Translucidamente Turvo.

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Ontem, depois da sessão com o terapeuta, fui para casa e dormi. Tive um sonho. Sonhei que estava em uma piscina do tamanho do mar e que havia nela três pessoas. Eu, He-Man e mais um que não conseguia ver quem era, mas que ditava as regras do jogo. Eu teria que fugir nadando. Ganharia se não fosse encontrada e perderia se fosse descoberto o local em que eu estava pelo homem que muito parecia fisicamente o super-herói dos anos 80. O tal do He-Man carregava consigo uma espécie de lanterna que servia menos para ver sob a água, que estava bem turva, do que para eu mesma, a que era perseguida, saber se ele estava se aproximando. Foi dada a largada.

Pensei: será impossível ele me encontrar. A cada braçada, eu tenho um leque de 360 graus de opção de caminhos e sempre escolherei um por onde seguir. Na terceira ou na quarta remada que eu der com meus braços, estaremos a uma distância de infinitas escolhas e será infactível meus passos serem seguidos. Não há necessidade de pressa, pois, pelas regras da matemática, jamais serei encontrada. E pensando assim no meu sonho, comecei a nadar. Percorria o que o pulmão me permitia. Parava. Olhava para todos os lados embaixo d´água e via lá de longe mesmo naquela água pouco translúcida sempre uma luzinha vindo em minha direção. Não importava o quanto me deslocava e o sucesso de minha apneia. Sempre era encontrada a despeito do tamanho da piscina, da água turva e do poder do infinito. Desisti. Emergi e gritei: não entendo!

A pessoa que eu não conseguia ver o rosto direito me explicou: você cometeu um erro lógico. A piscina é enorme mas tem fim. As ondas que você faz batem na parede e voltam triplicando a chance que já não era pequena de encontrar você. Agora veja, eu havia cometido um erro lógico e a explicação não fazia o menor sentido para qualquer gigante da matemática.

Se nosso amigo Freud vivo estivesse reforçaria que todos esses símbolos oníricos são particularidades do nosso inconsciente. Acreditando nessa hipótese, fiz de minha própria cama um divã ao despertar desse sonho. O que era o mar? Quem seria o He-Man? Por que daquela luz? Que diabo de erro lógico que cometi? Mais ainda, por que a lógica não explicou um movimento simples da vida? Não vou tentar aqui esclarecer cada um dos símbolos que apareceram, mas gostaria de analisar o sentimento de ter cometido um erro (de lógica) e a explicação dada para o problema – um jogo, no caso – não fazer o menor sentido.

Lembrei-me, então, o quanto saí incomodada da minha última visita ao terapeuta. Percebi que estava havendo um esforço em ser entendida, não por ele, mas por mim mesma. O profissional agia corretamente, fazia perguntas que me ajudavam a pensar, a compreender a minha demanda, a interagir profundamente comigo mesma e, no mergulho a lugares nunca antes visitados dentro de mim, a fazer com que eu enxergasse com mais clareza essa miscelânea de sentimentos tão comuns a todos nós: medo, pena, insegurança, solidão, saudade, dor, alegria, culpa e por aí vai. Comecei a pensar em tudo o que nos fizeram acreditar e na quantidade de fármacos consumidos por todos que conheço, na agenda lotada de qualquer bom ou mau analista, na vida que seguimos como se tivéssemos a deriva sem muito o que fazer por nós mesmos, do medo que temos de gritar o quanto estamos cansados e do quanto não nos ajustamos a nenhum modelo. Estamos ficando doentes porque querem (nossos amigos, nossos pais, o padre, o pastor, o diabo) explicar nossos sentimentos de forma lógica e querem que nos entendamos para nós mesmos. Precisamos, para viver nessa sociedade, que nossas atitudes sejam explicáveis. Que para cada efeito tenha uma causa ou várias, vá lá, mas que ao menos todas elas sejam identificáveis e reconhecidas.

