcinha preferida! O que você está fazendo com ela em Brasília?!

Vixi Maria que o mundo tá mesmo acabando.

Era a vaca da Nara que não sabe nem que calcinha é algo pequeno, rosinha, delicadinho e não um cirolão cinza feito com tecido de meia grossa. E que diabos a Nara estava usando meu banheiro e pendurando roupa íntima na janela com Pipo lá em casa?

Gente. Tudo errado…

Falei com detalhes para todes o que fiz com aquele pedaço de pano porque sou dessas de ir para o inferno acompanhada.

Hideo falou que vai ter que fazer dez anos de terapia para lidar com tanta informação. Daniel suspirou aliviado por não ser a cueca dele.

Nara, a desconstruidona, explicou-me calmamente que aquilo era uma calcinha-box. Coisa horrorosa, brochante, ridícula. E que tomou banho quando eu e Pipo não estávamos lá porque o outro banheiro estava ocupado e ela estava muito atrasada um dia aê. Esqueceu-se de tirar aquela bandeira feminista da janela. Só isso que essa loka fez na minha vida.

Cá estou eu voltando de Brasília com cara de paisagem refletindo sobre a vida depois que descobri que fiquei dias cheirando alucinadamente a cirola da Nara.

Ah gente. Que vida difícil essa viu. Como lidar com o fato do Pipo não ter esquecido nada lá em casa?

Feliz dia das mães imperfeitas!

O dia das mães vem me trazendo reflexões. Eu que nasci feminista – como todos nascemos por não entender a diferença de tratamento entre gêneros porque toda forma de amor é natural e todo preconceito cultural – já fui neta, filha e hoje sou mãe imersa nesse mundo que não para de girar e se transformar. Trocamos as rodas do carro com ele em movimento. Haja habilidade para não capotarmos.

Lembrei-me hoje de minha avó que se casou ainda adolescente e pariu dezesseis crianças ao longo de sua breve estadia por aqui. A vida dela foi cuidar de casa, obedecer meu avô e ser mãe de mais de uma dúzia de gente. Ela e meu avô fizeram bodas de diamante e ouvi, na época, que era um casal que deveríamos nos espelhar. Que tipo de inspiração poderia buscar vendo uma mulher que nunca teve um projeto de vida já que lhe foi imposta a única opção de nascer para criar uma família e cuidar dos filhos pois havia nascido mulher?

Com minha mãe não foi muito diferente. Era, de fato, raro ver mãe de alguém trabalhando fora há uns 40, 30, 20 anos. Sempre vi minha mãe limpando casa e na cozinha reclamando o quanto odiava fazer comida por obrigação. Daí, lembrando lembrando, lembrei que ela viu um prédio novo e disse: “Trabalho de homem é assim. A gente vê. O de mulher não. Todo dia a mesma coisa. Não se constrói nada. Não tem beleza alguma.” Eu era criança quando ouvi esse lamento e ver minha mãe com o olhar perdido me deixou aflita. Quis acalmá-la e falei que, se ela deixasse de fazer o que faz, todos iam perceber a importância de seu trabalho. Não foi bem com essas palavras, mas foi isso que quis dizer.

Houve um dia em que fui ajudá-la a lavar louça e ela me expulsou da cozinha. Larga isso, Elika!, ela disse, vai estudar para nunca ter que fazer isso na vida. A fala foi carregada de uma amargura que eu vi, ao longo dessa caminhada até aqui, nos olhos de muitas outras mulheres que conheci. Não era um discurso, digamos, comunista já que ela queria que eu ganhasse muitos dinheiros para poder pagar alguém que fizesse o trabalho braçal para mim, mas era uma oração de amor materno. Esse amor serviçal, escravo, mas amor também porque não são todas as relações humanas que podem ser explicadas por vias marxistas.