Onde está escrito, além de postagens supérfluas e livros religiosos, que amor entre pessoas do mesmo sexo é antinatural, que amor de verdade é o que dura até a morte, que casamento que dá certo é aquele em que os cônjuges não se separam, que devemos nos sacrificar pelo bem mental de nossos filhos, que o nosso amado está feliz por simplesmente estar ao nosso lado, que só se ama uma pessoa de verdade na vida, que só se pode amar um de cada vez, que no amor há felicidade, que não há amizade entre pessoas que já foram amantes, que ser fiel é contar a verdade, que devemos ser felizes, que quem ama entende o amado e que o amor eterno não acaba e que, se acaba, não era amor? Qual foi o deus que disse isso? Onde está escrito que devemos ser compreendidos?

Se as regras formam uma pátria, o que vemos é um monte de gente querendo e  ao mesmo tempo morrendo de medo de ser exilado. Não sabemos como viver sem as rédeas e sem colocá-las em alguém, agir dentro de uma teoria que já está estabelecida parece mais fácil, mas não há quem, ao colocar a cabeça no travesseiro, diga amém. A vida não cabe em uma teoria e muito menos é feita de várias delas. E o inverbalizável? Cadê o espaço para os impulsos, as emoções, as fantasias, os sonhos? Ora bolas, nem que fossem centenas de normas dariam conta do recado. Impossível enquadrar o grito, o que arde, o que lateja. Já dizia Cazuza, há o certo, o errado e todo o resto. Amar é bom, não amar é ruim. Entre amar e não amar o que temos? Nada? Qual o quê. Uma infinidade de sentimentos isso sim, uma confusão dos diabos, um desassossego dos infernos, saudades gigantescas, necessidades de afeto urgentes, desejos que não se adaptam a essa meia dúzia de regras do bom comportamento que nos impuseram.

Estamos todos vivendo certinho dentro das normas, seguindo corretamente o que nos ensinaram, nossa casa está arrumada, nossos filhos estão jogado alucinadamente videogames mega modernos na sala em total segurança, tudo está em seu devido lugar. Mas então, senhor, por que estamos tomando remédios para dormir?, por que se vende tanto livro de auto-ajuda?, por que ficamos horas embaixo do chuveiro olhando para o zero?, por que queremos sumir do mundo?, por que estamos deixando para trás tantos afetos que poderiam nos bombardear de hormônios?, por que nos sentimos injustiçados pelo destino?, por que temos que viver ponderando tudo e negando as paixões que insistem em nos aparecer, sejam elas por outro homem, outra mulher, por um livro, por um esporte, por uma ideia ou por um ideal?

O problema é que todo o resto não entra no regulamento que devemos seguir e é o que, sinto lhe dizer, nos faz sentir vivos: nossa ausência total de certezas, nossa pureza que cismam em não acreditar nela só porque crescemos, nossa vontade de ir ali comprar um cigarro, nossa sinceridade ao dizer que não fizemos por mal, nossa vontade de fazer o mal, nossa obsessão em querer o bem, nosso desejo de ir embora, nossa ânsia em voltar, nosso asco em viver em paz, nossa angústia de não conseguirmos ser felizes porque sabemos, lá no fundo que, viver em paz é a morte em vida. Nossa. É tudo tão complicado…

Mesmo sem nada entender, recusei-me a ficar refém de tudo o que construí. Separei-me de quem namorei desde meus quatorze anos. O difícil dessa separação, perceba, será viver com ele (e não sem ele) em minha vida. Nem que ele tivesse morrido poderia a presença de tão boa companhia deixar de ser sentida por onde quer que eu me esconda. Não é necessário que Chico me responda pra onde vai o meu amor quando o amor acaba porque nada aqui dentro acabou. Transformou-se bastante, é verdade. E o suficiente para que eu aceitasse as minhas dúvidas impublicáveis que foram incompatíveis com as certezas de quem dormia cantando ao meu lado. Permiti-me o tormento de não ser única. Admiti que há um deus um diabo e o todo o resto morando em meu corpo.

Encafifa-me agora, ou melhor, está muito difícil de eu aceitar a incompressibilidade de que é concebível, mesmo diante desse mar de possibilidades que se agiganta na minha frente e que nele sigo remando com meu próprio corpo, alguém me encontrar com facilidade.

Prossigo eu apavorada tal como estivesse mergulhado em uma piscina gigante repleta de água turva com toda essa estranha gente que me habita. Sem nada entender. Sem nada enxergar. Mas meu deus. Como esse fluido que me circunda me mantém aquecida e me convida –  pela sensação que experimento em minha minha pele – que eu vagueie dentro ele.

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A obra que ilustra esse texto é do artista Sérgio Ricciuto.

Machista? Eu???

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Ser machista no Brasil é como ser racista, ou seja, ninguém assume que é. No entanto, se perguntarmos para os negros se eles se sentem discriminados, eles dirão, em sua grande maioria, que sim. Se perguntarmos para as mulheres… o assunto fica por demais controverso. Poderia levantar a discussão sobre as mulheres que adoram andar ao lado de um ‘cavalheiro’, tomado aqui no sentido de querer dizer que elas se sentem bem ao caminhar não com um homem gentil e sim com um homem que a proteja e que a perceba como um ser frágil e inferior. Segue daí uma grande discussão, a começar pela dificuldade de diferenciar ‘machista’ de ‘cavalheiro’. Mas não é essa polêmica que quero aguçar. É uma outra. Esse texto é sobre uma determinada bandeira que levanto desde que soube que meu nome era Elika Takimoto. E vou teimar em hasteá-la porque insisto em querer construir uma sociedade mais igualitária, onde não precise ler quase todos os dias nos jornais casos de estupros, meninas com medo dos próprios colegas de escola, mulheres reféns dessa violência que por vezes acontece de forma silenciosa e burocrática.

Após ouvir vários homens casados que se dizem zero-machistas, perguntei-lhes: como é o sobrenome de sua esposa? Cem por cento dos casos, o marido diz naturalmente o sobrenome da cônjuge que é, vejam que interessante, o mesmo deste que se diz em posição igual a das mulheres.

Para começar, alguns detalhes da nossa história: o primeiro Código Civil Brasileiro (Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916), em sua redação original, pontuava, no artigo 240: “A mulher assume, pelo casamento, com os apelidos do marido, a condição de sua companheira, consorte e auxiliar nos encargos de família”. Por “apelidos” entenda-se o sobrenome do marido, que poderia ser simples ou composto, ou seja, sua adoção era uma ‘obrigação’ da mulher. Tal obrigatoriedade significava uma afirmação do poder marital, da supremacia do varão, cuja origem vem do direito romano, em que a mulher ingressava na família do esposo. Esta adoção de nome era um costume a que a lei deu guarida, e devia ser compreendida como uma expressão da comunhão de vida entre os dois cônjuges. Que lindo.

Hoje, as coisas mudaram. Já não é mais obrigatório as mulheres adotarem o sobrenome dos maridos, embora muitos nem sequer saibam disso. Vale observar, trocar de identidade tem um significado forte subliminar: a mulher, literalmente, aceita perder a sua ‘identidade’ em prol de se fortalecer na nova família liderada pelo marido. Há meninas que irão dizer que é uma prova de amor, uma homenagem tal e qual uma tatuagem. Justamente, queridinha, o sobrenome do marido, que a esposa passa a usar, funciona como um carimbo a mostrar que ela tem um dono e senhor, tipo gado quando é comprado e marcado na pele as iniciais do fazendeiro ao qual passa a pertencer.