Cá estou eu – que passei por portas abertas por outras mulheres que me permitiram uma vida diferente de minha mãe e de minha avó -, mulher-mãe em plena metamorfose entre romantizar o dia de hoje, dizer que ser mãe é a coisa mais maravilhosa que pode acontecer com quem carrega os cromossomos XX ou fazer textão e alertar que todas as flores que estamos recebendo é trabalho de um sistema patriarcal que inventa essa beleza na maternidade pois uma mãe, vista por este ângulo, é uma mulher com muito menos tempo de incomodar e de reivindicar seus direitos na sociedade.

Nem tanto ao céu. Nem tanto à Terra. Na verdade, parei para pensar em tudo isso porque hoje é o primeiro dia das mães que passo longe dos meus filhos e de minha mãe porque estou em Brasília sendo feliz neste fim de semana ao lado de um ser humano que me devolveu a alegria de ser mulher.

Conversei com todas as pessoas que pari nesta vida. Pedi que entendessem a minha ausência, justifiquei-a dizendo que estou amando novamente e que estar aqui no segundo domingo de Maio não deveria ser motivo para que não comemorássemos a data pois estou feliz e militando pelo direito de amar sem cabresto seja de pai, de filho ou do espírito de porco.

O dia tem corrido bem. Estou tendo sucesso em exorcizar o demônio da culpa e mostrar para minha filha que não transgredimos quando andamos em direção ao que nos fortalece seja lá em que data do ano isso acontecer. Cometeria um delito se me negasse esse impulso e não abrisse a porteira para ela.

Às mães perfeitas, desejo que o dia de hoje ajude a equilibrar o peso dessa cruz que colocaram em seus ombros. A todas as outras tão imperfeitas como eu, que são criminalizadas por insistirem em escrever uma história da qual se orgulhem de cada parágrafo repleto de pecados pelos quais jamais vão pedir perdão, ergam de onde estiverem seus copos e encoste aqui no meu.

Tim tim.

Vacinando Meus Filhos

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Ontem cheguei no quarto do Yuki e ele estava assistindo um vídeo no YouTube do Felipe Neto.

Respira. Expira. Inspira.

– Garoto, tu sabe que essa cara ridículo já falou mal da fofa da sua mãe no Twitter?

Comigo é assim. No equilíbrio. Imparcialidade é meu sobrenome. Só falo verdades e deixo que a criança conclua o resto.

– Ele? Mas ele é YouTuber, mãe!
– É tuiteiro também. Mas vamos ouvir o que esse imbecil tá falando.

O vídeo mostrava umas respostas mal criadas que ele recebia via rede social e o babaca do Felipe Neto debochava de quem escrevia e ainda ficava respondendo falando um bando de idiotice felipenetonianas. Um nojo.

– Olha aí. Por que você está vendo essa porcaria que só estimula o ódio e a desavença entre os seres humanos?
– Ele te xingou por quê?
– Porque eu falei dos negros e ele me chamou de racista.
– Você? Racista?
– Pois então. Ele não entendeu o texto e começou a falar impropérios ao meu respeito. Daí, que esses seguidores dele que acham bonito ficar xingando os outros e não sabem nem ler direito resolveram se unir e começaram a me xingar de tudo que é nome feio que eu só deixo você falar quando bater o dedinho na quina do sofá.
– Te xingaram?
– E muito! Estimulados por esse imbecil que tu tá dando ibope. Me chamaram de japonesa burra em um texto em que eu falava justamente de racismo e intolerância.
– Poxa vida, mãe. Não sabia. Me desculpa…
– Não tem que pedir desculpas. Você já está bem grandinho para entender os discursos. Se tem alguém estimulando o ódio, a briga, fuja disso. Jamais se revida uma resposta quando alguém nos xinga. Já te expliquei isso. E você aí vendo esse vídeo desse babaca ensinando justamente o oposto.
– Foi mal, mãe.
– Já te disse. Quando alguém nos xinga é porque esse alguém não tem amor no coração. Quem recebeu muito carinho só tem vontade de dar mais carinho. Quem foi muito xingado e humilhado acha que isso é o certo a ser feito. Essas pessoas precisam de abraços, de voz mansa, de uma verdadeira atenção.
– E você falou isso para ele?
– Tentei conversar. Mas ele continuou. Daí, deixei quieto. Não sei rezar, mas desejei paz para esse infeliz. Mas agora tenho que reequilibrar esse seu universo. Quantos minutos você viu desse lixo?
– Dois vídeos.
– Hmmm. Isso equivale a um filme de Chaplin. Bora ver aquele da nossa coleção?
– Formô, mãe.

Assim eu curo as doenças iminentes por aqui. Para sobreviver nesse mundo e não sermos contagiados por tanto vírus ruim, só mesmo vacinando nossos filhos com muita arte e poesia.

Mãe, estou apavorado. Acho que vou ser gay.

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Hoje, dia 01 de outubro, comemoramos aqui dez anos de Yuki que estreou no dia 27 de setembro. Fiz o que ele me pediu: queria passar o dia com seus melhores amigos. Isso significou que desde às 11h da manhã de hoje até às 20h a minha casa estava com dez meninos. Está tudo de cabeça para baixo aqui. Ou seja, estamos todos mega felizes porque tudo correu na mais perfeita ordem.

Passamos o sábado entre brincadeiras e algumas observações sobre o dia de amanhã. Agora, antes de dormir, Yuki veio me perguntar se Crivella era homofóbico.

– Tudo indica que sim, Yuki. Ele já fez discursos falando que homossexualidade não é coisa de Deus.

– E Pedro Paulo?

– Este bate em mulher. Machista. Se é homofóbico não sei mas, a julgar pela postura, não duvido.

– Por que as pessoas são assim? Por que se irritam com o outro se o outro nem se mete na vida delas?

– Não sei, meu filho.

– Eu não quero ser gay, mãe. Não quero ter que lidar com gente assim.

Oh, Senhor. Era só para dar um boa noite e ele me vem com essa? E lá vamos nós porque mãe não pode perder oportunidade…

– Bom. Duas coisas. A primeira é que isso não é uma opção. No momento certo, você vai saber o que te atrai. Se é mulher ou se é homem. Mas você agora está muito novo para pensar sobre isso. Segundo, ainda que lááááá na frente você queira namorar só mulheres, a homofobia vai continuar sendo um problema seu sim senhor.

– Mas eu não terei medo das pessoas me maltratarem.

– Mas terão outras sendo maltratadas e, enquanto houver gente sofrendo, isso diz a nosso respeito porque o mundo é um só e temos todos a obrigação de fazer dele um lugar bom de se viver para qualquer um. E se você pensa que não é problema seu, saiba que está tudo interligado. Mais cedo ou mais tarde você vai ver como fazer o bem é contagioso e idem com o mal. E mais! Você vai ver como tudo nos atinge…

– Mãe, a verdade é que estou apavorado. Eu não quis chamar meninas para minha festa. Eu acho que vou ser gay.

– Ué. Normal só querer andar com meninos na sua idade. Isso não diz nada a respeito de sua sexualidade no futuro. Há muitos homens héteros que quando criança agiam exatamente assim como você hoje. Mas já disse, Yuki, está cedo para você se preocupar com isso. Daqui a uns dois anos, talvez tenhamos algumas indicações, mas agora não. Você é ainda uma criança.

Agora perceba… vai que você seja gay ou bi. Se eu pensasse, como você pensou agora há pouco, que pelo fato de eu ser hétera não preciso me preocupar com homofóbicos e não tivesse levantando essa bandeira contra a homofobia em cada oportunidade que tive para fazê-lo, a sua vida já ia ser muito mais difícil. Percebe como é importante cuidarmos uns dos outros? Tudo é uma coisa só, meu filho.

– Entendi. Se eu não for, meu filho pode ser…

– Justamente! Ou seu amigo, por exemplo. Já pensou ver o Nikolas apanhar ou morrer porque é gay?

Tive que parar de falar. Yuki começou a chorar. Ele é desses que sofrem quando entendem tudo.

Abracei-o como abraçamos um objetivo.

– Gostou do seu dia?

-Amei, mãe…

– Vamos fazer mais isso independente de seu aniversário?

– Pode, mãe?!