Ah, já estou ouvindo daqui você dizer que não fez isso pensando assim, que vocês se amavam, que no furor da paixão isso passou despercebido e que no frigir dos ovos você não tem culpa de nada, apenas fez o que manda o figurino e que, sim, não pode ser acusado de machista por isso. Mas saibam, vocês (homens e mulheres) que aceitam isso sem questionar, são sim machistas e têm tudo a ver com o que as mulheres sofrem hoje. Vocês também são responsáveis por esses tristes números que vemos nos jornais indicando a violência com pessoas do sexo feminino. Ignorar isto é fingir que o mundo é um conto de fadas e que os casamentos são todos como os que vemos na sessão da tarde. A relação homem-mulher é tensa, o conflito existe e ameaça e mata e estupra. Você que diz que nada tem a ver com isso está se esquivando de sua responsabilidade social adotando a posição cômoda zecapagodiana de deixar a vida lhe levar. Com exceção do Zeca, sabemos bem onde vai dar isso.

Acredito que este seja um caso em que nem a própria mulher reconhece sua condição de submissão. E entender essa situação, esse processo histórico, é uma característica, acredito eu, significativa para a superação da desigualdade. Não aceitar o sobrenome do marido é um caminho para se fortalecer como indivíduo independente, é manter a sua identidade, a sua completude. E saiba que esse caminho se faz não somente nessa atitude, no passado, digo, no ato do casamento civil, mas que ele precisa ser trilhado no dia-a-dia, constantemente, também no aqui e no agora. Diversas vezes, a título de exemplo e esclarecer o que estou querendo dizer, quando viajamos, eu e meu marido, preenchendo documentos de hotéis, perguntaram-nos: Mas vocês não são casados? Ou, então, já saíam tirando suas próprias conclusões: Pensei que vocês fossem casados! Na nossa Lua de Mel, vejam bem, o meu nome foi incluído em todas as fichas  nos passeios como Elika Borges e eu tinha que pedir, exigir, implorar para que elas fossem refeitas. Ainda assim, chamavam-nos de casal Borges.

Embora insista que a identidade seja o ponto de referência a partir do qual surge o conceito e a imagem de si, sei muito bem que ela não é algo único e sim um sistema identificatório em processo dinâmico. Mas vamos ser sinceros com nós mesmos, de uma forma muito geral e bastante concreta, o nosso nome e sobrenome são mais que meras palavras escritas ou faladas. Eles estão direcionados a representar todo o nosso universo pessoal. Desde que os humanos passaram a denominar os objetos e situações, ainda na sociedade neandhertal, o nome passou a ser utilizado como uma identificação, uma forma de distinguir e individualizar uns dos outros. Assim, passou a ser considerado um determinante da personalidade, e, por isto, não é possível que alguém exista sem esta designação pessoal. Sem seu nome e seu sobrenome.

Mas sim, você pode querer não enxergar nada disso e achar que é só mais uma polêmica. Afinal, não foi você quem fez a lei. Entretanto, meu bem, se a seguiu, ainda que pudesse ter feito diferente, você tem sua parcela de contribuição com a violência que testemunhamos diariamente neste nosso país porque um tipo de preconceito muito danoso é este que não grita, age de forma silenciosa, sonsa e como se fosse natural. Diluído no dia a dia e em nossa cultura aparece como uma forma de manter a ordem das coisas e de lembrar quem manda. E quem obedece.

Não, senhores e senhoras, não estou querendo que vocês refaçam as suas identidades e as suas certidões de casamento. Mas pega mal dizer que vocês não são machistas se se recusam a enxergar que isso reflete toda uma história de discriminação com a mulher. Teimar em não se ver como machistas, à luz de tudo o que foi dito, é ser conivente com o estuprador que só enxerga, quando olha uma mulher, um objeto feito para lhe servir, submisso, descartável assim como um documento que não vale mais.

Sou Elika Takimoto. Sou livre dentro de um casamento. Aqui não encontrei nenhuma metade porque  eu estou inteira. Sou e sempre fui, antes de tudo, fiel a mim mesma e aos meus ideais de justiça e igualdade.