Pronto. O rosto já mudou e consegui reverter aqueles pensamentos… Conversamos sobre a farra que rolou aqui hoje. Ele chegou a gargalhar, até que finalmente dormiu.

Agora estou aqui pensando no que mais posso fazer para que, nos próximos anos, eu continue vendo esse sorriso estampado no rosto de um filho que tanto sonha…

Só mais 50 minutinhos…

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Ontem fomos todos para um sarau e voltamos tarde. Tipo dez, onze horas da noite. Yuki, meu caçula de 9 anos, sempre junto. Já no carro a caminho de casa, ele mete essa:

– Vou ter que ir à escola amanhã?
– Ué. Claro. Por que não iria? – perguntei conhecendo meu eleitorado.
– Porque estamos chegando em casa muito tarde e eu vou acordar muito cansado.

Abre parêntese.

Yuki acorda cedo desde que nasceu. Não importa a hora que vai dormir e se vai passar o dia inteiro chato ranhetando de sono. O horário dele é sempre entre cinco e seis. Muito raro eu precisar de despertador para tirá-lo da cama. Finais de semana são sempre o ó. Eu quero dormir e ele quer fazer coisinhas tipo andar de skate no parque antes mesmo das sete.

Fecha parêntese.

– Mas se você acorda cedo de qualquer jeito, qual a diferença de ir para a escola ou ficar em casa olhando para o teto? – questionei.

– Pode ser que eu precise descansar muito. Você não está considerando isso, mãe? – rebateu ele com o tom de quem está na iminência de ser torturado.

– Sempre considero, Yuki, só que nunca acontece… Façamos o seguinte: você dorme e acorda a hora que o olho abrir. Sem pressão. Se não der para entrar no primeiro tempo, a gente entra no segundo. – falei com mó carinho e boa vontade.

– Mãe, eu nunca cheguei atrasado em nada em toda a minha vida! Você quer quebrar isso agora??? Foi você que sempre me ensinou isso! – Aff. Yuki jogando pesado. A minha sorte é que eu sou mais inteligente que ele.

– Yuki, sejamos claros, você está me enrolando. Chegar para o segundo tempo não deixa ninguém esperando e não prejudica ninguém. Deixa disso. Para que tá feio. Se você acordar a tempo de irmos para o segundo tempo, a gente vai.- expliquei cheia de paciência.

– Que horas começa o segundo tempo? – voltou ele depois de trinta segundos refletindo.

– Sei lá. Acho que oito. – chutei.

– Qual o limite que você dá para eu acordar e não ir à escola?

– Yuki, você quer saber a partir de qual hora eu não te levo mais porque não dá tempo nem de chegar para o segundo tempo? – eu já não estava acreditando…

– Isso. Justamente. – respondeu ele sério.

– Você sabe que há o terceiro tempo, não? – joguei. Os alunos só podem chegar até o segundo tempo.

– Mas aí não faz sentido a gente se mobilizar todo para eu assistir só metade das aulas. – droga. Ele estava coberto de razão.

– Ok. O limite é 7:45. Em 15 minutos dá tempo da gente tomar café e sair. Você pode descansar bastante e ainda estudar pelo resto da manhã.

– Mas e se eu não acordar? Seria muito pedir para você me deixar descansar?

– Ok. Acho que uma vez na vida não faz mal a ninguém. Mas duvido. Nunca dantes na história da humanidade você acordou depois das sete.

E mais ou menos assim foi a nossa conversa ontem antes de dormirmos.

São mais de oito horas. Acabei de ir até o quarto dele e ele está dormindo profundamente. Mas gente… Isso nunca aconteceu! Que poder tem o consciente sobre o inconsciente, não?

No próximo fim de semana, vou mentir dizendo que a escola colocou aula extra sábado e domingo. De matemática ainda por cima! E que começa às nove!!!

Mas se estiver cansado, pode ficar em casa dormindo…

Mãe, tá orgulhosa de mim?

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Tenho três filhos. Um adulto de 9 anos, Yuki, Nara de 18 e uma criança de 23 que se chama Hideo. Para completar, sou solteira e ontem foi Domingo, dia de Manifestação. Yuki estava com o pai, voltaria meio dia. Nara está possessa com o Temer e estava saindo com mais de vinte cartazes debaixo do braço para protestar. Hideo estava super preocupado com a Nara e resolveu acompanhá-la caso desse algum xabú como tem dado – já que a Polícia Militar serve a um determinado tipo de gente. E eu estava em casa gerenciando tudo isso. Até que Hideo, que não está tão envolvido quanto deveria com o que anda acontecendo, politicamente falando, pediu-me para ir também e lhe fazer companhia. Nara engrossou esse coro dizendo que é nas ruas que vamos resolver isso. Ok ok… liguei para a minha mãe (que mora ao meu lado) e pedi para ela receber o Yuki para mim porque eu ia acompanhar Hideo que ia acompanhar Nara que quer mudar o mundo..

Poderia, nesta crônica, focar na Nara que deu literalmente um show ontem cantando Roda Viva à capela em pleno (antigo) canecão fazendo o presidente do PCdoB chorar vendo algo tão genuíno e depois ir até ela agradecer por aquilo. Ou poderia me estender com Yuki que estudou sobre relevos e chegou em casa querendo montar uma maquete da Chapada Diamantina com argila depois de ter pesquisado no gúgol como ela foi formada e está desde então com essa ideia fixa. Mas não. Quero lhes contar sobre Hideo.

Moramos em Madureira e ir e voltar de Copacabana onde o povo-Fora-Temer estava reunido foi uma viagem em todos os sentidos. Deixamos o carro no Shopping Nova América onde tem metrô e de lá partimos para lutar pela Democracia. Acabado o protesto, Nara decidiu ficar com o pai que mora no Leme e eu e Hideo tivemos que voltar sozinhos. O povo começou a dispersar lá pelas 13h quando nos despedimos da revoltada (não sem razão) da Nara e eu cheguei em casa com Hideo às 19h da noite. Durante este tempo, nós ficamos voltando para a casa. Paramos na casa de um amigo, Hideo capturou um monte de Pokemon, depois almoçamos um peixe em um restaurante que tem um aquário cheio de peixinhos iguais ao Nemo e a Dory, pegamos skate, cipó, metrô e chegamos ao Shopping onde estava estacionado o Takimóvel.

Foi aí que o motivo da crônica começa. Hideo, na ida, foi dirigindo o meu carro e, quando estávamos nos aproximando do caixa para pagar o estacionamento, ele me disse:

– Passa o ticket aê.

– Que ticket mané ticket. Você que veio dirigindo o Pafúncio (Pafúncio é o nome do Takimóvel), você que guardou a budega.

– Eu joguei na sua bolsa.

Aff. Abri a bolsa. Tirei lenço umedecido, cuequinha do Yuki, guarda-chuva, toco de lápis, caneta sem tampa, bolsinha com absorvente, necessé com maquiagem, capa de óculos do Hideo, caneta Pilot de escrever em cartaz, garrafa d´água vazia, a chave de casa, papel de bombom, bombom (que comi), mas…

– Hideo, o ticket não tá aqui!

– Eu coloquei aí caralho!

Hideo é desses que usam palavrão como ponto de exclamação.

– Mas não tinha nada que ter enfiado na minha bolsa, cacete! Você é o motorista! E se eu não tivesse vindo? Por que quando estou por perto vocês enfiam tudo na minha bolsa? Não tá aqui! E agora? vai ter que pagar uma multa de trezentos reais! Ai jesus, Hideo! Puta merda, meu filho!

Eu estava desesperada.

– Mãe, se acalma. Você é igual a mim. Quando tem um problema entra em desespero.

– Que igual a você mané igual a você onde? O mundo está acabando, vou ficar pobre com o mês mal começando e você está calmíssimo! Cadê a semelhança?

– Estou calmo porque não há problema algum aqui.

– Como não há, Hideo! Cadê a porra do ticket cacete!

– Mãe, entra no carro. Liga o rádio. Ouve o CD que está lá. Relaxa que eu vou resolver isso sem gastar o que já iríamos gastar. Nem um real a mais. Relaxa.

Eu já perdi o ticket de estacionamento uma vez e tive que vender o carro para pagar a multa. Duvido Hideo resolver isso. No mais, o documento do carro estava na minha bolsa também. Como ele ia dar um jeito sem sequer ter levado a comprovação da placa do Pafúncio e bababá bububú? Duvido…

Enquanto pensava, ele sumiu e voltou meia hora (!!!!) depois. Entrou no carro com um sorriso de orelha a orelha e me mandou na lata:

– Não disse que eu ia resolver tudo? Não disse que não tínhamos problema algum? Não disse que era para você ficar calma?

E deu de balançar um ticket novo e pago no meu nariz.

– Pagou quanto por isso jesus?

–  Nada a mais do que pagaríamos. Fui ali, falei com o cara da administração, dei a placa do carro, ele fez um novo ticket e pronto. Mãe, você está falando com Hideo. Parece que não me conhece. Sabe quantas vezes eu já perdi o cartão de estacionamento na vida? Você me subestimou, mãe. Viu só? Mãe, você está orgulhosa de mim agora?

Eu poderia ter feito um escândalo nessa hora. Ter dado uma lição de moral dizendo que estaria mais feliz se ele não tivesse perdido um papel valoroso tantas vezes, poderia ter falado que fiquei quase meia hora no carro (tudo bem que fiquei ouvindo Jimi Hendrix que é o CD que Hideo havia colocado para eu degustar e que desconhecia e fiquei encantada…), mas pensei. Se ele não tivesse perdido o ticket, eu não teria vivido tamanha experiência de encontro com meu filho. Se Hideo não fosse desses indicados a tomar Ritalina desde os oito anos por ser extremamente desligado e se eu permitisse que ele ingerisse essa droga, ele se lembraria de guardar tudo que é dito ser importante, teríamos entrado no carro e voltado sem maiores percalços para a casa, é verdade; mas também, é válido observar, sem que eu tivesse recebido tanto carinho e o sorriso de satisfação dele por ter conseguido dar um jeito na situação sem se estressar um tiquinho de nada e me ensinado a fazer um verão quando nos são oferecidos muita chuva e ventos giga frios.

– Razô, meu filho. Só deu tu hoje.

– Ouviu Jimi Hendrix? Gostou? Conhece a história dele?

E voltamos com Hideo me contando sobre a vida desse ídolo do Rock na paz do senhor. Ele falando e eu ouvindo. Plena de orgulho do meu filho.

 

A Queda dos Corpos e o Peso das Reflexões.

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Hoje, eu levando Yuki para a escola, rolou um diálogo entre nós:

– Mãe, qual o nome daquele negócio que tem em volta dos planetas no Angry Birds Stars Wars?
– Sei lá, Yuki. Atmosfera?
– É a atmosfera que atrai os projéteis quando passam perto dos planetas?
– Ah não, é o campo gravitacional.
– Isso! Era esse o nome que tinha me esquecido.
– Mas ó, filho, o campo gravitacional existe mesmo nos planetas que não estão no jogo do AngryBirds, tá?
– Então quer dizer que se tacarem algo no planeta Terra, isso pode ficar rodando até cair de vez?
– É.
– E se jogar muito rápido? Pode ficar girando sem cair como no AngryBirds StarWars?
– Sim. Esse é o princípio que se usa para colocar satélite em órbita.
– Que maneiro! Quem descobriu isso?
– Isaac Newton. E ó, atmosfera não tem nada a ver com campo gravitacional. Na Lua, não tem
atmosfera e ela também atrai os corpos.
– Da mesma forma que a Terra?
– Não. Como ela tem a massa muito menor, a força da gravidade que é gerada é bem menor.
– A gravidade depende da massa do planeta?
– Justamente. É o que falam. E a até agora não teve nada, até onde eu saiba, que contradissesse isso, ou melhor, um planeta com pouca massa e com um campo gravitacional muito potente.
– Mas pode acontecer?
– Nada impede. O universo sempre é capaz de nos surpreender e teoria científica, ao fim e ao cabo, não deixa de ser um ato de crença.
– Como assim?
– “Acreditou-se” um dia que um corpo só se movia se houvesse uma força atuando sobre ele, ou seja, só tem velocidade se tiver força.
– E não é mais assim?
– Não. Newton mostrou que força não tem nada a ver com velocidade e sim com variação de velocidade. Um corpo pode se mover sem que nenhuma força atue sobre ele.
– Como ele explicou isso?
– Usando a palavra inércia…

A conversa se estendeu a ponto de eu ter a ideia de escrever mais um livro infantil e Yuki chegar atrasado.

Deixei meu menino na escola, ele está no quarto ano. Mas tive a impressão de que se ele fizer a prova do Enem, pelo menos em física, ele se sairia muito bem. Está sabendo as três leis de Newton e a essência da lei da gravitação universal. E creio eu que não vai se esquecer já que aprendeu com o coração.

Assim deveria ser qualquer aprendizado. No tempo em que as perguntas aparecem, com alegria e trabalhando a curiosidade e o prazer da descoberta e não isso que temos… com crianças e jovens aprendendo o que não tem a menor vontade de saber no tempo em que queremos que ela aprenda e não quando ela está preparada. Se o estômago não tiver preparado, não adianta, ele não vai digerir o alimento que sairá do jeito que der e assim que puder do nosso corpo. Por que insistem nesse modelo?

Enfim, acho que essa foi a melhor manhã de terça que tive na minha vida… Yuki se despediu de mim pensando e eu muito mais.

Coitado do Vitor…

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Nara, minha filha adolescente, ontem veio me falar que vai passar o fim de semana fora acampando com os amigos em um sítio em Xerém.

– Quem vai? – perguntei porque sou mãe e tenho que saber das budega toda.
– Marina, Pedro, Mateus, Vitor, e eu. – respondeu ela prontamente.

Pensei um pouco e falei:

– A conta não está fechando…
– Mãe, que conta?
– Três meninos e duas meninas. Alguém vai sobrar…
– Mãe, não tem conta. Vou com meus amigos. – Disse ela seriamente me olhando como se eu fosse um sei lá. Um ET.

Fiquei chocada com a ingenuidade de Nara que vai fazer 18 anos em março! Não é possível… muito lerdinha…

– Isso não existe, minha filha. – tentei explicar mantendo a calma. – Quando a gente sai para acampar com os amigos na adolescência , como diria de uma forma que você me entenda…, quando a gente acampa na adolescência com os amigos… a gente… Tipo… Coitado do Vítor. Vai sobrar…
– Mãe, eu vou ficar com a Marina.

Que bom que Nara é normal. Que susto viu…

Rio Doce. Choro Salgado.

samarco

Hoje mostrei para o Yuki, meu caçula de 9 anos, a foto da lama tóxica de Minas chegando no Oceano Atlântico. Falei para ele das consequências e como isso vai afetar o ecossistema.

Para quê… O bichinho entrou em desespero e começou a chorar.

– Quer dizer que nunca mais vou poder brincar no mar?

Daí eu disse no reflexo para tentar acalmá-lo:

– Não, meu filho, isso tá longe! Não deve chegar aqui. Pode ficar tranquilo, tá bom?

– E como eu posso ficar tranquilo sabendo que tantos meninos vão ficar sem brincar no mar? Por que fizeram isso com a gente? Por quê, mãe?

Não consegui explicar. A reação dele e seu altruísmo me descompensaram. Ao invés de secar as lágrimas de meu filhote, foi ele quem molhou meu rosto todo.

Acabo de deixar Yuki na escola com os olhinhos inchados de tanta dor por aprender que os homens são capazes de não só matar peixes, corais e jacarés. Os homens, ah os homens…, eles assassinam também a infância.

Agora estou indo à feira da informação em pleno início da semana, pois, além de vitaminas, tenho que alimentá-lo com esperança e otimismo. Desde já começo a pensar no almoço que darei para o meu doce menino quando ele voltar da escola.

Eita vida.

samarco2